terça-feira, 27 de outubro de 2020

Guerras Climáticas. Harald Welzer. «Durante esta guerra genocida, travada no princípio do século XX, uma boa parte da população indígena da África do Sudoeste não foi exterminada; foi conduzida a campos de concentração…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Porque mataremos e seremos mortos no século XXI

«Um leve tinir atrás de mim fez com que virasse a cabeça. Seis negros caminhavam em fila, percorrendo penosamente a senda estreita, Eles avançavam erectos e devagar, balançando pequenos cestos cheios de terra nas cabeças, e o ruído acompanhava cada um de seus passos, (...) Eu podia contar-lhes as costelas, as articulações de seus membros lembravam os nós de uma corda; cada um deles trazia uma golilha, um anel de ferro soldado ao redor do pescoço, todos interligados por uma corrente frouxa, cujos elos excedentes pendiam entre eles: era o seu avanço compassado que fazia com que os elos tilintassem num ritmo regular, Esta cena, descrita por Joseph Conrad no seu romance Intitulado O Coração das Trevas, descrevia a época de maior florescência do colonialismo europeu, distando dos dias de hoje pouco mais de cem anos.

A brutalidade impiedosa, com a qual os primeiros países industrializados buscavam satisfazer sua fome de matérias-primas, de terras e de poder, e que deixou as suas marcas sobre os demais continentes, não é mais aceite pelas condições vigentes nos países ocidentais. A memória da exploração, da escravidão e do extermínio tornou-se a vítima de uma amnésia democrática de que estão afectados todos os estados do Ocidente, que não querem recordar que a sua riqueza, do mesmo modo que o seu poderio e progresso, foram construídos ao longo de uma história mortífera. Em vez disso, o que se encontra é um orgulho pela descoberta, observância e defesa dos direitos humanos, pela prática do politicamente correcto, pela participação em actividades humanitárias, sempre que nalgum lugar da África ou da Ásia uma guerra civil, uma inundação ou uma seca compromete as necessidades fundamentais de sobrevivência dos povos. Determinam-se intervenções militares para ampliar os domínios da democracia, esquecendo que a maioria das democracias ocidentais foi edificada sobre uma história de guerras de fronteiras, limpeza étnica e genocídios.

Enquanto se reescrevia a história assimétrica dos séculos XIX e XX dentro das condições de vida confortáveis e mesmo luxuosas das sociedades ocidentais, muitos habitantes de países do segundo e do terceiro-mundo mal suportam ouvir falar em tal história, porque foram dominados violentamente através dela: poucos dos países pós-coloniais foram conduzidos a uma soberania estável, muito menos a condições de bem-estar social; em muitas dessas nações, a história da espoliação continua a ser escrita sob diferentes disfarces e, em numerosas sociedades frágeis, não se encontram hoje sinais de progresso, mas sim de maior regressão.

O aquecimento progressivo do clima, um produto da fome inextinguível por mais energia fóssil dominante nas terras que primeiro se industrializaram, prejudica com maior rigor as regiões mais pobres do mundo; uma amarga ironia, que escarnece toda a esperança de que a vida se possa tornar algum dia mais justa. A capa deste livro mostra o vapor Eduard Bohlen, antigamente encarregado de serviços postais, cujos destroços permanecem há quase cem anos recobertos pela areia do deserto da Namíbia. Ele desempenhou um pequeno papel na história das grandes injustiças. A 5 de Setembro de 1909, no meio do nevoeiro, o barco encalhou diante da costa do território que na época se denominava África do Sudoeste Alemão. Hoje em dia, os restos do navio se encontram duzentos metros terra adentro; durante o século transcorrido, o deserto se ampliou oceano adentro. O Eduard Bohlen, que percorria desde 1891 a linha comercial oceânica da companhia Woermann, sediada em Hamburgo, regularmente transportava correspondência para a África do Sudoeste Alemão. Durante a guerra de extermínio travada pela administração colonial alemã contra as tribos Hereros e Namas, serviu ocasionalmente como navio negreiro.

Durante esta guerra genocida, travada no princípio do século XX, uma boa parte da população indígena da África do Sudoeste não foi exterminada; foi conduzida a campos de concentração ou levada para campos de trabalhos forçados, em que os prisioneiros de guerra eram vendidos como trabalhadores escravos. Bem no começo da guerra, a administração colonial alemã enviou a um comerciante sul-africano chamado Hewitt 282 prisioneiros, que foram alojados precariamente nos porões do Eduard Bohlen, sem que lhes encontrassem melhores possibilidades de acomodação, e com os quais não se sabia exactamente o que fazer, enquanto os Hereros não fossem completamente derrotados. Hewitt ficou entusiasmado com essa possibilidade e barganhou para que o preço fosse reduzido para 20 marcos por cabeça, com o argumento, considerado justo, de que os homens já estavam embarcados e ele não estava preparado para pagar pelas mercadorias despachadas ao preço normal, além dos direitos alfandegários correspondentes. Ele obteve os prisioneiros em condições mais favoráveis e o Eduard Bohlen partiu do porto de Swakopmund, a 20 de Janeiro de 1904, em direcção à Cidade do Cabo, na África do Sul, de onde os homens foram enviados para trabalhar nas minas». In Harald Welzer, Guerras Climáticas, Porque mataremos e seremos mortos no século XXI, LeLivros, Geração Editorial, 2010, Wikipedia.

Cortesia de LLivros/GeraçãoE/JDACT

Harald Welzer, JDACT, Clima, Conhecimento,