quarta-feira, 24 de abril de 2013

O Processo de Damião de Goes na Inquisição. Raul Rêgo. «- Tá, senhor, que não é dia de carne. E que ele Damião de Goes, lhe respondera: - Calai-vos, senhora sobrinha, que o que entra pela boca não mata a alma»

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Testemunho do duque de Aveiro, João de Alencastre
«(…) E assim, mais era lembrado, contar-lhe o dito Manuel Correia como o dito Bastião de Macedo lhe dissera, vindo pelo mesmo caminho, que achando-se sua mãe dele Bastião de Macedo, que se chama Helena Jorge, e assim sua irmã, dona Briolanja mulher de António Gomes, moradores em Alenquer, em casa do dito Damião de Goes, um dia de sexta-feira ou outro dia em que se não comia carne, e sendo convidados pelo dito Damião de Goes Para o jantar, sendo ainda viva sua mulher, dona Joana, estando bem apercebido de pescado para os agasalhar, disse a sobredita dona Briolanja que não havia de comer pescado porque estava prenha e não lhe tinha vontade para o comer. E que seu tio, Damião de Goes, vendo isto, mandou logo buscar um pedaço de lombo de porco a uma taverna; e o concertaram e puseram em a mesa para ela comer; e estando todos, comendo ela a dita carne e os mais pescado, à mesa, ele Damião de Goes deitou mão ao prato onde a sobrinha comia e tomou uma talhada de carne e pôs-se a comê-la. Ao que a dita sua sobrinha lhe disse, vendo isto: - Tá, senhor, que não é dia de carne.
E que ele Damião de Goes, lhe respondera: - Calai-vos, senhora sobrinha, que o que entra pela boca não mata a alma. E não é lembrada se lhe disse o dito Manuel Correia que lhe contara o Bastião de Macedo que se achara presente a este jantar ou não; ou se fora este jantar, em esta cidade ou na quinta do dito Damião de Goes [riscado - se em a vila de Alenquer]. Que o saibam dele que o dirá. E que o dito Manuel Correia lhe dissera que Bastião de Macedo, quando isto lhe contara, foi parecendo-lhe mal e queixando-se de não ser isto bem feito. E que assim parecera mal às ditas sua mãe e irmã; e por essa mesma razão, quando ela denunciante, o contou a ele, senhor Inquisidor, o contou por lhe parecer mal.
E é mais lembrada, contar-lhe o dito Manuel Correia que lhe dissera o dito Bastião de Macedo, pelo caminho, que ouvira algumas vezes dizer ao dito Damião de Goes, seu tio, que desejava de ir morrer a Flandres. E al não disse. O que tudo dizia por descargo de sua consciência, por lhe ser perguntado, pelo que assim contara a ele senhor Inquisidor. E lhe foi mandado ter segredo no caso, sob cargo do mesmo juramento, e que a nenhuma pessoa desse conta do que fora perguntado. E do costume disse nada. Antes que fora sempre muito amiga da mulher dele dito Damião de Goes, a qual era e ela a tinha por muito boa e católica cristã. E assinou aqui, juntamente com ele, senhor Inquisidor, e eu Manuel Antunes, notário do Santo Ofício (maldito), o escrevi.
E disse, sendo perguntada, que lhe não declararam quanto tempo havia que o dito Damião de Goes dera este jantar em que passara o sobredito. E eu, Manuel Antunes, notário do Santo Ofício (maldito), o escrevi, com as entrelinhas que dizem nem ser perguntada, ou na quinta do dito Damião de Goes, e riscado que dizia se em a vila de Alenquer. Que por verdade fiz. Simão de Sá Pereira - Dona Maria de Távora.

In Raul Rêgo, O Processo de Damião de Goes na Inquisição, Assírio & Alvim, 2007, ISBN978-972-37-0769-4, Peninsulares/57.

continua
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT