quarta-feira, 7 de outubro de 2020

A Bagagem do Viajante. José Saramago. «Quando as correias da mochila deram em cortar-me a pele queimada, tirei a camisa, fiz dela uma rodilha, que acomodei no ombro esquerdo, e ali assentei o peso»

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De Quando morri virado ao mar

«(…) Deixei a lagoa pelo meio da manhã, quando o sol limpara já todo o céu. Sobre a água, que as rápidas aragens mal agitavam, não tinham ficado vestígios da neblina cerrada que, no amanhecer, cobrira toda a superfície. Valera a pena acordar cedo e ver o nevoeiro rolar sobre a lagoa em flocos soltos, como se cuidadosamente o sol os varresse até nada mais ficar entre a água e o céu azul. Arrumei os petrechos, atirei-os para as costas, e, descalço, comecei a longuíssima caminhada pela praia fora, entre o bater das ondas e a panorâmica vagarosa das arribas vermelhas. A maré enchia, mas havia ainda extensas toalhas de areia molhada e dura, por onde era fácil caminhar. O sol estava quente. De cabeça descoberta, o corpo um pouco inclinado para compensar o peso da mochila, marchava em passo certo, como era meu hábito, procurando esquecer-me de que as pernas me pertenciam, deixando-as viver da sua vida própria, do seu movimento mecânico. Foi assim que sempre gostei de caminhar, vinte ou trinta quilómetros sem um descanso, apenas o rápido sorvo na bica de uma fonte, e ala. Também não parei para almoçar: faltava-me o apetite por tanto sol que apanhara nos dias anteriores, faltava-me sobretudo a paciência para cozinhar na praia. Limitei-me a comer duas laranjas que se desfaziam em doçura. Trincava as cascas ao mesmo tempo que a polpa e cuspia para longe os caroços, como um garoto feliz. Quando as correias da mochila deram em cortar-me a pele queimada, tirei a camisa, fiz dela uma rodilha, que acomodei no ombro esquerdo, e ali assentei o peso. Segui para diante, aliviado das dores. O sol ardia com mais fogo. Sentia-o nas costas como a palma de uma mão esbraseada, ao passo que começava a nascer e a irradiar uma espécie de adormecimento na nuca. O suor arrepiava a pele naquele sítio. Aproximei-me da rebentação e esfreguei a cara, os ombros, a nuca. Atirei chapadas de água para as costas. A mochila aumentara de peso. Passei-a para o ombro direito e, tropegamente, a camisa caiu na areia escaldante. Fiquei a olhá-la, como se nunca a tivesse visto, enquanto as correias me vincavam o ombro. Cheguei mesmo a dar alguns passos, e foi preciso um grande esforço para compreender que devia voltar para trás e levantá-la do chão. Senti-me esquisito, pairando no ar, e esta sensação não me deixou, nem mesmo quando me sentei e deixei cair de costas. Havia dentro de mim uma náusea um pouco embaladora que me obrigou a rolar para um lado. O sol estivera a dar-me nas pálpebras fechadas: entre os meus olhos e o céu havia uma cortina rósea, a cor delgada do sangue que me corria confusamente dentro do corpo.

Passou-me o rápido pensamento de que estava a sentir os primeiros efeitos de uma insolação. Inquieto, levantei-me de golpe, sacudi-me como um cão, e recomecei a caminhada. Entretanto, a maré empurrara-me para a areia seca, que vibrava sob o calor. Das arribas vinha o zumbido de milhares de insectos que o sol endoidecia. Nas pausas da rebentação, a zoada, áspera como um rangido de serra circular, atordoava-me e acentuava a sensação de náusea que não me deixara. Foram muitos quilómetros assim. Por várias vezes parei e decidi não dar mais um passo. Mas logo a ardência me obrigava a levantar-me. Dos lados das arribas, nem uma sombra. O sol queimava-as de frente agora, e continuava a verrumar-me a nuca. Perdi a consciência. Andava como um autómato, já sem suor, com a pele sequíssima, excepto as grossas gotas que se formavam nas fontes e corriam devagar, viscosas, pelo rosto abaixo. Toda a tarde se passou assim. O sol principiava a baixar quando atingi a povoação que devia ser a minha primeira etapa. Ali podia alimentar-me, matar a sede, descansar numa sombra. Mas nada disto fiz. Calcei-me como num sonho, gemendo com dores nos pés queimados, e meti-me à estrada, que, em curvas dobradas, subia as arribas. Parei uma vez ainda, meio perdido, olhando do alto o mar que se mudava numa cor escura. Continuei a subir, e achei-me fora da estrada, sem saber como, a meter por entre pedras até à beira da altíssima arriba a pique. O chão inclinava-se perigosamente, antes de se furtar na vertical. Foi ali que decidi passar a noite. Deitei-me com os pés para o lado do mar e do desastre, enrolei-me na manta e, a arder da febre do sol, fechei os olhos. Adormeci e sonhei. Quando tornei a abrir os olhos, o sol roçava já o horizonte. Que faço eu aqui?, perguntei em voz alta. E foi em movimentos de pavor que reuni as coisas e voltei à estrada, fugindo. Enquanto andava, ia pensando que ali eu não era eu, que o meu corpo ficara morto virado ao mar, no alto da arriba, e que o mundo estava todo cheio de sombras e confusão. A noite apanhou-me na margem do rio, com uma cidade diante que eu não reconhecia, como as torres ameaçadoras dos pesadelos. Ainda hoje, tantos anos passados, me pergunto que vulto de mim terá ficado disperso na brancura das areias ou imobilizado em pedra na arriba cortada pelo vento. E sei que não há resposta». In José Saramago, A Bagagem do Viajante, 1969, Editorial Caminho, 1998, ISBN 978-972-212-339-6.

Cortesia de ECaminho/JDACT

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