sábado, 31 de outubro de 2020

31 na Poesia. Crisfal. Cristóvão Falcão. «Ali sobre .a ribeira de mui alta penedia, donde a água d’alto caía, dizendo desta maneira estava a noite e o dia»

Cortesia de wikipedia e jdact

 […]

VIII

Ali os dias passava

em mágoas, da alma saídas,

dizer a quem longe estava,

e chorava por perdidas

as horas que não chorava.

Em vale mui solitário e

sombrio e saudoso,

send’o monte temeroso,

pera o choro necessário,

pera a vida mui danoso,

 

IX

Dizer o que ele sentia,

em que queira, não me atrevo,

nem o chorar que fazia;

mas as palavras que escrevo

são as que ele dezia.

Ali sobre .a ribeira

de mui alta penedia,

donde a água d’alto caía,

dizendo desta maneira

estava a noite e o dia:

 

X

“Os tempos mudam ventura

bem o sei, pelo passar;

mas, por minha gram tristura,

nenhuns puderam mudar

a minha desaventura.

Não mudam tempos nem anos

ao triste a tristeza;

antes tenho por certeza

que o longo uso dos danos

se converte em natureza.

 

XI

Coitado de mim, cuitado,

pois meu mal não se amansa

com choro nem com cuidado!

Quem diz que o chorar descansa

é de ter pouco chorado;

que, quando as lágrimas são

por igual da causa delas,

virá descanso por elas;

mas como descansar hão,

pois que são mais as querelas?

 

XII

Com tudo, olhos de quem

não vive fazendo al,

chorai mais que os de ninguém,

que o que é para maior mal

tenho já para maior bem.

Lágrimas, manso e manso,

prossigam em seu ofício:

que não façam benefício:

não servindo de descanso,

servirão de sacrifício».

[…]

In Crisfal, Cristóvão Falcão, Coleção Textos Literários, Lisboa, 1962,

Cristóvão Falcão, Poesia, Alentejo, Cultura, JDACT,

No 31. Recensões. Inês Lourenço «Também há as outras, que ao certo não sei o que fazem, mas que ainda debutam aos dezoito anos ao som de O Danúbio Azul, com reportagem na imprensa rosa»

Cortesia de wikipedia e jdact

Coisas que Nunca

A poesia como lâmina implacável do tempo

«As raparigas da Foz há muito deixaram

de enlaçar os bilros sobre as almofadas.

Já não imitam nos meandros da renda o desenho

das ondas. Nem esperam, rodeadas de filhos pequenos

 

O regresso do seu modesto ulisses. Hoje

trabalham na pizzaria ou servem pregos e finos

na esplanada. Com um pouco de sorte fazem

um Curso de Gestão ou de outras ciências

ocultas para gáudio da família que as vai

ver desfilar no Cortejo da Queima e noutras

praxes saloias que a turba não dispensa.

 

Também há as outras, que ao certo não

sei o que fazem, mas que ainda debutam

aos dezoito anos ao som de O Danúbio Azul,

com reportagem na imprensa rosa.

 

Mas o certo é que o mar da Foz não desbotou

 jamais a sua cor atlântica, nem desistiu

desde há milénios de receber o Douro,

embora os caranguejos, as lapas

e os beijinhos nos tenham abandonado

como as histórias de antigos piratas e Robinsons

deixaram os nossos sonhos.

 

O mar da Foz envolve na salina rebentação

aquele poderoso rio, que apesar de retido

em comportas de barragem, incorpora

desde a nascente o corpo feminino

das ribeiras que para ele correm ainda

como rendilheiras, no regresso dos barcos».

 

«Mulheres de canastra à cabeça, que num

recôncavo

de esquina, não calcetada, onde uma nesga

de terra desmentia o urbanismo

invasor, mijavam de pé

com rara pontaria dissimulando

entre as grossas saias,

as pernas afastadas. Não usavam cuecas

tal como uma modelo da Vogue,

cujo profundo decote dorsal,

 prolongado abaixo da cintura,

as abolia.

 

Coincidências

da baixa plebe

e da alta-costura».

 

Poema do dia seguinte

«Talvez ignores ainda

que não confio no poder dos versos,

que assim como os deuses

são um mero álibi de sentidos

duvidosos.

 

Mas, sem poder nenhum

os prefiro, livres na sua inteira

inutilidade. Restam-nos a roupa enxuta

de improváveis viagens, e sempre

o melhor vinho da colheita

por haver».

