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quarta-feira, 26 de junho de 2024

Dr. José Maria Rodrigues. Camões. A Infanta D. Maria (1521-1577). «sirva de exemplo claro meu tormento, com que todos conheçam claramente que quanto ao mundo apraz é breve sonho»

Cortesia de Publicações Foriente

Com a devida vénia ao Dr. José Maria Rodrigues (3.1761-06184643-2), Coimbra, 1910

Volta de Ceuta

«(…)

Vós, que escuitais em rimas derramado

dos suspiros o som, que me alentava

na juvenil idade, quando andava

em outro em parte do que sou mudado,

 

sabei que busca só, do já cantado

no tempo em que eu temia ou esperava,

de quem o mal provou, que eu tanto amava,

piedade, e não perdão, o meu cuidado.

 

Pois vejo que tamanho sentimento

só me rendeu ser fabula da gente

(do que comigo mesmo me envergonho),

 

sirva de exemplo claro meu tormento,

com que todos conheçam claramente

que quanto ao mundo apraz é breve sonho.

(Soneto 101)

 

É certo que este soneto é, por assim dizer, uma tradução do 1.º soneto de Petrarca; mas não se segue d'ahi que nelle se não encontrem elementos autobiographicos do nosso poeta. Reproduzo o soneto do poeta italiano, porque é um elemento de interpretação para o de Camões.

 

Voi ch'ascoltate in rime sparse il suono

di quei sospiri ond'io nudriva il core

in sul mio primo giovenile errore,

quand'era in parte altr'uom da quel ch'i'sono;

 

Del vario stile in ch'io piango e ragiono

fra le vane speranze e'l van dolore,

ove sia chi per prova intenda amore,

spero trovar pietà, non che perdono.

 

Ma ben veggi'or si come ai popol tutto

favola fui gran tempo: onde sovente

di me medesmo meço mi vergogno:

 

e dei mio vaneggiar vergogna è'l frutto,

e '1 pentirse, e '1 conoscer chiaramente

che quanto piace ai mondo è breve sogno.

In Dr José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do AHistórico/UCoimbra/JDACT

 Camões, Didácticas, Infanta D. Maria, JDACT, Dr José Maria Rodrigues, Universidade de Coimbra, 500 Anos  de Camões,

Dr. José Maria Rodrigues. Camões. A Infanta D. Maria (1521-1577). «Porém, pois o destino trabalhoso, que me escurece a Musa fraca e lassa, louvor de tanto preço não sustenta…»

Cortesia de Publicações Foriente

Com a devida vénia ao Dr. José Maria Rodrigues (3.1761-06184643-2), Coimbra, 1910

Volta de Ceuta

«(…)

Como já fica dicto, esta egloga foi dirigida a dona Francisca de Aragão. Na egloga 5.ª, escripta na mesma occasião, e bem assim no soneto 190, allude também Camões á projectada epopea. Em Ceuta ainda não pensava nella, como se infere da epistola 1.ª, est. 23-35, e se vê do soneto 267, manifestamente contemporâneo desta epistola, e dirigido pelo poeta a um seu admirador, que também fazia versos:

 

Se a fortuna inquieta e mal olhada,

que a justa lei do ceu comsigo infama,

a vida quieta, que ella mais desama,

me concedêra, honesta e repousada.

 

Pudera ser que a Musa, alevantada

com luz de mais ardente e viva flamma,

fizera ao Tejo, lá na pátria cama,

adormecer ao som da lyra amada.

 

Porém, pois o destino trabalhoso,

que me escurece a Musa fraca e lassa,

louvor de tanto preço não sustenta,

 

a vossa, de louvar-me pouco escassa,

outro sogeito busque valeroso,

tal qual em vós ao mundo se apresenta.

 

Forçado a desistir dos seus altos pensamentos, não tendo podido conseguir que a menina dos olhos verdes tornasse a olhar para elle, ferido no coração e no amor próprio, o poeta viu-se, com vergonha sua, fabula da gente, começou a servir de assumpto á maledicência». In Dr José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do AHistórico/UCoimbra/JDACT

Camões, Didácticas, Infanta D. Maria, JDACT, Dr José Maria Rodrigues, Universidade de Coimbra, 500 Anos  de Camões,

Dr. José Maria Rodrigues. Camões. A Infanta D. Maria (1521-1577). «co prado em gentileza, por quem o pastor triste endoudecia, por a praia do Tejo discorria a lavar a beatilha e o trançado. O sol já consentia que saísse da sombra o manso gado»

