sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Até que o Amor me Mate. Maria Lopo de Carvalho. «E assim me afeiçoei ao lugar gelado que encontrei dentro do coração. Não só eu, todas nós. Qual das minhas amigas ou das minhas damas de companhia pode dar-se ao luxo de guardar para si doces e quentes sentimentos?»

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As Mulheres de Camões
Violante de Andrade. 1543
«(…) João III é de uma índole rara: mais quer assistir aos autos-de-fé
na varanda do Paço da Ribeira do que dançar num baile da corte; mais quer rezar do que receber os embaixadores; mais quer aos livros de deve e haver do que a obra de poeta ou cronista. Mas o que mais lhe apraz é inspeccionar com minúcia a quantidade de pimenta que entra e sai dos armazéns: cheira a mercadoria, confere as balanças e acode na compre e venda de escravos malabares e cafres com a mesma dedicação com que faz filhos à rainha. Tudo nele é um compra-e-vende. Reconheço-lhe algum engenho e aguda memória, mas sei que alcançou pouco nas letras e nunca aprendeu bem o latim. Talvez por isso se tenha empenhado tanto no ensino das artes. Nisso sim, admiro-o. Bastas vezes tenho sabido de mancebos que manda estudar para o estrangeiro, financiando-lhes o sustento. A verdade é que ousou transferir a universidade de Lisboa para Coimbra e que não se poupa a esforços para contratar lentes da Universidade de Paris. Porém, não posso deixar de me compadecer e de temer pelo futuro do reino. Dos nove filhos que lhe nasceram, só dois vingaram: o infante João Manuel, muito chegado ao meu Antoninho, e a infanta Maria Manuela, que a Espanha foi casar-se. Bofé! Agastou-me sobremaneira o sigilo à volta desse malfadado casamento da infanta com Filipe de Áustria, o filho de Carlos V que irá, por certo, ser o próximo rei. O sigilo foi tamanho, que nem ao senhor meu marido, no alto posto que representa, disseram água-vai. Uma afronta.
Não me falta ouro, nem jóias, nem pedras preciosas; não me faltam honrarias e deferências, não me faltam pajens, nem criados, nem escudeiros, mas falta-me por vezes paciência para cumprir os preceitos da minha condição. Habituaram-me a aceitá-los sem contestar e eu habituei-me a cumpri-los, a espartilhar o coração, sem me emocionar, sem pestanejar, sem me acalorar. E assim me afeiçoei ao lugar gelado que encontrei dentro do coração. Não só eu, todas nós. Qual das minhas amigas ou das minhas damas de companhia pode dar-se ao luxo de guardar para si doces e quentes sentimentos? Aquela que é espancada pelo seu marido e senhor? A que se ajunta com o copeiro quando o marido se ausenta? A que tem filhos bastardos e os dá à rocia sem sequer se confessar? A que oculta a entrada do amante no convento? Se entregam o coração denunciam-se. Tenho o casamento que meus pais ditaram e o que deve ser, com regalias, distinções e deveres para que as nossas casas, fortunas e filhos se guardem e medrem e hajam como Deus manda e a nobreza obriga: um casamento de linhagem e preceito que a tudo renuncia e que tudo denuncia. Não posso, pois, enjeitar o dever de denunciar quem vejo pecar, e faço-o de bom grado e com gosto perante o Tribunal da Santa Inquisição (maldito) ou logo ao irmão de el-rei, o cardeal-infante Henrique, inquisidor-gera1. Livro-me assim de suspeitas. Quereis ser santa? Juntai-vos a eles e pecai em silêncio. Neste reino, nesta corte e nesta casa mais vale parecer do que ser, pois que o que parece há-de ter a força do que é. Quero pois que as bruxas ardam todas na fogueira, bem como os que se negam a comer carne de porco e os que blasfemam contra Deus Pai Todo-Poderoso e renegam o Senhor Santo Cristo. Quero vê-los a todos a arder no fogo dos infernos, tal como os vi e extasiei no Terreiro do Paço, no primeiro auto-de-fé deste reino, no ano da graça de 1540». ???» In Maria João Lopo de Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN -978-989-741-488-6.

Cortesia de Odo Livro/JDACT

Erec e Enide. Manuel V. Montalbán. «Não. O sentido demasiado vulgar com que utilizas a expressão de “a ideia platónica do egoísmo”. Sei que é frequente a utilização desta fórmula, mas não é clarificadora…»

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«(…) Acompanho-os até aos seus quartos, sublinhando com um gesto que o de Myrna estava demasiado afastado da minha suite e nos seus olhos presumi a picardia de uma interrogação. Achas? Ficámos de nos encontrar um quarto de hora depois para o jantar e aproveito o tempo para pentear a minha cabeleira branca, levemente azulada por causa dos cosméticos, essa cabeleira que as minhas alunas adoram quando pousa sobre ela um raio de sol, o raio de sol de sempre, que penetra pelo vitral de sempre, ao longo dos meus quarenta anos de docência como catedrático e que já desde as suas origens adivinhou a situação exacta das minhas prematuras cãs. O cabelo e as mãos. Sei que gostam das minhas mãos capazes de traçar sulcos no ar, que secundam as minhas explicações sobre o papel do veado nos rituais célticos, o animal que fazia a ligação entre os deuses e os homens, aqueles que conduzem à sidh, o além-túmulo, ou o traçado das minhas mãos no ar atrás da metempsicose nas origens de crenças sobre a transmigração das almas de uns corpos para os outros. Através do movimento das suas mãos percebemos a corrida do veado ou o momento em que as almas saem de uns corpos e ocupam outros, diziam-me as raparigas com entusiasmo. Nos anos 50 aplaudiam, por vezes, o final das minhas aulas. Nos anos 60 foi desaparecendo esta possibilidade à medida que os estudantes se tornaram politicamente mais activos e didacticamente mais desconfiados e, inclusive, provocadoramente cínicos, embora possa dizer, com orgulho, que nunca tive nas minhas aulas nem um princípio de contestação, nem meia algazarra, o que os meus colegas não gostavam nada. E que para os rapazes tu és o saber e isso não discutem, por muito que leiam O Idiota da Família. Não liam O Idiota da Família, mas eu sim, com a mesma curiosidade com que lia o Hara Kiri ou o National Ramport ou a Vogue, para estar em dia com tudo e ter a réplica adequada a qualquer intervenção de um delegado de turma ou de qualquer das amigas de Madrona que tinham alcançado graças à Dunia ou à Vogue uma certa capacidade de entender, por fim, a sua condição feminina, não aos níveis de Simone de Beauvoir, mas quase. A Myrna ria-se do que chamava a minha versatilidade intelectual, paralela por vezes, convergente outras com a minha versatilidade vital e considerava-se uma especialista nas minhas versatilidades desde que no começo da nossa relação fixámos mais de uma vez a hora da verdade, o momento em que eu chegaria a um congresso com uma mala maior do que a habitual e viveríamos juntos para sempre. Quem perde a cátedra? Questionei-me, questionou-se, questionámo-nos e ela estava decidida a perdê-la. E faço-o consciente de que sou uma imbecil, de que atraiçoou mais de cem anos de luta pela igualdade das mulheres e que tu não mereces que eu faça este gesto porque és um egoísta, não um egoísta mais, o egoísta por antonomásia. A ideia platónica do egoísta. Não é verdade. Não é verdade? Que tu sejas um egoísta? Não. O sentido demasiado vulgar com que utilizas a expressão de a ideia platónica do egoísmo. Sei que é frequente a utilização desta fórmula, mas não é clarificadora da verdadeira dialéctica platónica. No platonismo as ideias não são necessariamente protótipos que actuam como referentes comparativos do real. Vai levar no …, atirou-me em corectíssimo castelhano e quando verificou que as minhas malas eram as de sempre, ou seja, aquela mala funcional com rodas. uma das primeiras, que tinha comprado em Colónia, deduziu ou induziu que não, que não viveríamos juntos para sempre e não foi por isso que deixou de ir para a cama comigo naquele encontro, embora a notasse um pouco distante, precisa e terminante como sempre, mas distante, como se estivesse e não estivesse comigo. como se aguardasse com impaciência o final dos coitos e do congresso. Vinte anos separavam-nos daquele encontro clarificador, uns dez congressos ou simpósios mais, uma ou outra celebração especial de homenagem a uma qualquer glória das literaturas românicas. E nunca mais voltámos a falar da possibilidade de fugir de nós mesmos para sermos outros. juntos, mas outros, e, no entanto, tínhamos de repente a necessidade de nos encontrar sem esperar congressos reais e eu inventava pretextos para viajar a Londres ou ela para vir até Barcelona, Madrid ou Granada onde nos encontrávamos porque sim, porque necessitávamos de o fazer». In Manuel Vázquez Montalbán, Erec e Enide, 2002, Difel, Algés, 2003, ISBN 972-29-0651-8.

Cortesia de Difel/JDACT

O Teu Rosto Será o Último. João Ricardo Pedro. «Por mar, respondia o Bocalinda, claro que entraram por mar. O cabr… do mar que sempre foi e sempre será a nossa desgraça. Mas cabe na cabeça de alguém fazer a capital de um país junto ao mar?»