 

Mamografia de mármore

Deliciam-me as palavras

dos relatórios médicos, os nomes cheios

de saber oculto e míticos lugares

como a região sacro-lombar ou o tendão de

Aquiles.

 

Numa mamografia de rastreio

a incidência crânio-caudal seria

um bom título para uma tese teológica.

 

Alguns poetas falam disso. Pneumotórax

de Manuel Bandeira ou Electrocardiograma

de Nemésio, para não referir os vermelhos de

hemoptise

de Pessanha ou as engomadeiras tísicas

de Cesário.


Mas nenhum(a) falou (ou fala)

de mamografia de rastreio. Versos dignos

só os de mamilo róseo desde o tempo

de Safo ou de Penélope. E, de Afrodite

 enquanto deusa, só restaram óleos e

mamografias de mármore».

In Poemas de Inês Lourenço, Coisas que nunca, Lisboa, &Etc, 2010, ISBN 978-989-815-025-7.

 Cortesia de wikipedia

JDACT, Inês Lourenço, Poesia,

Poesia no 31 Crisfal Cristóvão Falcão. «E com quanto era Maria piquena, tinha cuidado de guardar milhor o gado o que lhe Crisfal dezia; mas, em fim, foi mal guardado»

Cortesia de wikipedia e jdact

I

«Antre Sintra, a mui prezada,

e serra de Ribatejo

que Arrábeda é chamada,

perto donde o rio Tejo

se mete n’água salgada,

houve um pastor e pastora,

que com tanto amor se amarom

como males lhe causarom

este bem, que nunca fora,

pois foi o que não cuidarom.

II

A ela chamavam Maria

e ao pastor Crisfal,

ao qual, de dia em dia,

o bem se tornou em mal,

que ele tam mal merecia.

Sendo de pouca idade,

não se ver tanto sentiam,

que o dia que não se viam,

se viam na saudade

o que ambos se queriam.

III

Alg.as horas falavam,

andando o gado pascendo,

e então se apascentavam

os olhos, que, em se vendo,

mais famintos lhe ficavam.

E com quanto era Maria

piquena, tinha cuidado

de guardar milhor o gado

o que lhe Crisfal dezia;

mas, em fim, foi mal guardado;

IV

Que, depois de assi viver

nesta vida e neste amor,

depois de alcançado ter

maior bem pera mor dor,

em fim se houve de saber

por Joana, outra pastora,

que a Crisfal queria bem;

(mas o bem que de tal vem

não ser bem maior bem fora,

por não ser mal a ninguém).

V

A qual, logo aquele dia

que soube de seus amores,

aos parentes de Maria

fez certos e sabedores

de tudo quanto sabia.

Crisfal não era então

dos bens do mundo abastado

tanto como do cuidado;

que, por curar da paixão,

não curava do seu gado.

VI

E como em a baixeza

do sangue q e pensamento

é certa esta certeza  

cuidar que o mericimento

está só em ter riqueza

enquerirom que teria[m]

e do amor não curarom;

em que bem se descontarom

riquezas, se faleciam,

por males que sobejarom.

VII

Então, descontentes disto,

levarom-na a longes terras,

esconderom-na entre .as serras,

onde o sol não era visto,

e a Crisfal deixarom guerras.

Além da dor principal,

pera mor pena lhe dar,

puserom-na em lugar

mau para dizer seu mal,

mas bom pera o chorar».

[…]

In Crisfal, Cristóvão Falcão, Coleção Textos Literários, Lisboa, 1962,

Cristóvão Falcão, Poesia, Alentejo, Cultura, JDACT, 

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

O Último Segredo. Lynn Sholes e Joe Moore. «Ele me deu o sinal positivo. Veja bem o que parece, Cotten..., e lembre-se de que, por causa disso, está disposta a enfrentar…»

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Os Fósseis de Gilley

Vale dos Dinossauros, Texas

«(…) Estou absolutamente segura de que a peça vale isso. Se a emissora não a comprasse, ela seria vendida por um preço muito mais alto no mercado negro. E outra pessoa teria ficado com a história..., e com a glória. Verifiquei tudo, Ted. Os especialistas dizem que foi um bom negócio. Verificar um artefacto e confirmar a sua autenticidade são duas coisas bem diferentes, moça. E ninguém melhor do que para saber disso. Ele fez uma pausa. Só não quero que faça papel de boba. Consegui que um paleontólogo examinasse o fóssil. Ele me deu o sinal positivo. Veja bem o que parece, Cotten..., e lembre-se de que, por causa disso, está disposta a enfrentar o que der e vier. O bom e velho Gilley..., esse é o nome do comerciante, certo? Deus, será que todo o mundo no Texas se chama Gilley? Não, existem alguns Georges W. e Lyndons. Mas, sinceramente, esse foi o nome que ele deu quando se apresentou..., Gilley.