Cortesia de Publicações Foriente

Com a devida vénia ao Dr. José Maria Rodrigues (3.1761-06184643-2), Coimbra, 1910

 Volta de Ceuta

«(…)

Passado já algum tempo que os amores

de Almeno, por seu mal, eram passados,

porque nunca Amor cumpre o que promette,

entre uns verdes ulmeiros apartado,

regando por o campo as brancas flores,

em lagrimas cansadas se derrete,

quando a linda pastora, que compete

co monte em aspereza,

co prado em gentileza,

por quem o pastor triste endoudecia,

por a praia do Tejo discorria

a lavar a beatilha e o trançado.

O sol já consentia

que saísse da sombra o manso gado.

 

Já acordado daquelle pensamento,

que tão desacordado sempre o teve, (ver nota)

viu por acerto o bem que incerto tinha;

e porque, donde o amor a mais se atreve,

alli mais enfraquece o entendimento,

não lhe soube dizer o que convinha.

(Egloga 3.ª est. 1-2).

 

NOTA: Relêa-se o bellissimo soneto 279, que começa:

Doce sonho, suave e soberano.

se por mais longo tempo me durára!

Ah! Quem de sonho tal nunca acordara,

pois havia de ver tal desengano!

 

Pois se até ao invocar a musa inspiradora para o poema épico que vai emprehender, se presénte que o som vem d'uma parte, mas que a pancada é em outra!

 

Em vós tenho Helicon, tenho Pégaso;

em vós tenho Calliope e Thalia

e as outras sete irmãs, co fero Marte.

Em vós deixou Minerva sua valia;

em vós estão os sonhos do Parnaso;

das Pierides em vós se encerra a arte.

Com qualquer pouca parte,

senhora, que me deis de ajuda vossa,

podeis fazer que eu possa

escurecer ao sol resplandecente;

podeis fazer que a gente

em mi do grão poder vosso se espante

e que vossos louvores sempre cante.

 

Podeis fazer que cresça de hora em hora

o nome Lusitano, e faça inveja

a Esmirna, que de Homero se engrandece.

Podeis fazer também que o mundo veja

soar na ruda frauta o que a sonora

cithara Mantuana só merece.

(Egloga 4.ª, est. 1.ª e 2.ª)

In Dr José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do AHistórico/UCoimbra/JDACT

Camões, Didácticas, Infanta D. Maria, JDACT, Dr José Maria Rodrigues, Universidade de Coimbra, 500 Anos  de Camões, 

Dr. José Maria Rodrigues. Camões. A Infanta D. Maria (1521-1577). «Não me negueis, se andais para negar-me, porque, se contra mi 'stais levantados, eu vos ajudarei mesmo a matar-me»

Cortesia de Publicações Foriente

Com a devida vénia ao Dr. José Maria Rodrigues (3.1761-06184643-2), Coimbra, 1910

Volta de Ceuta

«(…)

Amor, com a esperança já perdida,

teu soberano templo visitei;

por sinal do naufrágio que passei,

em lugar dos vestidos, pus a vida.

 

Que mais queres de mi, pois destruida

me tens a gloria toda que alcancei?

Não cuides de render-me, que não sei

tornar a entrar-me onde não ha saída.

 

Vês aqui a vida e a alma e a esperança,

doces despojos de meu bem passado,

em quanto o quis aquella que eu adoro.

 

Nelles podes tomar de mi vingança;

e, se te queres inda mais vingado,

contenta-te co as lagrimas que choro.

(Soneto 50).

 

Pensamentos, que agora novamente

cuidados vãos em mim resuscitais,

dizei-me: e ainda vos não contentais

de ter, a quem vos tem, tão descontente?

 

Que phantasia é esta, que presente

cada hora ante os olhos me mostrais?

Com uns sonhos tão vãos inda tentais

quem, nem por sonhos, póde ser contente?


Vejo-vos, pensamentos, alterados

e não quereis, de esquivos, declarar-me

que é isto, que vos traz tão enleados?


Não me negueis, se andais para negar-me,

porque, se contra mi 'stais levantados,

eu vos ajudarei mesmo a matar-me.

(Soneto 93).

Pois se nem mesmo em versos que se occupam ex professo da menina dos olhos verdes, Camões deixa de se referir aos seus passados amores!»

