domingo, 28 de abril de 2013

A Bela Angevina. Leituras. José Augusto França. «Era um casarão burguês de dois andares e mais águas-furtadas, a empena medieval em bico, e toda a fachada tratada em colombages, um sistema de pilares e travessas e asnas de madeira, com os vãos recheados de tijolos ou de cascalho»

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«A sala de jantar estava vazia àquela hora, só uma mesa ocupada por um casal idoso que tinha visto atravessar o átrio do hotel e que cumprimentou cerimoniosamente, mas já Monsieur Breton avançava à frente do maître d'hôtel a indicar-lhe uma mesa bem situada junto da grande janela de vitrais coloridos que se arredondava ao fundo. Não havia luz de fora e a iluminação dos pesados lustres do interior não permitia ver mais do que o desenho das armações de chumbo. Entretanto outro casal descera a jantar com uma menina coberta de caracóis, e um cavalheiro muito empertigado que o saudou baixando a cabeça frisada. Monsieur le vicomte... ouviu ele dizer ao maître d'hôtel que o acompanhou à mesa. Foi Monsieur Breton quem veio propor-lhe, a mais, um riz-au-lait com um copo de Quart de Chaume que, depois do Bourgueil recomendado, lhe agradou. E o arroz-doce, meu Deus!, como ele era diferente do que comera na sua infância de Verdemilho... O proprietário veio receber a sua reacção, a sua aprovação, de que estava certo: era uma receita, confidenciou ele, de Madame Breton. Le moeleux de la pâte..., começou o hóspede a dizer. Ah! Monsieur le Consul, vous m'en voyez ravi!...'' Monsieur Grasset tinha-lhe dito que ele era un fin gourmet. Convidado a sentar-se, pousou cuidadosamente as suas redondezas na cadeira estofada e logo lhe perguntou se ele conhecia, certainement..., a história do Hotel du Cheval Blanc.
Sim, Monsieur Grasset tinha-lhe falado dela, de Madame de Sévigné... E não só, não só... Monsieur Breton desfilou uma série de hóspedes ilustres, Chevreuse, Rohan, Soubise...: era o hotel l'hostellerie por excelência da capital do Anjou. Seria um prazer para ele mostrar a Monsieur le Consul uma gravura antiga das instalações - até 1855. Havia só vinte e três anos que Monsieur Breton pai se tinha lançado na grande transformação. Le pauvre morrera de tanto trabalho, e ele tomara a sucessão, com sa pauvre mère, ao princípio, e agora com son épouse. Que idade podia ter o Monsieur Breton de agora, por detrás das suas banhas? Talvez só cinquenta anos, poucos menos, e como seria a Madame Breton do riz-au-lait? Mas já se via conduzido ao salão e sentado num divã profundo, entre reposteiros de borlas de seda. Foi o maître d'hôtel quem veio trazer o café numa cafeteira de prata; Monsieur Breton infelizmente não podia beber, mas fazia-lhe companhia num cálice de Cointreau às escondidas da esposa, que os médicos... Ah, não conhecia com certeza este novo licor, um triple sec com perfume de laranja, puro produto angevino que começara a ser fabricado poucos anos atrás por um excelente amigo seu, de infância, Edouard Cointreau... E avec un succès qui fera sans doute date!
Délicieux..., aprovou o hóspede, que se divertia com os cuidados com que era recebido. Seria já isso a douceur angevine, en avant-goût?... O que estaria ainda para vir, pensou ele, com uma ponta de superstição. Mas Monsieur Breton fez deslocar um quadro a óleo que ocupava um canto do salão, sobre um cavalete, envolto numa armação de veludo grenat. Defronte do divã, ele recebia a luz de dois candeeiros de bronze com grandes globos de vidro fosco. Era assim que era preciso ver a imagem do hotel tal qual ainda a conhecera a meio do século. Fora Monsieur Breton Fils quem fizera pintar o quadro por um desenho antigo, feito antes da demolição. Podia ter sido uma fotografia, mas, infelizmente, não houvera ideia de a tirar! Mas era fiel a imagem, ele assistira, vivera lá durante as obras que o pai dirigira, três anos de trabalho, e, se não tinha sido a ruína, pouco faltara! Felizmente, depois, houvera compensação, suspirou Monsieur Breton. Mas gostaria de ter a honra de apresentar a esposa a Monsieur le Consul, que, sem ela, ele não teria tido coragem para continuar. Havia vinte e três anos, insistiu, na certeza das datas, acabara ele então o serviço militar. Por detrás da pintura medíocre, o hóspede, estendendo as longas pernas magras, procurava imaginar aquela vida numa cidade de província francesa que totalmente desconhecia. Como Leiria, como Évora? – que fora o único Portugal que praticara…
Era um casarão burguês de dois andares e mais águas-furtadas, a empena medieval em bico, aproveitada em janelas, e toda a fachada tratada em colombages (explicou o hoteleiro), um sistema de pilares e travessas e asnas de madeira, com os vãos recheados de tijolos ou de cascalho. Mas os quartos, em três corpos, apresentavam poucas janelas: três em cada andar, na grande extensão das paredes cegas, todas quadrilhadas de madeiros, num ritmo irregular. Ao meio, um grande portal travejado - par où vous êtes entré tout à l'heure, Monsieur le Consul... O pintor, para dar ambiente, tinha parado uma sege à porta, com um cavalo triste. O hotel tinha agora o seu próprio parque de carruagens, e adquirira recentemente um char-à-bancs para excursões; e assinara um acordo com a Compagnie des Petites Voitures d'Angers para uso dos seus hóspedes distingués». In José Augusto França, A Bela Angevina, Editorial Presença, Lisboa, 2005, ISBN 972-23-3359-3.

Cortesia de Presença/JDACT