sexta-feira, 19 de abril de 2013

Memória de Inês de Castro. António C. Franco. «O último reino árabe que sobrevivia, ou que coexistia na Península, era o de Granada. Compreendia toda a região que se estendia pela Serra Nevada, um dos mais belos sítios do mundo…»

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«O infante usava uma blusa de linho branco e tinha à cintura um punhal fino de prata enfiado num pequeno estojo de carneira. Parecia-lhe inconcebível que a Hespanha se agitasse tanto com o seu casamento. Disse ao pai: - O meu coração, como já vos disse, não é conforme a este assunto e não posso deixar de ser perfeitamente indiferente a ele. A guerra, neste caso, parece-me afinal um daqueles remédios que apenas agravam o mal.
Afonso era um homem ainda jovem, de quarenta e poucos anos, a quem o trono tinha reconfortado e até, sob certos aspectos, rejuvenescido. Desde o seu encontro, doze anos antes, na Roca, com aquele estranho leão de pêlo amarelo que Afonso parecia imitar o Sol. Sentava-se no trono como o Sol se fixa no céu. E os que baixam os olhos é que podem suportar o Sol. Estava mais louro, mais branco, mais luminoso. Raramente usava a coroa, mas irradiava um esplendor íntimo que se prende mais com a situação interior dos homens, o seu estado de plenitude e agrado, que se traduz em brilho, do que propriamente com os seus ornamentos exteriores. O Sol é o esplendor da vulgaridade e os que cerram as pálpebras não só suportam o Sol, como se libertam para o infinito. As trevas são o silêncio sem referências, porque são, por excelência, o longe. E tudo é paraíso ao longe. Num certo sentido, o crepúsculo de Afonso principiou nesse dia de Maio, quando o Infante, cheio de luz ou de sombra, lhe virou as costas. Um crepúsculo ainda radioso e que, com o fulgor próprio dos grandes poentes estivais, não tardaria a iluminar toda a Península. Viver é arder, viver é queimar a vida. Os homens não se distinguem das estrelas.
Recolheu-se o príncipe à Atouguia levando consigo, depois de ter avistado Branca nos corredores do paço de Lisboa, o ânimo ainda mais frio. E o frio cristaliza, é geométrico. Dir-se-ia que o infante se afastava definitivamente para uma região polar e desconhecida, porque a adolescência é a zona dos gelos. Só a morte os haveria de fundir. Deu o rei ordem, contrariado que estava no seu esplendor de tarde, a Manuel Pessanha de ir, o mais rapidamente possível, às costas andaluzes. Este Manuel Pessanha era almirante do mar desde 1317, ano em que tinha celebrado um contrato com o rei Dinis. Vinha de Génova, estava ligado à família Pessagno, e tinha atrás de si séculos e séculos dum conhecimento marítimo que, nos seus inícios, se devia prender à própria formação do comércio na bacia do mediterrâneo. E verdade que Génova estava virada a Ocidente e que os-seus marinheiros tinham um tipo de melancolia, que se diria já própria do Atlântico. O Atlântico é como o céu, dá aos homens a confrontação nítida do infinito. Mas nada disso lhes retirava o seu ancestral passado mediterrânico, essa bacia de água morna onde todos os povos da Antiguidade lavaram os dedos dos pés, que, no seu meio-termo, pode também fazer lembrar esses outros marinheiros peninsulares, os catalães, os únicos que puderam depois competir com os portugueses. Contra todas as previsões, a esquadra portuguesa foi apanhada de imprevisto no Algarve pela esquadra castelhana e no próprio Cabo de S. Vicente, onde teve lugar a mais importante batalha de mar destes distúrbios, foram aprisionadas todas as naus portuguesas e capturado o seu Almirante, que foi levado para Sevilha não como assaltante mas como prisioneiro. Era Julho e a luz solar tinha, no seu esplendor, algo de crepuscular.

O último reino árabe que sobrevivia, ou que coexistia na Península, era o de Granada. Compreendia toda a região que se estendia pela Serra Nevada, um dos mais belos sítios do mundo, e constituía em si não tanto um último reduto, mas um sentido natural da Península. Depois da dissolução do império almóada, a Península voltou a encontrar uma nova e decisiva etapa do seu contonalismo muçulmano. As taifas, e o que delas resta, são no princípio do século XIII os novos reinos árabes da Península, dos quais irá sobreviver depois, durante séculos, o de Granada. Mas o cantonalismo muçulmano, se se caracteriza pela tolerância e pela liberdade religiosa, caracteriza-se também pela debilidade da instituição militar que, pela sua hierarquia a hermetismo, pode coexistir melhor com um poder autoritário». In António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, Publicações Europa-América, 1990.

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