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«(…) Mas, entre os excessos do Larau e as apreensões do padre Alberto, ninguém sabia com clareza o que se estava a passar em Lisboa, nem a situação em que se encontrava Marcelo Caetano. E, nesse território de dúvidas, lançavam-se para a mesa os mais curiosos palpites: que tinha sido assassinado logo às primeiras horas da madrugada; que já estava morto havia vários dias; que já tinha dado à sola e todo aquele escarcéu no Largo do Carmo era pura encenação; que os revoltosos não sabiam o que fazer com o corpo, era sempre assim, tudo tratadinho, tudo a correr como o previsto e, depois, vai-se a ver e ninguém sabe o que fazer com o corpo, se exibi-lo em praça pública, se deitá-lo discretamente ao Tejo, atado a correntes de ferro e pesos de chumbo, se queimá-lo numa fogueira, na Praça do Comércio, uma encrenca, era o que era; que tudo não passava de bluff do próprio Marcelo Caetano, na esperança de que o povo saísse à rua para o salvar; que, àquela hora, já o Marcelinho estava a beber refrescos de groselha no Sul de Espanha, com os olhos voltados para Alcácer Quibir; que tudo dependia de quem estivesse por detrás disto, que eram soldados, que muito bem, parece que são soldados. Mas se os nossos soldados, dizia o Fangaias e com certa razão, coitadinhos, andam por terras do Ultramar a perder pernas, a perder braços, a perder o juízo, como é que de repente aparecem tantos soldados? Seriam russos? Americanos? Ingleses? Franceses? E por onde é que eles tinham entrado sem ninguém dar por nada? Por mar, respondia o Bocalinda, claro que entraram por mar. O cabr… do mar que sempre foi e sempre será a nossa desgraça. Mas cabe na cabeça de alguém fazer a capital de um país junto ao mar? Vaidades. Nunca houve cabeças no filha-da-pu… deste país, rematou o Larau, colocando um ponto final na refeição. E, já de barriguinhas consoladas, a bebericarem golinhos de café e conhaque, a desfrutarem dos prazeres primaveris que o jardim lhes oferecia, as incertezas continuavam a ser mais do que muitas. Mil e uma hipóteses haviam sido avançadas. Todos os receios. Todas as esperanças, também. Mas, entre os presentes, havia um, cuja voz ainda não se fizera ouvir: o doutor Augusto Mendes, o mais ilustre de entre os ilustres. E foi justamente no momento em que todos se voltavam para o distinto anfitrião, na ânsia de lhe ouvir as primeiras palavras, que ao portão da casa apareceu, esbaforida e de credo na boca, a Ressurreição. A Ressurreição era vizinha do Celestino. Aliás, era mais do que vizinha. Era quem lhe tratava da roupa e da casa e das panelas de sopa. Quem se preparava para o amparar na velhice, recebendo em troca, e apesar da diferença de idades, o afecto e o respeito que nunca conhecera nos homens que lhe haviam enchido a casa de filhos. O que te aconteceu?, perguntaram. E a Ressurreição, depois de recuperar o fôlego, contou que o Celestino não viera almoçar. Que já dera a volta a tudo: da fonte salgada até ao chão do Humberto, do lugar do Barba Ruiva até ao cemitério antigo. E que agora, depois de lhe vasculhar a casa mais uma vez, é que dera conta de que a espingarda também desaparecera. Porque é que o homem haveria de sair de espingarda em Abril? Nenhum dos presentes lhe soube responder, e dividiram-se em três parelhas: doutor Augusto Mendes e Bocalinda, padre Alberto e Adolfo, Fangaias e Larau. Traçaram uma circunferência imaginária, com centro na casa do Celestino e raio de meia légua. Dividiram a circunferência em três partes iguais. Dentro de cada parte, identificaram os pontos onde, com maior probabilidade, o Celestino se poderia ter enfiado. Marcaram encontro para dali a duas horas e fizeram-se ao caminho. Galgaram muros e cercas. Vasculharam palheiros e currais. Subiram a montes. Treparam árvores. Assomaram-se a poços e a noras. Encontraram pessoas. Fizeram perguntas. Seguiram pegadas. Cartuchos. Beatas. Voltaram ao centro da circunferência. Alargaram o perímetro. Retomaram as buscas». In João Ricardo Pedro, O Teu Rosto Será o Último, Prémio Leya 2011, Leya, 2012, ISBN 978-989-660-209-3.

Cortesia de Leya/JDACT

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

A Conspiração Colombo. Steve Berry. «Uma janela aberta permitia que algum ar fresco entrasse, mas o suor brotava em sua testa, e as costas de sua camisa estavam molhadas contra o colchão»

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Presente
«(…) Alle Becket estava deitada na cama, com braços e pés amarrados nas grades. Um pedaço de fita adesiva cobrindo a boca, o que a obrigava a respirar rapidamente pelo nariz. O pequeno quarto estava escuro, e isso a deixava nervosa. Acalme-se, disse para si mesma. Os pensamentos voltados para seu pai. Thomas Peter Sagan. Seus sobrenomes eram diferentes graças a um casamento que tivera três anos antes, logo depois que seu avô, Abiram, morrera. Fora uma péssima ideia em todos os sentidos, principalmente porque seu marido achou que um anel no dedo significava que teria carta branca para usar os cartões de crédito dela. O casamento durou três meses. O divórcio, mais um. Pagar todas as contas levou dois anos. Mas ela conseguira. Sua mãe lhe ensinara que dever aos outros não era uma boa coisa. Gostava de pensar que ela lhe ensinara a ter carácter. Só Deus sabe que isso não veio de seu pai. Suas lembranças dele eram péssimas. Tinha 25 anos e não se lembrava de nenhuma vez que ele tivesse dito que a amava. Por que você se casou com ele? Nós éramos jovens, Alle. Estávamos apaixonados e tivemos tantos anos bons. Era uma vida segura. Só depois do próprio casamento ela compreendeu o valor da segurança. Desordem completa era uma descrição melhor para sua breve união. A única coisa que levou do casamento foi o sobrenome, porque qualquer coisa era melhor do que Sagan. Só escutar esse nome já embrulhava o seu estômago. Se fosse para se lembrar de fracassos, que pelo menos fossem de um ex-marido que em determinado momento, principalmente durante aqueles seis dias em Turcas e Caicos, proporcionou-lhe lembranças inesquecíveis. Testou as cordas que prendiam os seus braços. Seus músculos doíam. Ela se contorceu um pouco e se endireitou. Uma janela aberta permitia que algum ar fresco entrasse, mas o suor brotava em sua testa, e as costas de sua camisa estavam molhadas contra o colchão. Os poucos cheiros presentes não eram agradáveis, e ela imaginava quem mais se tinha deitado ali antes dela. Não gostava da sensação de impotência que aquela situação lhe trazia. Então, forçou-se a pensar na mãe, uma mulher amorosa que a mimou e fez tudo para que conseguisse as notas necessárias para entrar na Universidade de Brown e se formasse. História era uma paixão antiga, principalmente a América pós-Colombo, a época entre 1492 e 1800, quando a Europa impeliu o Velho Mundo ao Novo. Sua mãe também tivera sucesso pessoal, recuperando-se do sofrimento do divórcio e encontrando um novo marido. Ele era cirurgião ortopédico; um homem carinhoso que cuidou das duas, o oposto de seu pai. Aquele casamento tinha sido bem-sucedido. Mas, dois anos atrás, um motorista negligente, com a carta suspensa, atravessou o sinal vermelho e acabou com a vida de sua mãe. Sentia uma saudade terrível dela. O funeral permanecia vivo em sua mente, graças à chegada inesperada de seu pai. Saia. Ela não ia querer você aqui, dissera ela num tom de voz alto o suficiente para todos escutarem. Eu vim me despedir. Você fez isso muito tempo atrás, quando virou as costas para nós. Você não faz ideia do que eu fiz. Só se tem uma chance de criar um filho. De ser marido. De ser pai. Você perdeu a sua. Saia. Ela se lembrava do rosto dele. A expressão indiferente que revelava pouco do que havia por baixo. Quando era mais nova, sempre se perguntara em que ele estava pensando. Agora não se perguntava mais. Que importância tinha? Puxou as cordas de novo. Na verdade, tinha muita importância». In Steve Berry, A Conspiração Colombo, 2012, Maria B. Medina, Editora Record, 2014, ISBN 978-850-140-380-3.

Cortesia de ERecord/JDACT

O Apogeu da Cidade Medieval. Jacques le Goff. «A grande maioria desses lugares de origem é constituída por aldeias. O caso de La Rochelle, para a qual possuímos uma lista dos nomes dos lugares de origem dos burgueses em 1224, é diferente»

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1150-1330. O povoamento urbano
«(…) Embora menos intensa, a actividade de criação urbana entre 1150 e o começo do século XIV não foi inexistente nas regiões setentrionais do reino, e em especial, precocemente, no condado de Flandres, onde prossegue o dinamismo demográfico económico e urbano do período anterior. No início do reinado do conde Filipe da Alsácia (1168-1191), associado ao seu pai desde 1157, novas cidades, como Gravelines (1163), Nieuport, Damme (1180), Biervliet (1183), Mardick e Dunkerque (c. 1183), portos situados às margens de estuários na proximidade da costa, testemunham uma política urbana do conde. Gravelines, por exemplo, fundada em 1163, desenvolveu-se rapidamente a partir de 1180. Esse aumento da superfície urbana, que é em grande parte uma superfície construída, provém do afluxo dos homens. Tais homens vêm do campo e, em sua maioria, do campo próximo. O século XIII, século do início do recenseamento, é também o século do surgimento dos nomes próprios, nomes de família, nomes de ruas. É sobretudo estudando os patronímicos urbanos, dos quais um número considerável é constituído pelo lugar de origem desses imigrados, em geral recentes, que se pode esboçar a história do povoamento das cidades. A distância entre lugar de origem e a cidade de imigração depende evidentemente da importância dessa cidade, de sua actividade, de seu poder de atracção. No Forez, a cidadezinha de Montbrison encontra, entre 1220 e 1260, 40% de seus imigrantes a menos de 10 km, 38% a uma distância entre 10 e 20 km, e apenas 3 famílias em cada 51 vêm relativamente de longe, uma de Lyon, uma de Auvergne e uma provavelmente de France (isto é, Ile-de-France no sentido amplo). Para o período 1260-1340, a atracção da cidade aumenta: 4/5 dos imigrantes provêm de um raio já não de 20, mas de 30 km. Entre 1300 e 1349, dois terços dos recém-chegados provêm de um raio de 40 km e para cada período algumas famílias vieram de lugares cada vez mais distantes (mesmo na Normandia e, no último período, da Itália e, talvez, da Espanha). Para uma aglomeração foreziana mais modesta, Saint-Haon-le-Chatel, no período 1252-1348, 78% dos imigrantes são originários de uma zona de 20 km em torno da cidade e 75% são certamente de origem rural.
Para uma grande cidade como Metz, um estudo pioneiro de Charles-Edmond Perrin em 1924 mostrou que os imigrantes do século XIII vieram essencialmente da região lorena e mais particularmente da zona de Metz, sobretudo das aldeias próximas. Todavia algumas famílias patrícias conservavam em seu patronímico a lembrança de uma origem remota: Estrasburgo, Colónia, Veneza, Troyes e Huy. Arras, como Metz, recebe no século XIII o essencial de sua população de um raio de 40 km ao redor da cidade. Para Reims, o estudo bastante preciso de Pierre Desportes, abrangendo os 600 nomes de lugares usados por famílias que figuram nas listas feitas entre 1304 e 1328, mostra que 50% dessas famílias são originárias de localidades situadas a menos de 3 léguas (cerca de 13 km) da cidade, 60% provêm de menos de 30 km, 35% do restante é proveniente das Ardenas. A grande maioria desses lugares de origem é constituída por aldeias. O caso de La Rochelle, para a qual possuímos uma lista dos nomes dos lugares de origem dos burgueses em 1224, é diferente. A atracção se exerce sobre a maior parte da França, especialmente Flandres, Normandia, Bretanha, e sobre a Itália (Lombardia e Génova), a Espanha (Santander, Pamplona, Saragoça) e a Inglaterra (Norwich, Londres, Southampton). É verdade que se trata de um porto e de uma cidade cuja actividade comercial e financeira (ligada sobretudo à exportação do vinho) se acha então em pleno desenvolvimento. Ressalta desses dados que no nível dos homens, em primeiro lugar, os laços das cidades com a sua terra, seu meio geográfico, são muito fortes e que a origem de sua população é sobretudo rural. Como essa população, segundo veremos, é muito móvel, pode-se dizer que a cidade é povoada em grande parte por camponeses recém-urbanizados. Insiste-se, e com razão, como veremos, no carácter semi-rural das cidades medievais. A penetração dos campos nas cidades faz-se inicialmente no nível dos homens. A França urbana medieval é em grande parte uma França rural da cidade». In Jacques le Goff, O Apogeu da Cidade Medieval, 1980, Livraria Martins Fontes Editora, 1989, 1992, ISBN 978-853-360-127-1.