In Dr José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do AHistórico/UCoimbra/JDACT

Camões, Didácticas, Infanta D. Maria, JDACT, Dr José Maria Rodrigues, Universidade de Coimbra, 500 Anos  de Camões,

quinta-feira, 20 de junho de 2024

Dr José Maria Rodrigues. Camões. A Infanta D. Maria (1521-1577). «De vontades alheias, que eu roubava, e que enganosamente recolhia em meu fingido peito, me mantinha. O engano de maneira lhes fingia…»

Cortesia de Publicações Foriente

Com a devida vénia ao Dr. José Maria Rodrigues (3.1761-06184643-2), Coimbra, 1910,

Em Lisboa

«Chronologicamente, a primeira poesia em que Camões se occupa da filha do rei Emanuel é, me parece, o soneto 134.

Apresentado á excelsa e gentil senhora e por ella afavelmente acolhido, o modesto escudeiro ficou deslumbrado !

No dia seguinte, o seu amigo João Lopes Leitão, pagem da lança do mallogrado principe herdeiro, e pessoa muito apreciada na corte, recebia estas confidencias:

Senhor João Lopes, o meu baixo estado

Ontem vi posto em grau tão excellente,

Que, sendo vós inveja a toda a gente,

Só por mi vos quiséreis ver trocado.

 

O gesto vi, suave e delicado,

Que já vos fez contente e descontente (1),

Lançar ao vento a voz tão docemente,

Que fez o ar sereno e sossegado.

 

(1) O poeta allude, naturalmente, a algum facto análogo (se não é o mesmo) ao que deu occasião a uns conhecidos versos de Andrade Caminha e á resposta de Lopes Leitão. Diz a rubrica, que precede esses versos: «A João Lopes Leitão, estando preso em sua casa, por entrar uma porta a ver as damas contra vontade do porteiro». P. de Andrade (Caminha, Poesias, p. 36 1 (Lisboa, 1791).

Eis como termina a resposta do jovial amigo de Camões:

Estou-me agora doendo

De quem tiver para si

Que é melhor andar vendo

Verduras, que estar aqui.

 

Ninguém haja dó de mi.

Por me ver nesta prisão ;

Hajam de meu coração.

Que vê tanto dano em si.

 

De vontades alheias, que eu roubava,

E que enganosamente recolhia

Em meu fingido peito, me mantinha.

O engano de maneira lhes fingia.

Que, despois que a meu mando as subjugava.

Com amor as matava, que eu não tinha

Porém logo o castigo que convinha

O vingativo Amor me fez sentir.

(Canção 2ª)

Nesta canção, cscriptu cm Ceuta, o poeta uttribue ao Amor a culpa tida manuelpelo joven, transcreverei algumas passagens de obras e documentos coevos e de escriptores modernos, as quaes constituem o melhor commentario ao soneto que fica reproduzido, especialmente aos versos 5 a 10. Começarei pela informação que, em carta de 21 de Janeiro de 1557, enviava a Carlos V o seu embaixador, Sancho de Córdova, que tinha vindo a Lisboa tratar da entrega da filha do rei Emanuel a sua mãe, a rainha D. Leonor, já então viuva também de Francisco L Repare-se que o diplomata espanhol chega a empregar palavras que também se lecm no soneto. «(La senora Infanta) es persona de grande entendimento y cordura, y mui reposada, y de poças palabras y bien dichas y de las valerosas personas que he visto». In Dr José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

 Cortesia do AHistórico/UCoimbra/JDACT

Camões, Didácticas, Infanta D. Maria, JDACT, Dr José Maria Rodrigues, Universidade de Coimbra, 500 Anos  de Camões, 

terça-feira, 11 de junho de 2024

Dr José Maria Rodrigues. Camões. A Infanta D. Maria (1521-1577). «E vendo-se depennndo. De puro penado morre. Se a queixumes se soccorre, lança no fogo mais lenha. Não há mal que lhe não venha»

Cortesia de Publicações Foriente

 

Com a devida vénia ao Dr. José Maria Rodrigues (3.1761-06184643-2), Coimbra, 1910


«Entre as encantadoras redondilhas de Camões figuram as duas voltas ao mote:

Perdigão perdeo a penna",

Não ha mal que lhe não venha.

Dizem ellas, num tom de accentuada melancholia:

Perdigão, que o pensamento

Subio a um alto logar,

Perde a penna do voar,

Ganha a pena do tormento.

Não tem no ar, nem no vento,

Asas com que se sostenha.

Não ha mal que lhe não venha !

Quis voar a uma alta torre,

 

Mas achou-se desasado;

E vendo-se depennndo.

De puro penado morre.

Se a queixumes se soccorre,

I.ança no fogo mais lenha.

Não há mal que lhe não venha !

 

O próprio perdigão depenado, que nem ao menos se podia queixar, sem lançar mais lenha no fogo, sem aggravar a sua situação, era o próprio Camões. O alto logar até onde subio o seu pensamento, a alta torre a que quis voar, era uma das mais nobres e mais sympathicas figuras femininas que teem vivido sob este bello sol de Portugal:

era a filha mais nova del-rei Emanuel, a infanta D. Maria (1).

NOTA: (1)

«É muito interessante a monographia de D. Carolina Michaelis de Vasconcellos a respeito da infanta D. Maria de Portugal (1521-1577) e as suas datnas (Porto, 1902).

Della transcrevo aqui a seguinte passagem: «De sangue real, herdeira da coroa, se não morresse um anno antes da catastrophe de Alcacer-Quebir, pertence á historia e teve biographos conscienciosos. Em creança e na flor da edade viu refulgir diante de seus olhos a coroa de França ; foi escolhida repetidas vezes para o throno imperial, orbis destinata império, outras tantas para o império de Hespanha. Acariciando sempre, no intimo do coração, este ultimo projecto, ficou ainda assim innupta, uma triste sempre-noiva. Este estado tragicomico que lhe foi imposto, mas que afinal acceitou com sublime altivez, aparentando tê-lo escolhido livremente, despertou a dolente sympathia dos coevos. E ainda hoje é capaz de suscitar a dos pósteros».

(2) Basta citar por agora os sonetos 27 e 193:

NOTA:

«Males, que contra mim vos conjurastes,

Quanto ha de durar tão duro intento ?

Se dura, porque dure meu tormento,

Baste-vos quanto já me atormentastes.

Mas, se assi porfiais, porque cuidastes

Derribar o meu alto pensamento,

Mais pôde a causa delle, em que o sustento,

Que vós, que delia mesma o ser tomastes.

E, pois vossa tenção com minha morte

E de acabar o mal destes amores,

Dai já fim a tormento tão comprido.

Assi de ambos contente será a sorte :

Em vós, por acabar-me, vencedores ;

Em mim, porque acabei de vós vencido».

 

«Erros meus, má fortuna, amor ardente.

Em minha perdição se conjuraram.

Os erros e a fortuna sobejaram,

Que para mi bastava amor somente.

Tudo passei. . . Mas tenho tão presente

A grande dòr das cousas que passaram,

Que já as frequências suas me ensinaram

A desejos deixar de ser contente.

Errei todo o decurso de meus annos ;

Dei causa a que a fortuna castigasse

As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.

Oh ! Quem tanto pudesse, que fartasse

Este meu duro gcnio, de vinganças !»


In Dr José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do AHistórico/UCoimbra/JDACT

Camões, Didácticas, Infanta D. Maria, JDACT, Dr José Maria Rodrigues, Universidade de Coimbra, 500 Anos  de Camões,

domingo, 31 de maio de 2020

Camões e a Infanta D. Maria no 31. Ceuta. José Maria Rodrigues. «Onde tão subtis regras lhe mostrasse, que nunca lhe passassem da memoria, em nenhum tempo, as cousas que passasse»

jdact

[…]
No Oriente
Das poesias lyricas escriplas por Camões no Oriente, três sobretudo constituem documentos importantes para a historia da sua paixão pela infanta. São ellas, por ordem chronologica, a elegia 3.a (O poeta Simonides fallando), a canção 10ª (Junto de um secco, duro, estéril monte) e a canção 6.ª (Com força desusada).
A elegia 3.a foi composta, pelo menos em parte, no fim do anno de 1553 ou no começo de 1554, para ser remettida ao seu destino pelas naus que iam partir para o reino (a elegia foi escripta ou pelo menos concluída talvez em Cochim, depois da expedição contra o rei da Pimenta. É possivel, com effeito, que o poeta para alli acompanhasse o vice-rei Affonso Noronha, que ia dar pressa ás naus do reino. Estas, no dizer de Couto, partiram até 15 de Janeiro. M. Perestrello, que voltava na S. Bento, em que fora o poeta, diz que partiram no dia 1 de Fevereiro, 1904).
Para bem se comprehender o estado de espirito do poeta ao escrever esta elegia, cumpre ter presente que, quando elle embarcou para a Índia, o casamento da infanta era cousa definitivamente assente e não devia tardar muito a effectuar-se. O futuro rei de Espanha havia mandado a Lisboa Ruy Gomez Silva, que sobre o assumpto se tinha intendido com João III [(o pouco sincero irmão da infanta ficou preso em uma armadilha que elle próprio tinha preparado, por conselho do activo e astuto Lourenço Pires Távora, embaixador junto de Carlos V. Quando este, formando novos planos políticos, resolveu casar o príncipe seu filho com uma filha do rei dos romanos e destinou a infanta dona Maria para o archiduque Fernando, Lourenço Távora avisou logo João III do novo perigo e aconselhou o alvitre de levar a infanta a não desistir do seu casamento com o filho de Carlos V. Era o meio seguro de inutilizar o novo projecto matrimonial. A infanta, que tanto desejava casar com o sobrinho, accedeu de bom grado ás indicações que neste sentido lhe foram dadas. Mallogrados, porém, dentro em pouco os planos de Carlos V, não restava a João III senão mostrar rosto alegre, e arranjar novos pretextos para adiar o enlace da irmã com o futuro rei de Espanha. Vejam-se as duas curiosas cartas de Lourenço Távora, escriptas em Dezembro de 1550, uma a João III e outra á infanta, e publicadas na Historia de varões illustres do appellido Távora de Ruy Lourenço Távora, Paris, 1648, e na Vida da Infanta dona Maria de fr. M. Pacheco. A carta dirigida á infanta é um modelo de cynismo… diplomático)].
Estava regularizada a questão da entrega do dote e agora o único pretexto que restava ao monarca português era a expressa acquiescencia do imperador, acquiescencia que elle… tinha pejo de soliicitar, apesar das instancias da já outras vezes ludibriada senhora. Oiçamos o próprio João III historiando o caso, quando as suas conveniências politicas lhe fizeram perder o pejo, embora já fosse tarde : Ruy guomcz se despedio de mim &, depoys de ser com o Primcepe, me screueo o Primcepe muitos cõtentamentos da rresposta que lhe mandara pelo dito Ruy guomez, da qual todauia comuinha auisar o Emperador, por ele asy lho ther mãdado. Sabemdo a Imfanta minha Irmaã os termos e que este neguocio estaua & como aymda se auia desperar por rresposta do Emperador, me pedio que eu lhe quisesse despachar huü correo, pelo qual lhe fizesc saber o comtentamento q eu tinha de se este negocio fazer & dos termos em q estaua & do que eu nele acerqua de seu dotte podia fazer. Porque emtemdia q, em quanto o Emperador ysto nam tiuesse sabido de mim, nam poderia o neguocio deixar de pasar a gramde dilaçam ; & com quanto eu em toda cousa deseje sempre dar todo comtentamento posiuel a Imfamte minha Irmãa, nesta em q me falou tiue pejo para o nam fazer como lho aela parecia. Porque deixar de o por em obra como mo rrequcria nam era causa de se o negocio deixar de fazer estamdo elle tamto adiamte como estaua. Do publico, porém, não era conhecido esse pejo, e quando Camões enviou para o reino a elegia 3.a , estava convencido de que a sua bem-amada já se achava em terras de Castella, casada com o principe Philippe.
Que restava ao desolado poeta? Varrer da memoria o seu doce sonho, que já não servia senão para o entristecer e magoar.
Vejamos como elle nos revela o estado da sua alma.

O poeta Simonides, fallando
Co capitão Themistocles um dia,
Em cousas de sciencia praticando,

Um’arte singular lhe promettia,
Que então compunha, com que lhe ensinasse
A lembrar-se de tudo o que fazia;

Onde tão subtis regras lhe mostrasse,
Que nunca lhe passassem da memoria,
Em nenhum tempo, as cousas que passasse.

Bem merecia, certo, fama e gloria
Quem dava regra contra o esquecimento
Que sepulta qualquer antiga historia.

Mas o capitão claro, cujo intento
Bem differente estava, porque havia
Do passado as lembranças por tormento,

Oh illustre Simonides (dizia).
Pois tanto em teu engenho te confias.
Que mostras á memoria nova via:

Se me desses um’arte, que em meus dias
Me não lembrasse nada do passado,
Oh quanto melhor obra me farias!

Se este excellente dito ponderado
Fosse por quem se visse estar ausente.
Em longas esperanças degradado,

Oh como bradaria justamente:
Simonides, inventa novas artes
Não midas o passado co presente!
[…]
In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/JDACT

No 31. Camões e a Infanta D. Maria. Ceuta. José Maria Rodrigues. «Aquella triste e leda madrugada, cheia toda de mágoa e de piedade, emquanto houver no mundo saudade, quero que seja sempre celebrada»

jdact

De volta de Ceuta
«(…) Como se não ririam dos desastres amorosos do apaixonado poeta os seus inimigos litterarios, os que o apodavam de rústico Magalio, de pomposo Chérilo; os que o tratavam de ignorante, de mau poeta, cujos versos não eram caballinos, antes pareciam de cavallo? Como não deviam irritar o brioso e destemido mancebo, que tinha a consciência do que valia como poeta e que nunca deixou ver as solas dos pés, quando aggredia ou era aggredido, como não deviam irritá-lo, digo, essas más línguas, peores tenções, damnadas vontades, nascidas de pura inveja de verem su amada yedra de si arrancada y en otro muro asida, essas amizades mais brandas que cera, que se accendiam em ódios que disparavam lume que lhe deitava mais pingos na fama que nos couros de um leitão? (escrita da Índia; estou convencido de que entre as amisades de que falla o poeta se contava a de Andrade Caminha, o mal succedido cortejador de dona Francisca de Aragão).
E para acabar de lhe azedar a alma, não faltariam os boatos de que a infanta tinha todo o empenho em não protrahir o seu casamento com o principe das Astúrias.
Foi talvez por pôr a bocca no mau successo dos amores de Camões com a infanta, que Gonçalo Borges, encarregado dos arreios do paço, foi gravemente ferido pelo poeta, na rua de Santo Antão, em pleno dia, quando toda a Lisboa andava na rua para assistir á procissão do Corpo de Deus (16 de Junho de 1552) [a narrativa do facto, contida na carta de perdão, auctoriza, a meu ver, a conjectura de que não foi casual a intervenção do poeta na briga travada entre Gonçalo Borges e os dous cavalleiros mascarados. A immediata retirada destes faz suppôr que o poeta tinha contas a ajustar com aquelle, mas não queria ser o provocador].
Como se sabe, o poeta esteve preso até 7 de Março de 1553 e foi solto por lhe ter perdoado a parte offendida e por ir servir aquelle anno na Índia. E antes de findar o mês, talvez no dia 26, lá saía elle da amada terra, em que lhe ficava o magoado coração.
E tanto mais magoado, quanto ás saudades da infanta accresciam também agora as da menina dos olhos verdes, que, sinceramente compadecida da sorte d'aquelle a quem tanto havia amado e esquecendo profundos aggravos, não quis faltar ao amargurado poeta com o seu perdão nem com as sinceras lagrimas da despedida, na manhã do dia de embarque.

Aquella triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Emquanto houver no mundo saudade,
Quero que seja sempre celebrada.

Ella só, quando amena e marchetada
Saía, dando á terra claridade,
Viu apartar-se de uma outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.

Ella só viu as lagrimas em fio,
Que, de uns e de outros olhos derivadas,
Juntando-se, formaram largo rio.

Ella ouviu as palavras maguadas,
Que poderão tornar o fogo frio
E dar descanso ás almas condemnadas.

(Soneto 20).

E já em pleno mar, é ainda esta doce imagem que o poeta evoca, para arrostar os perigos que o esperavam:

Por cima destas aguas, forte e firme,
Irei aonde os fados o ordenaram,
Pois por cima de quantas derramaram
Aquelles claros olhos, pude vir-me.

Já chegado era o fim de despedir-me;
Já mil impedimentos se acabaram.
Quando rios de amor se atravessaram
A me impedir o passo de partir-me.

Passei-os eu com animo obstinado.
Com que a morte forçada gloriosa
Faz o vencido já desesperado.

Em qual figura ou gesto desusado
Pôde já fazer medo a morte irosa
A quem tem a seus pés, rendido e atado?

Mas, como vamos ver, não era só na menina dos olhos verdes que o poeta ia pensando durante a longa e acidentada viagem para a Índia».
[…]
In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/JDACT