quinta-feira, 4 de abril de 2013

A Ilha dos Jacintos Cortados. Cartas de amor com interpolações mágicas. Gonzalo Ballester. «A verdade é que sei pouco de ti, apesar do muito que temos falado, noite após noite, muitas tardes também, desde aquela primeira em que vieste à procura do professor e ele se tinha ido embora»

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«Não interessa recordar que impedimentos atrasaram a nossa viagem, mas, por fim, chegámos; trouxeste-me no teu carro até ao cais, e remaste depois, rindo, enquanto eu me divertia à tua custa: queria recordar o teu nascimento nas margens de um mar glorioso, e que as águas de um lago não muito grande, embora sendo tão bonito como este nosso (onde, segundo me contaste uma vez, vens patinar no Inverno), são apenas arremedo daquelas outras, azuis, apesar de cinzentas às vezes, e nem sempre tranquilas, que te embalaram com a sua canção antiga, e às quais não queres voltar, nunca quis saber porquê, talvez pelo receio de que esse canto se tenha calado para sempre, ou pelo medo que tens de recuperar, de nunca perder, esses monstros da tua infância de que às vezes te lembras e que te fazem estremecer; meros fantasmas, fazem-te tremer: o que não seria se visíveis? Bastava esse segredo noutro tempo para que eu desatasse a inquirir, a conjecturar também, sem alcançar uma conclusão suficiente, uma hipótese satisfatória pelo menos, algo; ainda imagino, quando me ponho a sonhar, que nessa tua infância junto às pedras mais bonitas do mundo, um não sei quê ou não sei quem deixou a tua alma ferida, fez-lhe mal: isso de que te queixas às vezes sem te queixares, com um suspiro ou um esgar que de boa vontade evitarias, pois sabes, talvez, o que revelam. A verdade é que sei pouco de ti, apesar do muito que temos falado, noite após noite, muitas tardes também, desde aquela primeira em que vieste à procura do professor Alain e ele se tinha ido embora. Lembras-te? Claro que sim, e não sei por que diabo to pergunto! Ainda que talvez o saiba sobejamente, e tu também, e o porquê vou repeti-lo aqui com algumas variantes, bem como outras coisas das comuns faladas ou vividas, que já vão sendo muitas; mencionarei as necessárias para que fique cabal a história, a que agora começa, ou começou quando te disse que sim, que alugaria a cabana da ilha, que viveria nela até ao anúncio das neves: todo um trimestre, pois, todo o Outono. O que nunca te contei foi a maneira como o professor Alain me falara de ti, não uma vez, mas sim com insistência, até se tornar aborrecido, e numa delas disse-me que o tinhas beijado na boca. Oh, de que modo indelével me ficou na memória aquela imagem!
Como falava em francês, ao dizer bouche pôs a sua de maneira especial, como se fosse devolver-te o beijo, como se ainda estivesse à espera dele ou, talvez, como se fosse assobiar. Bom, se calhar não foi mais do que uma brincadeira, ou mais uma troça que de si mesmo o professor fizesse, a quem a maldita educação inglesa não permite expressar os seus sentimentos com a espontaneidade apetecida, essa com que nós damos saída às nossas coisas, seja de regozijo ou de pena. Não te parece que são essas minúcias as que mais nos afastam de pessoas como ele? Cuidado que eu gosto dele, e que o admiro, e que levaria a minha amizade até extremos que ele próprio não suspeita; cuidado que me rio quando me conta as suas piadas, que não conheci ninguém com mais graça do que ele; mas, como vês, embora eu não seja, estritamente falando, um verdadeiro filho do Mediterrâneo, como tu, e embora também a minha educação me tenha obrigado de certo modo a refrear com hipocrisia temperada a manifestação aberta dos meus sentimentos, existe uma diferença bastante grande entre o que eu faço e o que ele faz, porque eu sobreponho à emoção ou à paixão a máscara da ironia, está claro, e ali ficam como duas folhas secas que tivessem caído juntas (disseste-me uma vez que isso se nota em mim, quando troço, que é o que levo realmente a sério); enquanto o professor substitui uma coisa pela outra e esconde aquela em não sei que estranhos abismos do seu espírito.
E a mim parece-me que isso o prejudica, porque com muita frequência é preferível partir com um murro a tábua da mesa ou a cara dum amigo, a dominar o impulso e deixar que um sorriso o suplante, ou talvez uma mot d’esprit, que a ninguém servem, na verdade, de desabafo. Dir-me-ás, com razão, que o professor teria de partir muitas mesas e muitas caras, sobretudo nos últimos tempos, mas, pelos menos estaria tranquilo, e tu com ele. Naquela noite em que vieste vê-lo, e que ele se tinha ido embora, e então te acolheste à minha porta com o pretexto de averiguar se eu sabia algo da sua ausência, se tinha ido de viagem, ou se só à Praça Stuyvesant fazer compras, penso que o professor devia ter partido algo muito forte e duro, a porta da sua casa ou da minha; ou, melhor ainda, derrubado a parede com um bom pontapé, pois nesse caso tudo teria mudado e não estaríamos agora na ilha dos Jacintos Cortados, The Isle of the Cut Hyacinths, no Indian Lac, cada um de nós nas suas coisas, mas próximos como já o estamos por essas ninharias a que antes me referi e que irão saindo pouco a pouco; talvez também, mais que pelo passado unidos, pelo que vier a acontecer: incógnita que me empurra, contra toda a previsão, contra os meus próprios hábitos precavidos, a escrever este caderno às escondidas de ti, ainda que a ti destinado». In Gonzalo Torrente Ballester, L Isla de los Jacintos Cortados, Ediciones Destino, 1980, A Ilha dos Jacintos Cortados, Cartas de amor com interpolações mágicas, Relógio d’Água, 1994, ISBN-972-708-232-7.

Cortesia de Relógio d’Água/JDACT