Cortesia de LMartinsFontesE/JDACT

A Feiticeira de Florença. Salman Rushdie. «Quando estavam sozinhos com o homem desacordado, o médico confessou a Uccello o quanto o intrigava a recusa do aristocrata em despertar de seu súbito coma»

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«(…) O homem que se chamava Uccello de Firenze tentou mudar de assunto. O senhor não me daria a honra, milorde, de contar como foi a captura do galeão do tesouro Cacafuego? E o senhor estava, devia estar, com Drake em Valparaíso e em Nombre de Dios quando ele foi ferido... Hauksbank atirou o copo contra uma parede e puxou a espada. Canalha, disse. responda direito ou morre. O clandestino escolheu com cuidado as palavras. Milorde, disse, aqui estou, percebo agora, para me oferecer como seu factótum. Mas a verdade, acrescentou depressa, enquanto a ponta da espada tocava sua garganta, é que tenho também um propósito mais distante. De facto, eu sou o que se pode chamar de um homem comprometido com uma busca, uma busca secreta, além disso, mas devo alertar o senhor que meu segredo tem sobre ele uma maldição, lançada pela mais poderosa feiticeira de seu tempo. Só um homem pode ouvir o meu segredo e viver, e eu não gostaria de ser responsável por sua morte. Lorde Hauksbank desse Nome riu de novo, não um riso feio dessa vez, um riso de dispersar nuvens e fazer o sol voltar a brilhar. Você me diverte, passarinho, disse. Imagina que tenho medo da maldição da sua bruxa de cara verde? Eu dancei com o barão Samedi no Dia dos Mortos e sobrevivi ao seu uivo de vodu. Vou ficar muito ofendido se não me contar tudo imediatamente. Então seja, começou o clandestino. Existiu um dia um príncipe aventureiro de nome Argalia, também chamado Arcalia, um grande guerreiro que possuía armas encantadas, que tinha ao seu serviço quatro gigantes terríveis e uma mulher com ele, Angelica... Pare, disse lorde Hauksbank desse Nome, apertando a testa. Você está me dando dor de cabeça. Então, depois de um momento: continue... Angelica, uma princesa do sangue real de Gêngis Khan e Tamerlão... Pare. Não, continue... a mais bela... Pare. E lorde Hauksbank caiu no chão, inconsciente.
O viajante, quase envergonhado com a facilidade com que havia instilado o láudano no copo de seu hospedeiro, devolveu cuidadosamente a caixinha de madeira com os tesouros ao seu esconderijo, enrolou-se na capa multicolorida e correu para o convés principal gritando por socorro. Ganhara a capa numa mão de scarabocion, jogado contra um perplexo mercador de diamantes venezianos que não conseguia acreditar que um mero florentino pudesse chegar ao Rialto e bater os locais em seu próprio jogo. O comerciante, um judeu de barba e cachos chamado Shalakh Cormorano, mandara fazer o casaco especialmente na mais famosa alfaiataria de Veneza, conhecida como Il Moro Invidioso por causa do retrato de um árabe de olhos verdes na placa sobre a porta, e era a maravilha do ocultista o casaco, o forro uma catacumba de bolsos secretos e dobras ocultas nas quais o mercador de diamantes podia esconder sua valiosa mercadoria, e um aventureiro como Uccello di Firenze podia esconder toda sorte de truques. Depressa, meus amigos, depressa, o viajante chamou com uma convincente mostra de aflição. Milorde precisa de nós. Se no meio dessa rija tripulação de corsários-feitos-diplomatas havia muitos cínicos de olhos semicerrados cujas suspeitas se atiçaram pelo súbito colapso de seu líder e que começaram a olhar o recém-chegado de uma forma que não tendia para sua boa saúde, eles foram em parte tranquilizados pela preocupação que Uccello di Firenze demonstrou pelo bem-estar de lorde Hauksbank. Ele ajudou a carregar o homem inconsciente para seu catre, despiu-o, batalhou com seu pijama, aplicou compressas quentes e frias em sua testa e se recusou a dormir ou comer enquanto a saúde do milorde escocês não melhorasse. O médico de bordo declarou que o clandestino era uma ajuda inestimável e ao ouvir isso a tripulação voltou a seus postos resmungando, com um encolher de ombros. Quando estavam sozinhos com o homem desacordado, o médico confessou a Uccello o quanto o intrigava a recusa do aristocrata em despertar de seu súbito coma. Nada de errado com o homem pelo que posso ver, Deus seja louvado, só que ele não acorda, disse o médico, e neste mundo sem amor talvez seja mais sábio sonhar do que acordar. O médico era um indivíduo simples, endurecido na batalha, chamado Benza-Deus Hawkins, um cirurgião de bom coração e limitados conhecimentos médicos que estava mais acostumado a remover balas espanholas dos corpos de seus colegas marinheiros e costurar cortes de cutelo depois de combates corpo a corpo com os espanhóis, do que curar misteriosas doenças do sono chegadas do nada, como um clandestino ou um juízo de Deus». In Salman Rushdie, A Feiticeira de Florença, Publicações dom Quixote, 2008, ISBN 978-972-203-692-4.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

101 lugares para ter medo em Portugal. Vanessa Fidalgo. «Quando temos medo, fugimos e desistimos. Às vezes, sem sequer nos darmos conta. O medo constrange e retrai logo desde tenra infância, graças a figuras como o bicho-papão…»

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«O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis». In Fernando Pessoa

«O medo, dizem, é o maior inimigo do homem. Sentimento hostil, agoirento e poderoso, que surge inoportunamente a cada esquina, age à traição e, sobretudo, não conhece ninguém que lhe seja indiferente. Apercebi-me particularmente da frequência e dos diversos aspectos do medo graças ao sucesso de Histórias de um Portugal Assombrado, e às centenas de relatos e reacções que me foram chegando relativamente às histórias que nele contei sobre casas assombradas. Relatos de medo, claro, que chegavam de leitores anónimos e dos mais insuspeitáveis interlocutores, afoitos o suficiente para partilhar comigo o que lhes ia na alma. Tudo isso me levou a reflectir sobre o próprio medo e a questionar-me sobre o impacto que os espaços físicos, pela sua forma, história ou característícas, têm sobre as nossas emoções e como podem moldar a percepção sobre o que nos rodeia. E dessa introspecção pessoal nasceu a vontade de levar para o terreno uma nova pesquisa que deu origem a este livro, que enumera 101 lugares de Portugal que são especiais, tão-só ou também, pelo pavor que nos incutem. Um mapa do medo, que percorre ruas, casas e paisagens, contando histórias dos lugares onde passamos todos os dias, mas que estão marcados por acontecimentos terríveis, sejam eles crimes, manifestações do sobrenatural ou simplesmente o fantástico e maravilhoso lendário popular. Escrever sobre estes lugares levou-me igualmente a reflectir (e muito) sobre o perigo que o medo representa porque, na maioria das vezes, o que verdadeiramente nos ameaça é a forma como o receio nos condiciona e transforma uma situação e um lugar em barreiras difíceis de transpor.
Quando temos medo, fugimos e desistimos. Às vezes, sem sequer nos darmos conta. O medo constrange e retrai logo desde tenra infância, graças a figuras como o bicho-papão, por exemplo, que embala os meninos que se recusam a dormir. Ou a maria gancha, cuja maldade desfila nas páginas deste livro porque, no Norte de Portugal, puxa os mais desobedientes para o fundo das águas tenebrosas dos poços, entre outros monstros que os mais velhos inventam e deixam a dormir debaixo da cama das crianças e que, por vezes, ficam lá até à idade adulta. Mas o pior acontece quando o medo salta o limite das comunidades e é usado pelo poder como arma de repressão e controlo. Mia Couto resumiu-o numa frase: para fabricar armas é preciso fabricar inimigos; para produzir inimigos, é imperioso sustentar fantasmas. Portugal, país pacato e de brandos costumes, também sucumbiu ao veneno do medo: o massacre de milhares de judeus aconteceu no Largo de São Domingos, em pleno coração de Lisboa, há pouco mais de 500 anos. Três dias de medo colectivo e insano que por isso mereceu ser contado nas páginas que se seguem. É que ao medo associam-se outras emoções extremas e desconfortáveis, quase sempre fáceis de desencadear se estivermos no sítio errado, à hora errada: o silêncio, a escuridão, o sofrimento, o sangue, as doenças, as armas induzem directa ou indirectamente o medo, explica o criminalista Francisco Moita Flores, referindo-se sobretudo aos lugares marcados por memórias pesadas, como aqueles onde aconteceram mortes violentas. Ou até mesmo aos lugares onde estão enterrados os que já partiram, os cemitérios. Ou aqueles sítios onde, diz-se, os mortos continuam a manifestar-se...» In Vanessa Fidalgo, 101 lugares para ter medo em Portugal, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-467-3.

Cortesia de AEdosLivros/JDACT

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

A Ruiva e Outras Histórias. Fialho de Almeida. «E alguém, dedilhando guitarras, entoava com voz rouca fados rasteiros do conde de Vimioso e da Severa, entre exalações de aguardente. E tiniam garrafas, sentia-se o cheiro das sardinhas assadas»

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(…) Era já noite, muitas vezes, quando ia só para casa, fora do cemitério. O pai ficava embrulhado num cobertor com um gorro de lã preta, por cujos rasgões lhe furavam os cabelos; deitava-se no côncavo de algum velho túmulo vazio; se caía geada, erguia a tampa de um jazigo de família para ir estender-se nas gavetas, entre caixões de chumbo. Já estava acostumado àquela folia, e depois, assim, não dormia as manhãs na cama, e podia começar cedo o trabalho, regando logo de madrugada os canteiros dos túmulos das famílias que lhe pagavam esse trabalho, varrendo dos pedestais as folhas secas que o vento despregava dos ramos, e alta noite, com passadas lentas e lúgubres, nas trágicas encruzilhadas dos ciprestes, reanimando ou acendendo, com o rolo metido nos dedos, as lâmpadas extintas pelas lufadas do nordeste. Nem uma vez se lembrou de Carolina que ficava de noite, na cidade, separada dele, a sua filha, entregue à leviandade dos seus quinze e aos furores de coração de um aprendiz de marceneiro que a perseguia, preso de maus instintos. Carolina era branca, delicada e nervosa; o seu sangue tinha originalidades singulares, inquietações de luta e o furor da aventura, e do seu seio dimanava essa ânsia ardente de que se fazem os gozos, ansiava como uma sede antiga. Dormiam numa casita arruinada e miseranda, oculta no fundo de um pátio sem luz de lampião, para onde abriam as janelas de tabuinhas de casas suspeitas, em que marinheiros tocavam guitarra. A história das suas exaltações enraizava também, como uma hera, naquelas más janelas, pelas noites escuras de Verão, quando, encostada ao peitoril da janela, escutava altercações, descantes e venalidades, na confidência de carroceiros. Nestas disputas Carolina entrevia uma coisa, que se apoderava rapidamente do seu organismo, enroscando-se-lhe no corpo como serpente com frio, amarrotando e poluindo no amplexo alguma, ainda que pouca, dessa adorável modéstia que é o tesouro das mulheres honestas. Viam-na de manhã, quando saía, dar bons-dias à vizinhança e sorrir às pecadoras mendigas, que nas tabernas jantavam gravanzos por qualquer pataco, ter com elas palestras. Desassombradamente olhava para os homens, tinha desdéns para uma ordem de gente e criara predilecções pelos louros; nos seus trapos escolhia sempre cores que dessem na vista; e, calculista, com o olho febril, arquitectava aventuras: seria de noite, uma chuva miúda peneirar-se-ia do alto, sobre as calçadas; fugiria embrulhada no xalito com um louro... Hem? Da janela da sua mansarda, empinada sobre um banco de pinho, podia ver o que se passava na alcova de um pobre bordel carairo. Apagava a luz para não ser vista, subia ao banco, encostada à janela; e ali, durante horas, passava a espreitar o que fazia a vizinhança. Cenas equívocas desenrolavam-se por lá. Era tão curioso! A nudez impura dos contactos fazia-lhe regurgitar de dentro uma seiva cuja plenitude a estonteava. Era a febre do sangue inficionado pelos microzimas do vício e o desejo de cadela nubente que uma força espicaça de irritantes curiosidades e terrores deliciosos. Aquilo vinha-lhe às ondas, como a babuge das praias contra fraguedos solitários. Coroas de padres esverdeados mostravam-se à luz de candeeiros de petróleo; no espelhinho dos toucadores das cómodas reflectiam-se grupos sombrios, estranhas fantasias das encarnações de Vixnu. E alguém, dedilhando guitarras, entoava com voz rouca fados rasteiros do conde de Vimioso e da Severa, entre exalações de aguardente. E tiniam garrafas, sentia-se o cheiro das sardinhas assadas. Toasts desbragados expluíam claramente. As vozes das mulheres guinchavam. Alguém rolava pelo sobrado e rimas de pratos caíam, com estrondo, em migalhas, no meio de pragas de raios de uma vez, tresloucada, descera à rua. Domingos de Inverno. A noite lôbrega alonga-se. Alguém gritava, Jornal da Noite, traz a lista de Espanha! O frio penetrava as carnes. Carolina tremia, lábios secos, uma aflição enorme subindo-lhe do estômago. Não sabia para onde ir. Quereria as coisas mais violentas, amplexos de ferro, beijos de lava, o vasto oceano de um amor sem fim e sem felicidade. Mas o aprendiz de marceneiro, um rapaz atlético e sanguíneo, apetites excêntricos, saía da oficina, dava com ela, aproximava-se com uma piada...» In Fialho de Almeida, A Ruiva e Outras Histórias, 1881, Contos, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ISBN 978-972-370-963-6.

Cortesia de LLivros/JDACT

A Máscara da Tulipa Negra. Lauren Willig. «… pela calada da noite, silenciosamente descartados do departamento de História de Harvard e atirados a uma inflexível horda de crocodilos académicos esfomeados».

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Londres. 2003
«Mordi o lábio num ainda não chegámos? Se, em algum momento, o silêncio é de ouro, aquele era um deles. Ondas palpáveis de aborrecimento emergiam do homem ao meu lado, suficientemente densas para se tornarem numa presença extra do carro. Fingindo inspecionar as minhas unhas, lancei outro olhar de soslaio ao meu companheiro de viagem. Tudo o que podia ver era um par de mãos tenso sobre o volante. Eram bronzeadas e calejadas, tocando os punhos castanhos do seu casaco de bombazina, com uma fina poeira de pelos loiros delineados pelo sol do fim da tarde, e a cicatriz branca de um velho golpe visível na pele escura da sua mão esquerda. Mãos grandes. Mãos capazes. Neste momento, ele estava provavelmente a imaginá-las apertadas à volta do meu pescoço. E não me refiro a um abraço amoroso.
Eu não fazia parte dos planos de fim-de-semana de Mr. Colin Selwick. Era a mosca no seu ungento, a chuva na sua parada. O facto de ser uma parada muito atractiva e de eu estar disponível no momento não mudava a situação. Ser está a perguntar-se o que é que eu fazia num carro, com destino a parte incerta, com um quase desconhecido que teria preferido atirar-me para uma vala, bem, gostaria de dizer que também eu me perguntava. Mas eu sabia exactamente aquilo que estava a fazer. Tudo se resumia a uma palavra, arquivos. Admitamos, arquivos não são normalmente algo que nos aqueça o sangue, mas são-no quando se é uma estudante do quinto ano em busca de uma dissertação, e o nosso orientador começou já a rosnar sobre conferências e propostas de trabalho e todas as coisas desagradáveis que acontecem aos estudantes descuidados que ainda não produziram uma pilha de papel por volta do seu décimo ano. Pelo que me foi dado perceber, são, pela calada da noite, silenciosamente descartados do departamento de História de Harvard e atirados a uma inflexível horda de crocodilos académicos esfomeados. Ou então acabam na escola de Direito. De qualquer modo, a questão era clara. Eu tinha de acumular algumas fontes essenciais e tinha de o fazer rapidamente, antes que os crocodilos se tornassem desapiedados. Houve um outro pequeno incentivo adicional envolvido o incentivo tinha cabelo escuro, olhos castanhos, r ocupava o lugar de professor assistente no departamento governamental. O seu nome era Grant». In Lauren Willig, A Máscara da Tulipa Negra, 2006, Livraria Civilização Editora, Porto, 2007, ISBN 989-972-262-500-5.

Cortesia de LCivilizaçãoE/JDACT

O Tesouro. Selma Lagerlof. «Já que passamos pelo presbitério de Solberga, disse Torarin, pelo sim pelo não, vou entrar e assegurar-me se há gelo até Marstrand. Lá devem estar a par disso»

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O presbitério de Solberga
«Na época em que o rei Frederico II da Dinamarca reinava na província de Bohus, vivia em Marstrand um pobre peixeiro, de nome Torarin. Era um homem pequeno e débil. Tinha um dos braços aleijado, de modo que não conseguia pescar nem mesmo remar. Não podia ganhar o seu sustento no mar, como todos os outros homens do arquipélago e, em vez disso, andava pelas redondezas vendendo peixe seco e salgado às gentes do continente. Ao longo do ano não passava muitos dias em casa, viajando constantemente, de aldeia em aldeia, com a sua carroça de peixe. Num dia de Fevereiro, quase ao anoitecer, Torarin deslocava-se pelo caminho que ia de Kungshall em direcção à paróquia de Solberga. O percurso era ermo e estava completamente deserto de gentes, por isso Torarin não precisava de se manter silencioso. Levava consigo, no meio da carga, um amigo fiel, com quem gostava de conversar. Era um pequeno cão preto de pêlo espesso, a que Torarin chamava Grim. Grim seguia sossegadamente deitado a maior parte do tempo, com a cabeça enterrada entre as patas, e apenas abria e fechava os olhos a tudo o que lhe dizia o dono. Mas, sempre que ouvia algo que não lhe agradava, erguia-se logo na carroça, espetava o focinho no ar e uivava mais do que um lobo.
Agora vou contar-te, Grim, amigo cão, que ouvi hoje grandes notícias, disse Torarin. Tanto em Kungshall como em Kareby disseram-me que o mar tinha gelado. O tempo tem estado bom e calmo, e tu, que tens saído todos os dias, bem o sabes; ao que parece, o mar congelou não só nas baías e estreitos, mas até bastante ao largo de Kattegatt. Já não há entre as ilhas trilhos para barcos e navios, só gelo espesso e rijo por todo o lado, de tal modo que se pode ir a cavalo e de trenó até Marstrand e até aos ilhéus de Paternoster. O cão ouviu tudo aquilo e não pareceu desagradar-lhe. Permaneceu deitado, abrindo e fechando os olhos para Torarin. Aqui na carroça já não nos resta muito peixe, disse Torarin de modo quase convincente. O que me dizes se, na próxima bifurcação do caminho, dermos meia volta e seguirmos para Ocidente em direcção ao mar? Passamos pela igreja de Solberga, descemos a Odsmalskil e, depois, acho que de lá até Marstrand não serão muito mais do que duas léguas e meia de caminho. Seria bom poder voltar a casa sem ter de ir de barco ou de ferry, nem que fosse uma só vez. Avançaram através da vasta charneca de Kareby e, embora o tempo tivesse estado sereno durante todo o dia, um vento frio varria a planície, tornando o trajecto desagradável.
Poderá parecer fraqueza ir para casa, assim a meio do melhor período de trabalho, disse Torarin batendo os braços, por causa do frio, mas tu e eu já andámos por aí, pelos caminhos, durante várias semanas, e talvez precisemos de estar em casa um par de dias, a aquecer o corpo enregelado. Dado que o cão permanecia espojado e imóvel, Torarin pareceu mais seguro da sua decisão e prosseguiu num tom mais alegre: a mãe tem estado para lá sozinha, na cabana, há vários dias. Já deve sentir a nossa falta. Além disso, Marstrand é esplêndida agora no Inverno. As ruas e as travessas, Grim, estão apinhadas de pescadores e de comerciantes forasteiros. Nos armazéns, junto ao mar, há baile todas as noites. E há cerveja a jorros nas tabernas! Nem podes imaginar. Dizendo isto, Torarin inclinou-se sobre o cão, para se certificar de que ele o ouvia. Mas como o cão continuava totalmente desperto, sem mostrar o menor sinal de desagrado, Torarin desviou caminho para Ocidente na primeira saída, na direcção do mar. Fez estalar a rédea à laia de chicote, fazendo com que o cavalo avançasse ligeiro. Já que passamos pelo presbitério de Solberga, disse Torarin, pelo sim pelo não, vou entrar e assegurar-me se há gelo até Marstrand. Lá devem estar a par disso. Torarin falara em voz baixa, sem pensar se o cão o ouvia ou não. Mas, mal pronunciara as últimas palavras, já o cão se erguia dentro da carroça e soltava um uivo tremendo. O cavalo deu um salto para o lado, e até Torarin se assustou. Voltou-se para trás para ver se vinham lobos a persegui-lo, mas, quando se apercebeu de que era Grim que uivara, tentou acalmá-lo». In Selma Lagerlof, O Tesouro, Cavalo de Ferro Editores, colecção Gente Independente, 2010, ISBN 978-989-623-113-2.

Cortesia de CdeFerroE/JDACT

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Os Sete Minutos. Irving Walace. «Hoje vamos abalar um pouco este pessoal, olhou para Kellog e sorriu. Como está, Otto? Pronto p’ra acção? Sim, respondeu Kellog, desde que a gente chegue lá depressa»

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«Lá pelas onze da manhã, o Sol já tinha saído, e agora as mulheres de Oakwood, na maioria donas-de-casa em trajes de Verão e quase todas ao volante dos próprios carros, convergiam para a zona comercial, a fazer compras. No trânsito subitamente engarrafado, o Ford cupé verde de duas portas, bem amachucado no guarda-lamas da frente, viu-se afinal obrigado a reduzir a marcha. Jogado com brusquidão contra o encosto do assento da direcção, Otto Kellog resmungou contrariado, endireitando-se logo para verificar, impaciente, onde estavam. Indignava-se com atrasos numa hora dessas, quando se sentia ansioso por resolver aquele assunto. Queria terminar em seguida com aquilo, o mais depressa possível. Iverson, que guiava o carro, soltou um berro, travando com toda a força. Malditas mulheres, exclamou entre dentes. Pois é, concordou Kellog. Oxalá que andem depressa. No assento de trás, Eubank, o terceiro ocupante do desportivo, mais velho, mais tolerante, exposto ao mundo exterior com menos frequência que os companheiros, parecia estar a gostar do intervalo. Aproximara-se do encosto da frente para espiar pelo pára-brisas, por cima do ombro de Iverson. Então isto é Oakwood, comentou. Simpático. Não sei quantas vezes já passei por aqui, mas acho que, antes, nunca prestei muita atenção. Nada de maior, retrucou Iverson, levantando o pé do travão. Continua a ser o Município de Los Angeles. Sim, mas parece mais próspero e sossegado, disse Eubank. Talvez não por muito tempo, disse Iverson. Hoje vamos abalar um pouco este pessoal, olhou para Kellog e sorriu. Como está, Otto? Pronto p’ra acção? Sim, respondeu Kellog, desde que a gente chegue lá depressa. Olhou de soslaio pelos óculos escuros. Third Street é a próxima. Volte à direita na outra esquina. Eu sei, disse Iverson. O trânsito recomeçou a andar, mais livre, e o desportivo verde avançou pelo Center Boulevard, voltando depois abruptamente para entrar na Third Street. Na rua transversal, o número de carros e pedestres era menor. O homem do volante suspirou aliviado. É ali, no meio do quarteirão, anunciou. Vejam o letreiro que vem depois de Acme, Joalheiros. Estão a ver? Empório de Livros Fremont. Que tal o nome? Empório. Parece que há bastante lugar para estacionar, disse Eubank. Estava com medo de que não houvesse vaga por aqui perto. Sempre há lugar de sobra depois que a gente sai do Center Boulevard, declarou Iverson. Girou as rodas do carro até detê-lo com habilidade em frente à joalharia. Quando ia desligar o motor, viu uma garota loura com short apertados, parada diante do carro, pronta para atravessar a rua. Iverson soltou um assobio baixinho. Olá, pessoal, admirem bem aquelas mamas. Seguiu a loura com os olhos, enquanto ela se apressava em alcançar a outra calçada. Até que o conjunto não é nada mau, mas para mim o que vale são as mamas. Gosto delas bem grandes e saltitantes. Buscou apoio no companheiro de assento. E você, Otto? De momento, Kellog não estava interessado na opinião do amigo sobre as mulheres. Habituado a ocupar-se com uma ideia de cada vez, já tinha o pensamento completamente tomado. A mão direita apalpou por dentro o casaco desportivo xadrez, tocando-o por baixo do braço esquerdo. Por fim, satisfeito, ergueu a cabeça, revelando tensão e seriedade no rosto afilado. Estou bem?, perguntou para Iverson, fechando o botão do meio do paletó e compondo o colarinho da camisa desportiva de gola aberta. Não está a aparecer? Nem se nota, respondeu Iverson. Você está com cara de parvo. Não, estou a brincar. Está óptimo, Otto..., até parece um contabilista ou agente de seguros que reservou a manhã para fazer compras para a mulher. Assim seja. Não se preocupe. Que horas são? Onze..., onze e catorze. É melhor eu ir já, virou-se para o assento de trás. Tudo pronto aí, Tony? Tudo preparado para rodar. Kellog voltou a sua atenção para o motorista. Não saia daqui, hem? Só arredo pé quando você mandar. Está bem, disse Kellog. Não demoro mais que dez minutos». In Irving Walace, Os sete Minutos, 1969, Livros do Brasil, colecção Dois Mundos, 1988, ISBN 978-972-380-948-0.

Cortesia de LdoBrasil/JDACT

Ascânio. Alexandre Dumas. «Mas não fora para isto que o belo adolescente entrara no templo, pois o seu olhar apenas se animou, avançando então pressurosamente, quando viu aproximar-se uma jovem vestida de branco e acompanhada por uma aia»

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O ourives do rei
«Estava-se a 10 de Julho do ano da graça de 1540; eram quatro horas da tarde, em Paris, cerca da Universidade, à entrada da Igreja dos Agostinhos, perto da pia da água benta, junto à porta. Um jovem alto e bem parecido, moreno, de cabelo comprido e grandes olhos negros, trajando com a mais distinta simplicidade, e trazendo por única arma um pequeno punhal de punho primorosamente cinzelado, ali estava, de pé; e, decerto por piedosa humildade, não se tinha movido em todo o tempo que durou o ofício de vésperas; de cabeça inclinada e em atitude de devota contemplação, murmurava não sei que palavras em surdina; talvez as suas orações, pois falava tão baixo que só Deus e ele podiam saber o que dizia; contudo, ao terminar o ofício divino, reergueu a cabeça, e os seus vizinhos mais próximos puderam ouvir estas palavras pronunciadas a meia voz: que maneira abominável de salmodiar têm estes frades franceses! Não poderiam cantar melhor diante dela, que deve estar habituada a ouvir cantar os anjos? Ainda bem que as vésperas terminaram. Meu Deus, Meu Deus! Fazei que seja hoje mais feliz que no domingo, e que ela, pelo menos, levante os olhos para mim! Este seu desejo não é nada inconsequente, pois se aquela a quem se refere levantar de facto os olhos para ele, verá o mais sedutor dos rostos de adolescente que ela jamais idealizou, ao ler as belas fábulas mitológicas tão em moda nessa época, graças às poesias de mestre Clemente Marot, onde se descrevem os amores de Psique e a morte de Narciso. E que o jovem, no seu traje sóbrio mas belo, era, como dissemos, de uma irresistível sedução e de uma suprema elegância de maneiras; além disso, o seu sorriso tinha uma graça e uma doçura infinitas, e o seu olhar, que ainda não ousava ser audacioso, era, pelo menos, o mais apaixonado que poderiam lançar dois grandes olhos de dezoito anos. Entretanto, ao ruído especial das cadeiras anunciando o fim da cerimónia religiosa, o nosso enamorado, dizia eu, pôs-se um tanto de parte para ver passar a multidão, que saía em silêncio, e se compunha, quase exclusivamente, de severos fabriqueiros, respeitáveis matronas e jovens graciosas. Mas não fora para isto que o belo adolescente entrara no templo, pois o seu olhar apenas se animou, avançando então pressurosamente, quando viu aproximar-se uma jovem vestida de branco e acompanhada por uma aia de simpático aspecto e ainda não muito velha. Quando estas duas damas se aproximaram da pia da água benta, o nosso jovem tomou alguma nas pontas dos dedos e ofereceu-lha com ademane gentil. Esboçou a aia o mais gracioso sorriso, fazendo a mais agradecida das reverências, ao tocar os dedos do jovem, mas causou-lhe a maior das decepções ao oferecer ela própria algumas gotas da água recebida à sua jovem ama. Esta, não obstante a fervorosa oração de que poucos minutos antes fora objecto, manteve os seus olhos constantemente abaixados, prova evidente de que bem sabia estar ali o nosso jovem enamorado. Experimentou com a contrariedade tal desgosto, que não se conteve de bater o pé, murmurando: e não foi ainda hoje que me olhou! Isto prova que o belo adolescente, tal como julgamos tê-lo dito já, ainda não tinha mais de dezoito anos. Mas, passado o primeiro momento de despeito, o nosso desconhecido apressou-se a descer os degraus do templo, e, vendo que depois de ter baixado o véu e dado o braço à sua aia, a formosa distraída tinha voltado à direita, apressou-se a fazer o mesmo, notando aliás que era precisamente aquele o seu caminho. A jovem seguiu ao longo do cais até à Ponte de S. Miguel, que atravessou; exactamente o caminho do nosso desconhecido. Em seguida, a jovem meteu pela Rua Barillerie, atravessando a Ponte Change. Ora como tudo isto era o caminho do jovem, seguiu-a como se fora a própria sombra. A sombra de qualquer rapariga bonita é sempre um enamorado. Mas, pouca sorte! Por alturas do Grand-Châtelet, o belo astro, de que o nosso desconhecido se fizera satélite, eclipsou-se subitamente: o postigo da prisão real abriu-se como por si mesmo, mal a aia lhe tocou, voltando logo a cerrar-se sobre as duas. Por momentos, o jovem ficou interdito, mas, como era moço decidido sempre que não houvesse uma jovem beldade a alterar-lhe as decisões, depressa tomou o seu partido. Um sargento da guarnição, de lança ao ombro, passava e repassava gravemente diante da porta do Grand-Châtelet. O nosso jovem desconhecido pôs-se então a imitar aquela digna sentinela. Depois de se ter afastado o bastante para não dar nas vistas, mas sem perder a da porta, começou heroicamente o seu quarto de sentinela amorosa. Se o leitor já algum dia montou uma guarda, reparou certamente que o melhor processo para iludir o tempo é falar de si para consigo. Ora não resta a menor dúvida que o nosso jovem estava habituado a estes quartos de sentinela, pois, mal havia encetado esta, travou logo o seguinte diálogo consigo mesmo: evidentemente que não é ali que ela mora. Esta manhã, depois da missa, e nos dois últimos domingos, em que ousei apenas segui-la com os olhos, que tolo fui!, ela nunca voltou à direita pelo cais, mas sim à esquerda e em direcção à porta de Nesle e do Pré-aux-Clercs. Que diabo virá ela fazer aqui ao Châtelet? Vejamos, talvez visitar um preso, quem sabe se o próprio irmão. Pobre rapariga! Como deve sofrer, pois será tão bondosa como linda! Valha-me Deus! Como desejo falar-lhe, para lhe perguntar francamente de que é que se trata e oferecer-lhe todo o meu auxílio. Se for o seu irmão, confiarei o caso ao mestre e pedir-lhe-ei que me aconselhe. Quem, como ele, já se evadiu uma vez do Castelo de Santo Ângelo, há-de saber bem como se sai de uma prisão. Está dito, salvo-lhe o irmão. Prestando-lhe este serviço, o irmão torna-se meu amigo para a vida e para a morte. Perguntar-me-á, por sua vez, que poderá fazer por mim, que a tanto o obriguei. Confessar-lhe-ei que estou enamorado de sua irmã. Apresentar-ma-á, cairei a seus pés, e veremos então se não levanta os olhos para mim. Uma vez entregue a tais cogitações, é fácil compreender até que ponto um coração enamorado pode seguir, sem se deter, o seu pensamento predilecto». In Alexandre Dumas, Ascânio, ou o Ourives do Rei, 1843, Lello Editores, 1969, ISBN 978-972-481-184-0.

Cortesia de LEditores/JDACT

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Lobos Não Choram. Patricia Briggs. «Até mesmo um urso negro proporcionaria uma morte mais rápida do que a tempestade (apesar de mais sangrenta). E, como conhecia os ursos daquela região, Walter podia avaliar a situação do garoto...»

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«Ninguém melhor do que Walter Rice sabia que o único lugar seguro era longe das outras pessoas. Isto é, seguro para elas. O único problema era que ele ainda precisava delas, precisava do som das vozes e das risadas humanas. Para sua vergonha, ele algumas vezes ficava perto de um dos acampamentos apenas para escutar as vozes e fingir que estavam falando com ele. Essa era uma parte muito pequena do motivo pelo qual estava deitado de barriga para baixo nos arbustos de uva-ursina e nas velhas folhas pontiagudas de pinheiro à sombra de um grupo de árvores, observando um rapaz que escrevia com um lápis em um caderno de espiral de metal, depois de pegar uma amostra de fezes de urso e armazenar o saco plástico parcialmente cheio em sua mochila. Walter não receava ser visto pelo garoto: o Tio Sam treinou Walter muito bem para que ele fosse capaz de se esconder e rastejar, e décadas vivendo sozinho em algumas das áreas mais desabitadas dos Estados Unidos o haviam transformado numa imitação razoável daqueles índios milagrosamente invisíveis que povoavam os livros e os filmes favoritos de sua infância. Se ele não quisesse ser visto, ele não seria, além disso, o garoto tinha as habilidades de sobrevivência na floresta iguais às de uma dona de casa suburbana. Não deveriam tê-lo enviado ao território dos ursos-pardos sozinho, alimentar os ursos com estudantes de pós-graduação não era bom; podia dar aos ursos ideias erradas. Não que os ursos estivessem por ali naquele dia. Como Walter, eles sabiam ler os sinais: em algum momento, nas próximas quatro ou cinco horas, uma grande tempestade iria chegar. Ele podia sentir isso em seus ossos e, o mais estranho, não carregava uma mochila grande o suficiente para estar preparado para a chuva. Era cedo para uma tempestade de Inverno, mas as coisas funcionavam assim nessa parte do país. Walter já vira neve cair em Agosto. Aquela tempestade era a outra razão pela qual ele estava seguindo o garoto. A tempestade e o que fazer a respeito dela, ser tomado pela indecisão não era algo que lhe ocorresse com tanta frequência. Walter podia deixar o garoto ir. A tempestade viria e tomaria sua vida, mas essa era a lei da montanha, das áreas selvagens. Era uma morte limpa. Se apenas o estudante de pós-graduação não fosse tão jovem... Há muito tempo ele vira muitos garotos morrerem, seria de se esperar que estivesse acostumado com isso. Em vez disso, mais um parecia ser demais. Ele podia alertar o garoto. Mas tudo nele se revelava contra esse pensamento. Muito tempo havia se passado desde que ele havia conversado face a face com qualquer outra pessoa... Até mesmo esse pensamento fez sua respiração congelar-se. Era muito perigoso. Podia causar outro flashback, o último fora há algum tempo, mas eles aconteciam de forma inesperada. Seria muito ruim se Walter tentasse avisar o garoto e acabasse matando-o. Frustrado, Walter seguiu o jovem por algumas horas enquanto este perambulava, distraído, cada vez mais longe da estrada mais próxima e de sua própria segurança. O saco de dormir na mochila deixava claro que ele estava pensando em passar a noite ali, o que deveria significar que o garoto achava que sabia o que estava fazendo na mata. Infelizmente, ficava cada vez mais claro que essa era uma falsa confiança. Era como ver June Cleaver meter-se em encrenca. Triste. Apenas triste. Era como ver os novatos chegando ao Vietname em seus uniformes engomados, prontos para serem homens, quando todos sabiam que eles eram apenas bucha de canhão. O maldito garoto estava instigando em Walter todas as coisas das quais ele queria manter distância. Mas a irritação não era forte o suficiente para fazer qualquer diferença para a consciência de Walter. Por quase dez quilómetros, ou assim ele calculou, Walter havia se arrastado atrás do garoto, incapaz de tomar uma decisão: sua preocupação o impedira de sentir o perigo até que o estudante parou no meio do trilho. Os arbustos espessos entre eles só lhe permitiam ver o topo da mochila do garoto, e aquilo que o havia feito parar era algo mais baixo. Não era um alce, o que constituía uma boa notícia. Você pode até argumentar com um urso preto, ou até mesmo com um urso-pardo se ele não estiver com fome (o que, de acordo com sua experiência, raramente era o caso), mas com um alce... Walter puxou sua grande faca, embora não tivesse certeza de que iria tentar ajudar o garoto. Até mesmo um urso negro proporcionaria uma morte mais rápida do que a tempestade (apesar de mais sangrenta). E, como conhecia os ursos daquela região, Walter podia avaliar a situação do garoto... Ele se moveu lentamente no meio do mato, sem fazer barulho, embora folhas de álamo cobrissem o chão. Quando não queria fazer barulho, Walter não fazia. Um rosnado baixo provocou-lhe um arrepio de medo que atravessou seu corpo, elevando sua adrenalina até à camada de ozone. Era um som que Walter nunca tinha ouvido aqui, e ele conhecia cada predador que vivia em seu território». In Patricia Briggs, Lobos Não Choram, 2007/2008, Novo Século Editora, colecção Alfa e Ómega, 2012, ISBN 978-854-280-029-6.

Cortesia de NSEditora/JDACT

O Teu Rosto Será o Último. João Ricardo Pedro. «Era o pai da menina Ana Maria. Um homem só, dizia o padre, um homem bom, um homem que se percebia que andava cansado de acartar um império inteiro às costas»

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«Uma coisa parecia certa: no dia vinte e cinco de Abril de mil novecentos e setenta e quatro, faltaria ainda um bom bocado para as sete da manhã, Celestino apertou a cartucheira à cintura, enfiou a Browning a tiracolo, verificou o tabaco e as mortalhas, esqueceu-se do relógio pendurado num prego que também segurava um calendário e saiu porta fora. O céu começava a clarear. Ou talvez nem sequer tivesse começado a clarear. Por cima das sopas de café com leite, Celestino emborcara, sem esforço, dois tragos de bagaço. O primeiro, para a azia. O segundo, para os pensamentos cismáticos, que ele, como, aliás, todos os traços fisionómicos sugeriam, era homem dado a prolongadas melancolias. Por volta das onze horas da manhã, nenhum vento de mudança fora ainda sentido por aqueles que viviam da cruel aritmética dos alqueires, dos cinchos, das safras, das luas, das maleitas, das malinas, das geadas. Nos campos, homens e mulas rasgavam a terra em irrepreensíveis geometrias, enquanto, na penumbra dos currais, embaladas por ladainhas que os próprios lábios iam tecendo, as mulheres atestavam as gamelas dos porcos, das cabras, dos filhos. E, se alguém tivesse o desplante de interromper os seus laboriosos afazeres para lhes comunicar que, naquele preciso momento, o Presidente do Conselho de Ministros de Portugal se encontrava encurralado num quartel de Lisboa, cercado por soldados que exigiam a sua rendição, o mais certo seria obter como resposta um olhar de absoluta indiferença.
É que naquela pequena aldeia com nome de mamífero, encalacrada num sopé da Serra da Gardunha, voltada para sul sem consciência de que estava voltada para sul, a única excepção àquele total alheamento acerca dos destinos da pátria, como se a pátria fosse um lugar longínquo, era a casa do doutor Augusto Mendes, onde, numa espécie de gabinete de crise, se encontravam reunidas as suas mais ilustres personalidades: Adolfo, Bocalinda, Larau, padre Alberto, Fangaias e, claro está, o anfitrião, o doutor Augusto Mendes. Dona Laura, ao ver a casa encher-se de bocas, e pressentindo que isso de golpes de Estado era coisa para levar o seu tempo, apressou-se, de faca e alguidar, em direcção às capoeiras, donde regressou com as duas primeiras vítimas da revolução. E ainda não tinham soado as duas da tarde quando, num exercício ostensivo de poder, como se quisesse deixar bem claro que o que quer que estivesse a acontecer no País, ali em casa tudo permaneceria na mesma, desligou o rádio e a televisão, abriu as portadas que davam para o jardim e anunciou que a canja estava na mesa.
Coma, que a hortelã faz-lhe bem ao ânimo, disse ela ao padre Alberto, aquele que, de entre os ilustres, se mostrava mais apreensivo com o desenrolar dos acontecimentos. Não os acontecimentos políticos, que a política nunca lhe interessara. A César o que era de César, e a Deus o que era de Deus. Interessavam-lhe os homens e as almas dos homens, o que já não era coisa pouca. E, se era verdade que nunca nutrira especial simpatia pelo doutor Oliveira Salazar, bem pelo contrário, a coisa mudava de figura quando se tratava de Marcelo Caetano: o professor, o viúvo, o pai. O pai da menina Ana Maria, essa jóia de moça. Porque era o pai da menina Ana Maria quem, desde madrugada, se encontrava refugiado no quartel do Carmo, sabia-se lá em que condições. Já não era o Presidente do Conselho de Ministros, muito menos o Ministro das Colónias ou o Comissário da Mocidade Portuguesa. Era o pai da menina Ana Maria. Um homem só, dizia o padre, um homem bom, um homem que se percebia que andava cansado de acartar um império inteiro às costas.
No extremo oposto da tribuna, encontrava-se o Larau, cujo ânimo, desde que nascera, permanecia em constante exaltação, fossem revoluções, bilhares às três tabelas ou procissões de sábado aleluia. E a visão da canjinha a fumegar não só lhe aguçara o apetite, como lhe aprimorara o verbo. Assim, sempre que o nome Marcelo Caetano vinha à baila, coisa que acontecia, pelo menos, de três em três minutos, o Larau fazia questão de lhe acrescentar um majestoso e sonoro epíteto: pu… que o pariu e filho de um granda cor… Ao que se seguia, perante o olhar severo de dona Laura, um contrito Deus me perdoe, acompanhado do respectivo sinal da cruz». In João Ricardo Pedro, O Teu Rosto Será o Último, Prémio Leya 2011, Leya, 2012, ISBN 978-989-660-209-3.

Cortesia de Leya/JDACT

sábado, 24 de setembro de 2016

Contemporâneo. Oliveira Martins. «Pinta com cores verdadeiras, prossegue o meu critico, esta dissolução do regimen monarchico parlamentar, mas é injusto lançando á conta do organismo da nação o que é produzido pelo corpo estranho da realeza e dos políticos vendidos»

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«Eu bem affirmava que este livro não satisfaria a ninguém!... Acoimado de miguelismo, Portugal condemnado como espirito azedo e pessimista, tive a sorte que esperava, e os motivos d’esta minha espectativa provaram fundados. Levou-se a mal, como era de suppor, que eu procurasse deslindar da teia de lendas absurdas ou risíveis o caracter pessoal do infante Miguel: chamou-se a isso uma apologia. Nem um facto, nem uma inducção legitima, foram, todavia, contestados, o que me leva a não alterar o retrato d’esse príncipe, sympathico para mim na sua infelicidade. E tenho até a vaidade de acreditar na perspicácia d’este sentimento, parecendo-me que, se de futuro a historia voltar a occupar-se de Miguel, ha de concordar mais commigo do que com os auctores do retrato do monstro. Esses auctores escreviam com a penna molhada no fel amargo do ódio. Disse-se-me também que eu reduzia a muito pouco o alcance ou o valor da Carta de 20; e sem concordar com a critica, achando todavia útil desenvolver mais certos pontos, retoquei essa parte da obra. Mas quando se allega ser erro o notar eu a exclusão dos morgados do pariato, pois, sendo livre do rei a nomeação dos pares, a Carta ninguém exclue, devo responder que a Carta, com effeito, não os excluia (nem eu jamais o disse), mas excluia-os o monarca Pedro não os nomeando, e até a própria força das cousas impedindo a entrada de uns milhares de nobres menores na camara alta. Eram em numero demasiado. Outros reparos, a que não alludo para não ser extenso, vão ou não vão attendidos no texto, conforme se me affiguraram fundados ou mal cabidos.
Não me surprehenderam as censuras dos nossos jacobinos mais do que as dos liberaes: prevía-as egualmente. O meu livro, disseram, é um quadro pittoresco, mas falta-lhe o principio orgânico, a linha lógica, porque eu anão soube ou não quiz vêr na tradição revolucionaria de 20, esse movimento em que pela primeira vez se revelou a classe média de advogados, jurisconsultos e coronéis. Pinta com cores verdadeiras, prosegue o meu critico, esta dissolução do regimen monarchico parlamentar, mas é injusto lançando á conta do organismo da nação o que é produzido pelo corpo estranho da realeza e dos políticos vendidos. Ora eu, não sendo individualista, nem até politicamente liberal, não podia achar na tradição de 20 a linha lógica; e pensando que as nações teem sempre aquelle governo que querem ou que merecem, não podia tampouco ter na conta de corpo estranho a realeza nem os políticos. Ella e elles e o povo e todos pareceram-me antes efeitos do que causas. Se pretendi mostrar por quanta entrava nas misérias da nossa historia contemporânea a fraqueza dos caracteres, a apathia ou a loucura das populações, o desvairamento dos chefes: patenteei, parece me, quanto esses males sociaes provinham, não só dos legados da historia, como da influencia deprimente e desorganizadora das theorias do naturalismo individualista, herdado da philosophia do século XVIII e popularizado pela revolução franceza. Sob o nome indefinível de liberalismo, essas doutrinas, nos seus aspectos successivos, vieram terminar afinal no materialismo pratico, fazendo dos melhoramentos materiaes o pensamento exclusivo do povo, e do governo uma agencia de caminhos de ferro. Como se nós valêssemos absolutamente mais por andarmos em doze horas, em vez de trinta ou trinta e seis, a distancia de Lisboa ao Porto! Mas o que offendeu sobretudo liberaes e jacobinos foi o tora pessimista, ao que dizem, da obra. Eu tinha-a por justiceira apenas, e até ás vezes caridosa. Fica- se com a cara a uma banda.
Pois fique-se. Concordo que a attitude é desagradável, mas, na rainha missão de critico, não posso alterar a significação dos factos, sem poder também acreditar que tamanhos males venham apenas da circumstancia de haver sobre um estrado de alguns degraus um homem de manto e coroa com as mãos atadas pelos políticos de espadim e farda. Elles governarão o rei, mas quem os escolhe a elles é o povo: se são maus, porque os prefere? Não. A culpa é portanto nossa, de todos nós, que não valemos grande cousa, fique se embora com a cara a uma banda!» In J. Oliveira Martins, Portugal Contemporâneo, Livraria António Pereira, Lisboa, 1895, University of Toronto, 2000.

Cortesia de LAPereira/UToronto/JDACT

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Histórias de um Portugal Assombrado. Vanessa Fidalgo. «Não está sozinho, o barão da Glória, num país que, de lés-a-lés, tem personagens e histórias assombradas para contar: no Castelo de Almourol ou no de Bragança, amores incompreendidos deixaram espectros a pairar nas suas torres e ameias»


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«Por todos os preconceitos, desconfianças e crenças que o assunto revolve, entabular conversa sobre fantasmas e casas assombradas não é desafio fácil. Nas aldeias, os velhos ainda contam as histórias que lhes povoam os lugares da memória com naturalidade, mas nas grandes cidades as referências são escassas e fugazes, os narradores fugidios. Ainda assim, há fantasmas ao virar da esquina. Uma certa tarde de pesquisa no Gabinete de Estudos Olisiponenses, divisão da Câmara Municipal de Lisboa que tem como intuito cooperar com a comunidade científica para o estudo e a reflexão sobre a cidade, comprovou-o. Uma cidade que pode ter muitas dimensões. Algumas delas escondidas. Como aquela, que logo ali se desvendou. Histórias de fantasmas na cidade?, quer saber o historiador Ernesto Jana, técnico superior do gabinete. Olhe que nós, por acaso, temos um aqui. É o barão da Glória! O barão que arrasta grossos volumes de livros e caixotes de documentos pelo Palácio do Beau Séjour fora, e que pôs os funcionários da Câmara com os cabelos em pé à procura do espólio perdido. O mesmo espólio que muitos dias de procura depois se encontrava exactamente no local onde tinha sido deixado, por obra e graça do tal barão que também faz tilintar as chávenas em cima das mesas e soar as campainhas da quinta de São Domingos de Benfica, onde viveu, morreu e amou a arte. Não está sozinho, o barão da Glória, num país que, de lés-a-lés, tem personagens e histórias assombradas para contar: no Castelo de Almourol ou no de Bragança, amores incompreendidos deixaram espectros a pairar nas suas torres e ameias. Na Serra de Sintra sobram razões para ter medo, tantos são os relatos e os testemunhos. No Porto, há espectros a discutir a herança pela calada da noite e apartamentos que, afinal, contra todas as razões da lógica, não estão vazios como aparentam. Em Castro Marim, as mouras ainda andam à solta, e em Penafiel os sustos marcam o ritmo dos dias na Quinta da Juncosa, que há séculos foi palco de um crime hediondo. As situações mais insólitas, como a da inacabada casa em Langarinhos, Gouveia, obra que nenhum proprietário consegue finalizar, causam um friozinho no estômago a uns, sorriso trocista a outros, mas estão longe de ser únicas, num fenómeno cultural global. Lá fora, há poucos meses, a notícia encheu os títulos gordos dos jornais: Cláudia Schiffer e o marido, Matthew Vaughn, tinham acabado de se mudar com os três filhos para uma tradicional casa de campo vitoriana em Suffolk, East Anglia, Inglaterra, quando se sentiram atormentados pelo fantasma de Penélope, uma antiga dama da corte, aparentemente pouco disposta a dividir o seu secular tecto com os forasteiros. A mansão foi alvo da intervenção de especialistas em exorcismos e, só depois disso, a família de Schiffer pôde então desfazer as malas sossegada. O caso mais ilustre diz respeito à Casa Branca, onde vários presidentes norte-americanos e as suas famílias se viram importunados pelos fantasmas dos seus antecessores! Jenna Bush, filha do presidente George W. Bush, confessou mesmo ter ouvido música clássica sair da lareira, do seu quarto na Casa Branca. Ouvi ópera a sair da minha lareira. Quando disse à minha irmã Barbara, ela não acreditou. Mas voltou a acontecer na semana seguinte, desta vez com música dos anos 50, confessou numa entrevista à Texas Monthly. Depois do episódio, nunca mais voltou a dormir na mais poderosa residência oficial do mundo. O site da Casa Branca (www.whitehouse.gov) dedica uma página inteira aos seus respeitáveis fantasmas, onde pode ler-se, por exemplo, que ao longo de várias décadas o staff governamental viu Abraham Lincoln divagar pelos corredores do número 1600 da Pennsylvania Avenue. Winston Churchill recusou-se mesmo a dormir no quarto de Lincoln, depois de ali ter avistado o seu vulto. Harry Truman, em 1946, garantia numa carta dirigida à mulher, Bess: este lugar está assombrado, tão certo como dois e dois serem quatro. O Reino Unido, o país que clama mais fantasmas por metro quadro do que qualquer outro, tem igualmente o seu séquito de espectros notáveis e lugares (muitos) assombrados, incluindo monumentos mundialmente famosos, como a Torre de Londres ou o Castelo de Old Wardour. Mas afinal de onde vêm as histórias sobre fantasmas, intemporais e universais, e o que as torna tão impressionantes ao ponto de perdurarem através dos séculos? Que medos e preocupações desvendam e como têm evoluído desde os tempos mais remotos da história dos povos até aos nossos dias, nas suas modernas versões urbanas? E de que forma todas estas histórias, que em abono da verdade dão pelo nome de lendas, podem encaixar num universo ainda maior e de formidável riqueza, que é o da literatura oral? Que papel desempenham na sociedade?» In Vanessa Fidalgo, Histórias de um Portugal Assombrado, 2012, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-371-3. 
Cortesia de EdosLivros/JDACT

Um Postal de Detroit. João Ricardo Pedro. «… em certas noites de Maio, junto aos desfiladeiros das Portas de Ródão, maravilharam-se com o mesmo reflexo da Lua sobre o Tejo, e sempre que chegaram à estação de Santa Apolónia»

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«Longe de imaginar o quanto aquela notícia nos dizia respeito, e os efeitos devastadores que teria nas nossas vidas, demorei a adormecer. Ainda hoje, trinta anos depois, seis internamentos depois, centenas de caixas de comprimidos depois, sessões de psicanálise, mesas de pé-de-galo, sanatórios, termas, casas de repouso, choques eléctricos, dou por mim deitado na cama, de olhos pregados no tecto, a pensar nesses dois pobres maquinistas, frente a frente, sem tempo para uma travagem de emergência, sem tempo para saltarem das locomotivas e rolarem como cowboy sobre um manto de feno, sem tempo sequer para se questionarem acerca das circunstâncias insólitas, colossais, em que se encontravam, aos comandos dos seus exércitos indomáveis, semelhantes a dois generais inimigos que se reunissem entre as linhas avançadas para negociações de última hora, para uma tentativa de entendimento que evitasse a derrota e a chacina, e, porém, absolutamente conscientes da sua impotência para anularem o confronto, para o adiarem até, nem que fosse por breves segundos. escassíssimos segundos, os segundos suficientes para dizerem, em desolado uníssono: estamos metidos numa alhada!
Poderiam depois trocar duas ou três palavras de conforto, histórias antigas, o amor aos comboios. Talvez um deles, o de temperamento mais caloroso, começasse por confessar que, em miúdos, ele e o irmão se entretinham a apanhar escaravelhos, gafanhotos, lesmas, grilos, lagartixas, toda a espécie de bichos que saltam ou rastejam, e que, quais vítimas de um sacrifício que aplacasse a fúria dos deuses, os colavam com resina ao ferro dos carris, momentos antes da passagem do Rápido proveniente da Guarda ou dos vagões carregados de volfrâmio das minas da Panasqueira, comboios demasiado importantes para efectuarem paragem no pequeno apeadeiro cujo nome inscrito em azulejos testemunhava o domínio islâmico sobre aquelas terras até meados do século XI, altura em que os devotos das santas chagas de Cristo, sob os comandos de Fernando I, rei de Leão e Castela, expulsaram os Sarracenos da faixa circunscrita pelos rios Douro e Mondego. Novecentos anos volvidos sobre tão ilustre peleja, seria nesse apeadeiro que o pai do maquinista, humilde funcionário dos Correios e amante de banda desenhada, aguardaria, duas vezes por semana, a chegada do Regional que vinha de Lisboa e, em troca de dez ou quinze tostões, receberia das mãos do revisor uma revista com as mais recentes aventuras do Capitão Meia-Noite, do Flash Gordon, do Mandrake, do Barão de Dorset, do Kit Carson.
Chegado a este ponto, é bem possível que o maquinista fizesse uma pausa, uma dessas pausas que, quando acompanhadas de um movimento descendente do olhar, quase sempre antecedem uma ligeira inflexão na voz, colocando-a dois ou três tons mais abaixo, e revelam, por parte de quem se prepara para prosseguir o rumo de uma confidência, o receio de vir a ser condenado pelo juízo moral do interlocutor. Claro que este receio pode adquirir diferentes matizes e significados, dependendo não só da matéria de que se constitui a confidência, mas, sobretudo, da relação que já existe, ou está prestes a existir, entre quem fala e quem ouve. No caso destes maquinistas, estamos perante dois estranhos, dois homens que não se conhecem; no entanto, é provável que se tenham cruzado inúmeras vezes, a altíssimas velocidades, em circunstâncias que não permitiram mais do que um simples aceno; é provável até que tenham ambos a vaga memória de um encontro fortuito ocorrido há muitos anos, ao balcão de um desses cafés que existem no interior das grandes estações terminais; ou numa casa de banho pública, aliviando-se em urinóis adjacentes, trocando desabafos acerca do cheiro a mijo, do tempo, do futebol, enquanto os olhos repousavam, distraídos, na superfície polida da pedra mármore. Durante anos partilharam as mesmas linhas-férreas; viram repetidamente as mesmas paisagens; tentaram cumprir à risca os mesmos horários e os mesmos procedimentos de segurança; sentaram-se com zelo aos comandos das mesmas locomotivas, e os gestos mecanizados de um foram os gestos mecanizados do outro; em certas noites de Maio, junto aos desfiladeiros das Portas de Ródão, maravilharam-se com o mesmo reflexo da Lua sobre o Tejo, e sempre que chegaram à estação de Santa Apolónia, a abarrotar de Amélias e magalas, sentiram a mesma melancolia, a mesma vontade imensa e inexplicável de chorar». In João Ricardo Pedro, Um Postal de Detroit, 2016, Publicações dom Quixote, Leya, 2016, ISBN 978-972-205-949-7.

Cortesia PdonQuixote/JDACT