Melhor do que Garganta Profunda, acho... Ted se referia à principal fonte jornalística do caso Watergate, que culminou com a renúncia do presidente Nixon. De qualquer modo... Gilley, o texano, filho de um colecionador de bugigangas, com uma pilha de ossos de dinossauro, encontra esse fóssil no porão do pai, numa caixa com um punhado de outros fragmentos de ossos. Ele telefona para você, tudo isso sigilosamente, oferecendo-lhe a grande reportagem por um preço razoável..., ou então ele venderia a coisa no mercado negro por uma pequena fortuna. Mas tudo pela boa vontade dele, sem interesse nenhum... Não, não foi pela boa vontade dele, nem sem interesse nenhum. Ele acha que, por causa da publicidade que vamos dar-lhe com a cobertura da história, a lojinha de fósseis dele vai fazer rios de dinheiro. Ele ainda pode escrever um livro, dar entrevistas e ter os seus quinze minutos de fama. Outra opção seria vender no mercado negro, e ele receberia a mesma quantia em dinheiro, mas não a popularidade. Ele disse que, para ele, tanto faz. Mas que ainda prefere ser uma celebridade. E quanto ao paleontólogo? De onde surgiu? Ora, vamos, Ted, dá um tempo. Não me pode dar um pouco de sossego?

É quase uma filha para mim. Eu me preocupo com o que está fazendo. Não quero que seja enganada com toda essa fama. Cotten relaxou o corpo no assento e olhou para o velocímetro. Estava correndo a mais de cem por hora num trecho de estrada em que não podia passar dos oitenta, então tirou o pé do acelerador. Ted realmente se preocupava com ela. O nome dele é Waterman. Mas é Waterman com P-H-D no final. Eu o conheci numa festa que o Museu Nacional de História ofereceu à imprensa uns dois meses atrás. Foi mais do que perfeito. Ele se ofereceu para vir até o Texas. É claro que precisou assinar um termo de sigilo enquanto não levássemos a matéria ao ar. E deu algum trabalho para convencer o Gilley a deixar o Waterman dar uma olhada. Só estão sabendo do assunto os chefões da NBC, Waterman, Gilley, eu..., e agora você. E eu seria demitida se descobrissem que estou tendo esta conversa com a concorrência. Waterman, repetiu Ted. Sabe o primeiro nome? Henry..., não, Harry, corrigiu-se Cotten. Harry Waterman. Porquê? Só estou curioso. Talvez possa descobrir alguma coisinha a mais sobre ele. Ele escreveu uma carta à emissora dando a sua opinião de que o artefacto é autêntico. Não fosse por isso, acho que eles não teriam liberado a verba». In Lynn Sholes e Joe Moore, O Último Segredo, 1995, Editora Pensamento, 2015, ISBN 978-853-151-778-5.

Cortesia de EPensamento/JDACT

JDACT, Lynn Sholes, Joe Moore, Literatura, Mistério,

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Os Templários e a Arca da Aliança. Graham Phillips. «O historiador judeu Josephus, fazendo seu trabalho por volta de 90 d.C, dá os detalhes da estrondosa magnitude do projecto»

Cortesia de wikipedia e jdact

Segredos do Templo

«(…) Quando Salomão morreu, por volta de 925 a.C., a maioria das tribos israelitas, a tribo de Judá, separou-se das demais tribos e fundou seu próprio reino independente, escolhendo Jerusalém como sua capital. Grosso modo, circundando a área que hoje é o sul de Israel, esse reino era conhecido como Judá, mais tarde vindo a ser chamado de Judeia pelos romanos, e seu povo ficou conhecido como os judeus. Foi o povo de Judá que desenvolveu os primeiros preceitos da religião hebraica, que viria a ser o Judaísmo, e transformou o Templo de Jerusalém no santuário mais sagrado da religião judia por mais de trezentos anos, até que a cidade foi invadida pelos babilónios. Na época, milhares de judeus foram escravizados e guiados para o exílio na cidade da Babilónia (próximo à moderna Bagdad), e em 597 a.C. o rei babilónio, Nabucodonosor, ordenou que o Templo fosse saqueado e destruído. Entretanto, em 539 a.C, quando os persas, do que hoje é o Irão, derrotaram os babilónios, foi que os judeus tiveram permissão para voltar a Jerusalém. Logo depois, o Templo foi reconstruído em uma escala menor, mas quando os romanos tomaram a cidade em 63 a.C, o santuário estava num estado avançado de ruínas. Paradoxalmente, a ocupação romana de Judá, na verdade,

trouxe grande prosperidade para a região; algo muito maior do que vivera durante séculos de existência. Quando o judeu aristocrata Herodes foi empossado pelos romanos como um rei fantoche, ele usou a sua nova riqueza para reerguer o Templo numa escala ainda maior do que a original. O trabalho foi iniciado por volta de 19 a.C, e quando o concluíram em 64 d.C, o novo Templo era uma das maiores e mais impressionantes estruturas em todo o Império Romano, e conferiu a seu patrono o título de Herodes, o Grande.

O historiador judeu Josephus, fazendo seu trabalho por volta de 90 d.C, dá os detalhes da estrondosa magnitude do projecto. As dimensões das paredes externas mediam aproximadamente 250 por 1.000 metros, criando um perímetro externo inacreditável de quase dois quilómetros e meio. As paredes tinham quase 30 metros de altura e eram feitas de pedras, muitas delas com peso de quase cinquenta toneladas. Na entrada principal da ala sul do complexo que parecia uma cidade, largas escadarias conduziam as pessoas até aos portões do Pórtico Real, um grande corredor com colunas, que dava acesso ao amplo pátio externo. De acordo com Josephus, os pilares sólidos que sustentavam o telhado do pórtico eram tão grandes que eram necessários quatro homens com os braços esticados para circundá-los. O pátio externo era grande o suficiente para abrigar o equivalente a treze campos de futebol moderno e era cercado de todos os lados por colunatas.

Em baixo dessas passagens cobertas, que proporcionavam uma sombra do sol escaldante, os visitantes podiam se reunir, e professores e alunos podiam se sentar para debater questões religiosas. Brilhando no meio do pátio ficava o complexo do Templo interno, construído na parte de cima de uma plataforma de pedra gigantesca com aproximadamente 1 metro de altura. Suas paredes mediam algo em torno de 150 a 300 metros e tinham cerca de 30 metros de altura, com pequenas torres de defesa em pontos estratégicos. Em diversos degraus intercalados havia estruturas que se elevavam até à plataforma dando acesso a oito portas enormes revestidas com placas de ouro e prata. A metros de altura, suas portas duplas de bronze eram tão pesadas, eram tão pesadas que, de acordo com Josephus, vinte homens eram precisos para fechá-las.

Qualquer pessoa podia entrar no Pórtico Real e o no pátio externo, mas somente os judeus tinham permissão para entrar no complexo central. Placas de aviso escritas em grego e latim diziam a todos os não judeus para não entrarem, sob pena de morte. Pelo Portão Coríntio, adoradores entravam num pátio externo, com cerca de 70 metros quadrados, também cercados por passagens cobertas. Esse pátio era conhecido como o Pátio das Mulheres, porque além desse lugar, as mulheres não tinham permissão para entrar em lugar nenhum. Somente os homens podiam subir um lance de escadas a mais e passar por um último portão para frequentar num pátio interno anterior ao Templo em si, uma reconstrução exacta do Templo original de Salomão, conforme relatado nas escrituras antigas.

O Templo de Salomão tinha cerca de 50 metros de altura e algo em torno de 300 metros quadrados. Suas paredes eram sustentadas por colunas e o telhado cercado por estacas douradas para impedir que os pássaros se empoleirassem ao longo de suas guarnições. Dentro do Templo, havia um santuário externo, onde ficavam braseiros para os sacrifícios de animais, exigidos pela lei religiosa contemporânea, e o altar superior, que dava base para o menorah, o candelabro de sete velas que simbolizava a presença de Deus. Finalmente, além dele, ficava o santuário mais secreto chamado de Sagrado dos Sagrados: uma câmara escura, sem janelas, construída para guardar a relíquia sagrada que todo o Templo foi erguido para abrigar, a Arca da Aliança». In Graham Phillips, Os Templários e a Arca da Aliança, 2004, Madras Editora, 2005, ISBN 978-857-374-965-6.

Cortesia de MadrasE/JDACT

JDACT, Graham Phillips, Israel, Religião, Conhecimento, Literatura,

Mago Mestre. Raymond Feist. «Na penumbra, ouviu passos que se aproximavam, parando aos pés de seu catre. Ao seu lado, ouviu uma súbita inspiração e soube que o menestrel também estava acordado»

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«(…) Fez sinal aos escravos com os machados para que libertassem Pug, que, pouco depois, encontrava-se a salvo. Laurie levou-o até ao lugar onde estava o jovem soldado. Pug tossiu o que restava de água nos pulmões e disse, ofegante: agradeço ao meu amo pela minha vida. O homem nada disse, mas, quando o capataz se aproximou, dirigiu-lhe algumas observações: o escravo tinha razão e você não. A árvore estava podre. Não é certo castigá-lo por sua falta de discernimento e seu mau humor. Devia mandar espancá-lo, mas não vou perder tempo com isso. O trabalho avança devagar e o meu pai está descontente. Nogamu abaixou a cabeça. Sinto-me humilhado com o que meu senhor pensa de mim. Tenho permissão para tirar a minha própria vida? Não. Seria honra demais. Volte ao trabalho. O rosto do capataz enrubesceu de raiva e vergonha silenciosas. Erguendo o chicote, apontou para Laurie e Pug. Vocês dois, voltem ao trabalho. Laurie levantou-se e Pug tentou. Tinha os joelhos pouco firmes, pois quase se afogara, mas conseguiu ficar de pé após várias tentativas. Estes dois estão dispensados pelo resto do dia, disse o jovem lorde. Este aqui, apontou para Pug, não tem grande utilidade. O outro tem de tratar os cortes que você lhe fez ou irão infectar. Virou-se para o guarda. Leve-os de volta ao acampamento para que cuidem deles.

Pug sentiu-se grato, não tanto por ele, mas por Laurie. Com algum descanso, Pug poderia ter retomado o trabalho; no entanto, uma ferida aberta num pântano significava, na maioria das vezes, uma sentença de morte. As infecções eram rápidas naquele lugar quente e sujo, e havia poucos tratamentos disponíveis. Seguiram o guarda. Enquanto se afastavam, Pug percebeu que o feitor os fitava com ódio indisfarçado no olhar.

O assoalho rangeu e Pug acordou na mesma hora. A cautela nascida e desenvolvida pela escravidão advertiu-o de que aquele som não se encaixava no interior da cabana, no meio da noite.

Na penumbra, ouviu passos que se aproximavam, parando aos pés de seu catre. Ao seu lado, ouviu uma súbita inspiração e soube que o menestrel também estava acordado. Provavelmente, metade dos escravos tinha acordado com o intruso. O desconhecido pareceu hesitar e Pug esperou, tenso com a incerteza. Ouviu-se um grunhido e, sem esperar, Pug rolou para fora do catre. Escutou algo pesado batendo no chão, e o ruído surdo de uma adaga atingindo o lugar onde o seu peito estivera momentos antes. De repente, o alojamento explodiu num frenesi. Os escravos gritavam e corriam para a porta. Pug sentiu mãos agarrando-o na escuridão e logo uma dor aguda explodiu-lhe no peito. Tentou alcançar o agressor às cegas, brigando pela posse da lâmina. Outro golpe fez-lhe um corte na palma da mão direita. Subitamente, o atacante parou de se mexer e Pug percebeu que havia uma terceira pessoa em cima do pretenso assassino. Soldados entraram correndo na cabana, com lanternas nas mãos. Pug viu Laurie caído por cima do corpo imóvel de Nogamu. O Urso ainda respirava, mas, considerando a forma como a adaga saía de sua caixa torácica, não seria por muito tempo. O jovem soldado que salvara as vidas de Pug e Laurie entrou e os outros abriram caminho para que passasse. Parou perto dos três combatentes e simplesmente perguntou: está morto? O capataz abriu os olhos e, num sussurro fraco, conseguiu dizer: estou vivo, senhor. Mas morro pela espada. Um sorriso leve e desafiador apareceu no rosto suado. A expressão do jovem soldado não revelou qualquer emoção, embora seus olhos parecessem em chamas. Não creio, disse calmamente. Virou-se para os dois soldados: levem-no já para fora e enforquem-no. Não haverá honra alguma para ser cantada pelo seu clã. Deixem o corpo para os insectos. Servirá como aviso para que não me desobedeçam. Vão.

O rosto do moribundo empalideceu e os seus lábios tremeram: não, meu amo. Eu imploro, deixe-me morrer pela espada. São só mais uns minutos. Uma espuma avermelhada surgiu nos cantos da boca do homem. Dois rudes soldados agarraram Nogamu e, sem se importarem com o seu sofrimento, arrastaram-no para fora. Ele gritou por todo o percurso. A força que permanecia na sua voz era surpreendente, como se o medo da forca despertasse uma reserva profunda. Ficaram parados como em um quadro até o som terminar num grito sufocado. Nesse momento, o jovem oficial virou-se para Pug e Laurie. Pug estava sentado com sangue escorrendo do corte comprido e superficial no peito. Segurava a mão ferida com a outra. Este corte era fundo e os dedos não se mexiam». In Raymond Feist, Mago Mestre, 1982, 1992, Saída de Emergência, 2014/2015, ISBN 978-989-637-767-0.

 

Cortesia de SdeEmergência/JDACT


JDACT, Raymond Feist, Literatura, 

Sedução Fatal. LS Ferreira. «Ele controlava a importação de insumos diversos, bens de consumo, equipamentos eletrónicos e automóveis de luxo. Recebia elevadas propinas para deixar passar ilegalmente…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Cleyde dormia de dorso sobre o enxergão do catre. Estremunhada por um impulso inconsciente, abriu os olhos. Nódoas cinzentas, que se disseminavam no tecto e nas paredes do quarto pequeno, amorteciam mais a claridade matinal que atravessava o vidro empoeirado de uma clarabóia. A esperança de uma vida nova foi também quebrantada pelo desânimo que estava consumindo sua alma desde o acometimento que a infelicitara no seu último emprego. Lembrou-se da casa do dr. Waldomiro. Às cinco da manhã já estava de pé, movida pelos repetidos gritos de dona Creuza, que a chamava para preparar o pequeno-almoço. Acorda, menina! Dormes muito! É por isso que estás preguiçosa! Cleyde se levantava e banhava o rosto no pequeno lavatório. Olhava-se no espelho. Seus olhos, recobertos pelas pálpebras intumescidas, tinham a cor das águas-marinhas; ela se orgulhava deles. Depois de fazer o asseio pessoal e a simples maquiagem, colocava o avental branco para iniciar a rotina dos afazeres enfadonhos. Sua mente estava limitada por essas actividades. Para ela, a manhãs eram as mesmas dos dias passados. Bom dia, dona Creuza, estava indisposta, por isso não lavei a louça; mas é pra já! Ela resmungava para si: ah, a minha patroa é muito exigente! Lembrou-se que certa noite, o dr. Waldomiro, encontrando-a casualmente dentro de casa, inesperadamente a puxara pelo braço, e disse: depois que ela morrer, vou casar contigo! O dr. Waldomiro era funcionário aposentado da Alfândega.

Ele controlava a importação de insumos diversos, bens de consumo, equipamentos eletrónicos e automóveis de luxo. Recebia elevadas propinas para deixar passar ilegalmente muitos desses produtos valiosos. Nos leilões, os carros contrabandeados eram vistos sem uma das portas, sendo arrematados por um preço muito aquém do valor real por alguém aparentemente desinteressado nessa falta. Depois do leilão, o dono do carro recebia a porta, que era colocada em alguma oficina. A compensação pecuniária para o dr. Waldomiro vinha breve. Assim, ele enriquecia à vista de todos com a conivência das autoridades superiores entre as quais estava o representante do Governo, que, segundo diziam, era um sibarita impudente e corrupto. Depois de aprontar o lauto pequeno-almoço, Cleyde continuava na preparação do almoço.

O dr. Waldomiro chegava a casa por volta do meio-dia. Cleyde, arruma a mesa!, gritava Creuza. Depois do banho, ele vinha sentar-se à mesa, ocupando a cabeceira desta. À sua direita ficava Creuza; ao lado desta, a jovem Zoraia. E à sua esquerda, o Ricardo, sempre atirado quando via Cleyde. Creuza segurava um pequeno sino de prata e, com um gesto calculado, dobrava o mesmo, avisando a Cleyde que já deveria trazer o almoço. Às vezes, quando ela virava a cabeça para falar com a filha, o dr. Waldomiro aproveitava a oportunidade para acariciar a coxa de Cleyde, que permitia essa licenciosidade com medo de perder o emprego, ou, talvez, porque se lembrava da promessa do velho desbriado.

Após o almoço, ela continuava a rotina diária com a limpeza dos três carros contrabandeados, mas já legalizados, que ocupavam uma garagem do tamanho de uma casa média. Após o jantar, continuava em actividade na preparação da ceia. Quase todas as noites o dr. Waldomiro recebia visitas, o que prolongava o trabalho dela até alta hora da noite. Depois, já extenuada, só lhe restava ir para a cama na qual repousava o seu belo corpo de mulher já feita. Como vivia em casa de família, só tinha folga parcialmente aos domingos. Cleyde tinha dezoito anos. Ela nascera de uma família de empregadas domésticas, dessa espécie de família que abunda neste vasto país, indolente pela própria natureza, mas cheio de esperteza marota; esse tipo de família da qual a prole fecunda vem da pobreza que lhe permite de graça, entre os poucos prazeres, o pequeno espaço de uma cama. Novas gerações vêm com a mesma sina, sujeitas, quem sabe, ao inexorável jogo da competição. Hoje, eu vou procurar um novo emprego, ou aceito a proposta daquela mulher?, pensou ela, ainda com os olhos fixos no tecto do quarto. Não tenho coragem para fazer isso! Mas eu também poderia ir à casa do dr. Waldomiro e exigir meus direitos. Aquele canalha do filho dele ainda vai-me pagar! Preciso ter coragem! Ele precisa reparar isso!

Cleyde era, de certo modo, uma excepção entre a maioria das pessoas da sua classe. Observe o leitor o seu nome próprio. Seus pais lhe deram esse nome, talvez, tirando-o de algum almanaque, ou, talvez, tomando-o das personagens de novelas ou filmes. A mesma coisa se poderia dizer da sua fala. O dr. Waldomiro se admirava das expressões quase correctas dessa moça que, provavelmente, viera de uma família sem a necessária escolaridade. Escuta, Cleyde! Algum dia ainda vou-te amparar. Você é tão bonita! Minha mulher é uma megera!, sussurrava ele ao ouvido dela, ocasionalmente. Talvez ele fosse sincero com ela. Suas trapaças eram extradomésticas e, sobretudo, ligadas ao contrabando». In LS Ferreira, Sedução Fatal, CDD 869.93, Paka-Tatu, 2005, ISBN 85-8-794-572-6.

Cortesia de PakaTatu/JDACT

JDACT, LS Ferreira, Literatura, Crónica,

O rei que esmorece e a rainha sanhuda: a crise dinástica de 1383-1385 através das emoções nas crónicas de Fernão Lopes. Inês Olaia. «Numa crónica em que as referências ao coração se multiplicam, o de Leonor Teles surge definido como grande…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Problemas e Conceitos

«(…) Enfim, a expressão desta emoção faz claramente parte da discursividade política. É mesmo considerada a emoção régia por excelência, da mesma forma que divina, e surge em consequência de um qualquer acto que desafia a potestas. No final da Idade Média, a ira encontra inclusivamente diversos graus de expressão consoante o que a expressa. Em sentido estrito, responde a uma ofensa, uma desvalorização, em público e injusta, relacionando-se de forma próxima com a honra. Importa, no entanto, sempre, medir a sua expressão, que não seja exagerada. A ira, por sua vez, inspira medo. Mas medo, temor e receio são três palavras que designam variações do mesmo tema, ou assim parecem, e articulam-se estreitamente com a legitimidade do governo. De facto, parece certo na historiografia que faz parte do governo (rulership) a necessidade de se fazer respeitar e amedrontar (to be feared), incutindo terror no que lhe está subordinado. A ira régia, de que falávamos acima, tem precisamente essa como uma das suas funções.

O medo e a sua relação com a figura régia na Castela do século XIV foi já alvo de estudo e dele partiremos para tentar aduzir algumas ideias que nos podem ser úteis. As Partidas de Alfonso X surgem-nos como ponto de partida. É aí que se encontra a noção fundamental da diferença entre temor e medo. O temor tem a raiz no amor: teme-se, portanto, a quem se deve amar, Deus e o soberano. O medo como tal radica no espanto. E aqui encontramos problemáticas delicadas de tradução e interpretação tanto da bibliografia como das fontes. O medo, com raiz latina em metus e de que deriva o verbo amedrontar, e o temor, com origem em timor e de que deriva o verbo temer, são coisas muito diferentes, embora tendamos a usá-las quase da mesma forma. Por vezes, o medo está relacionado com a protecção da integridade física e da honra daquele que o sofre. Nas crónicas castelhanas, o medo parece funcionar como meio de legitimar e encenar rupturas para depois restabelecer a normalidade a partir de fora, variando na prática com o momento político. É o mesmo artigo de François Foronda que nos chama a atenção para a polarização clássica do poder régio medieval: o polo positivo como rei/amor/temor e o polo negativo tirano/espanto/medo. O uso de qualquer um destes termos pelo cronista Fernão Lopes é delicado: muitas vezes misturam-se e sobrepõem-se. Para complicar, a língua portuguesa junta um terceiro termo a estes dois polos: o receio, que se parece com uma variante mais suave do medo.

A estes dados, podemos ainda juntar um outro: e como é que as mulheres e os homens se distinguem neste campo? Havia uma diferença na percepção e na expressão de emoções entre os dois géneros? A resposta curta é: sim. Quando há mulheres em patamares de poder, estas têm à disposição o mesmo tipo de instrumento de comunicação que qualquer homem. No entanto, parece que a cronística tende a mostrar desagrado quando isso acontece, preferindo reservar-lhes os papéis ditos tradicionais. Em si mesmas, no entanto, as emoções políticas não têm género, mesmo que as mulheres da aristocracia tenham acesso a uma paleta de emoções muito mais restrita. O facto é curioso, tendo em conta que a sociedade medieval faz, das mulheres, seres mais emotivos por natureza.

A sanha, o amor e o desequilíbrio: Leonor e Fernando

No final da Idade Média, a teorização política apresenta-se muito ligada à metáfora do corpo: transpõe a visão teológica da Igreja como corpo místico de Cristo, ligando assim o rei ao reino como Cristo à Igreja. A concpção orgânica e pessoal do governo coloca a compleição e o temperamento do monarca sob escrutínio, tal como a sua relação com o corpo que é o reino. Ao coração dá-se um particular destaque, definindo-se pelo lugar das emoções o próprio monarca. Foi aí, no coração, que a medicina florescente nos séculos XII-XIII localizou as emoções. Na verdade, chega mesmo a considerar-se que as emoções são os movimentos da alma, que se manifestam somaticamente no coração. À luz do tempo, portanto, todas as emoções sem excepção por lá passam. E que dizer do tamanho do coração de um grande senhor? Numa crónica em que as referências ao coração se multiplicam, o de Leonor Teles surge definido como grande, justificando as suas acções/emoções fora do comum, e caracterizado como vingador. Em qualquer uma das crónicas que falamos, as emoções da rainha parecem muitas vezes excessivas, desregradas ou mal ritualizadas. Mas se assim é, aquelas que o rei Fernando expressa por ela estão em patamar similar.

Por tudo o que expusemos, é lógico que a ira seja uma das emoções mais amplamente expressas na generalidade. A surpresa surge quando, analisando a Crónica de D. João I, é a rainha Leonor Teles que domina as referências à sanha em toda a Primeira Parte, quer seja porque a emoção é sentida e expressa por ela, quer esteja apenas no seu entorno directo. Sofre-a e a ela ninguém podia fazer nojo, porque sofreria rapidamente a sua sanha. Esta consideração de Fernão Lopes obriga-nos a retomar a necessidade de a ira régia ser moderada. O desregramento que aponta a Leonor Teles é mais um factor que contribui para justificar a sua queda. Notemos que Fernão Lopes equipara, na primeira ocasião que citámos, o ódio que pede vingança ao amor que não descansa enquanto não alcança quem quer. Em ambos a rainha se viu ou vê enredada. A ira implica, directamente, a emoção seguinte que aqui abordamos na relação com Leonor Teles: o medo». In Inês Olaia, O rei que esmorece e a rainha sanhuda: a crise dinástica de 1383-1385 através das emoções nas crónicas de Fernão Lopes, Revista Medievalista nº 27, Janeiro-Junho 2020, ISSN 1646-740X.

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