sábado, 31 de outubro de 2020

Poesia no 31 Crisfal Cristóvão Falcão. «E com quanto era Maria piquena, tinha cuidado de guardar milhor o gado o que lhe Crisfal dezia; mas, em fim, foi mal guardado»

Cortesia de wikipedia e jdact

I

«Antre Sintra, a mui prezada,

e serra de Ribatejo

que Arrábeda é chamada,

perto donde o rio Tejo

se mete n’água salgada,

houve um pastor e pastora,

que com tanto amor se amarom

como males lhe causarom

este bem, que nunca fora,

pois foi o que não cuidarom.

II

A ela chamavam Maria

e ao pastor Crisfal,

ao qual, de dia em dia,

o bem se tornou em mal,

que ele tam mal merecia.

Sendo de pouca idade,

não se ver tanto sentiam,

que o dia que não se viam,

se viam na saudade

o que ambos se queriam.

III

Alg.as horas falavam,

andando o gado pascendo,

e então se apascentavam

os olhos, que, em se vendo,

mais famintos lhe ficavam.

E com quanto era Maria

piquena, tinha cuidado

de guardar milhor o gado

o que lhe Crisfal dezia;

mas, em fim, foi mal guardado;

IV

Que, depois de assi viver

nesta vida e neste amor,

depois de alcançado ter

maior bem pera mor dor,

em fim se houve de saber

por Joana, outra pastora,

que a Crisfal queria bem;

(mas o bem que de tal vem

não ser bem maior bem fora,

por não ser mal a ninguém).

V

A qual, logo aquele dia

que soube de seus amores,

aos parentes de Maria

fez certos e sabedores

de tudo quanto sabia.

Crisfal não era então

dos bens do mundo abastado

tanto como do cuidado;

que, por curar da paixão,

não curava do seu gado.

VI

E como em a baixeza

do sangue q e pensamento

é certa esta certeza  

cuidar que o mericimento

está só em ter riqueza

enquerirom que teria[m]

e do amor não curarom;

em que bem se descontarom

riquezas, se faleciam,

por males que sobejarom.

VII

Então, descontentes disto,

levarom-na a longes terras,

esconderom-na entre .as serras,

onde o sol não era visto,

e a Crisfal deixarom guerras.

Além da dor principal,

pera mor pena lhe dar,

puserom-na em lugar

mau para dizer seu mal,

mas bom pera o chorar».

[…]

In Crisfal, Cristóvão Falcão, Coleção Textos Literários, Lisboa, 1962,

Cristóvão Falcão, Poesia, Alentejo, Cultura, JDACT,