terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

A Brincadeira. Milan Kundera. «… senti nas faces os dedos húmidos a aplicarem o creme sobre a pele e apercebi-me dessa coisa singular e incongruente: uma desconhecida que não me é nada, a quem eu também não sou nada, acaricia-me docemente»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Depois do que nos sentámos à volta da mesinha (Kostka tinha preparado café) e conversámos uns momentos (sentado no divã, constatava com prazer a sua firmeza, não encovava nem guinchava). Kostka anunciou em seguida que deveria retirar-se para voltar ao hospital, e apressou-se a iniciar-me em certos segredos caseiros: É preciso fechar com força a torneira da banheira, a água quente corre, contrariamente ao habitual, da torneira marcada com a letra F, dentro do pequeno armário há uma garrafa de vodka acabada de encetar. Em seguida, deu-me um molho com duas chaves e mostrou-me a da porta do prédio e a do estúdio. Tendo dormido em inumeráveis camas ao longo da minha vida, criei um culto particular pelas chaves, pelo que as fiz deslizar para dentro do meu bolso com um júbilo silencioso. Kostka exprimiu ao partir o voto de que o seu estúdio me proporcionasse qualquer coisa realmente bela. Sim, disse-lhe, vai-me permitir efectuar uma bela destruição. Você acha que as destruições podem ser belas?, disse Kostka, e eu sorri no meu íntimo pois que, através daquela pergunta (proferida com doçura mas pensada combativamente) o reconheci exactamente tal como ele era (simpático e cornico simultaneamente) quando do nosso primeiro encontro há quinze anos atrás. Respondi-lhe: bem sei que você é um pacífico operário na eterna obra divina e que ouvir falar em destruições lhe desagrada, mas que hei-de fazer: eu por mim não sou um aprendiz de pedreiro de Deus. Além disso, se os aprendizes de pedreiro de Deus construírem cá em baixo edifícios com paredes verdadeiras, haverá poucas probabilidades de as nossas destruições os prejudicarem. Mas parece-me que em vez de paredes não vejo por todo o lado senão cenários. E destruir decorações é algo de muito justo.
Voltámos ao sítio onde nos tínhamos separado da última vez (talvez há nove anos atrás); a nossa desavença revestia-se agora de uma forma metafórica porque lhe conhecíamos bem o fundo e não sentíamos a necessidade de voltar a ela. Precisávamos apenas de repetir que não havíamos mudado, que continuávamos os dois igualmente diferentes um do outro (a esse respeito, devo dizer que gostava dessa dissemelhança com Kostka e que tinha, por isso, prazer em discutir com ele, pois que deste modo podia sempre, de passagem, verificar quem, de facto, sou e o que penso). Assim, para me tirar todas as dúvidas a seu respeito, respondeu-me: o que acabou de dizer soa bem. Mas diga-me lá: céptico como é, onde foi buscar a certeza que o faz distinguir o que é decoração do que é parede? Nunca lhe ocorreu duvidar de que as ilusões de que faz troça não sejam realmente ilusões? E se está enganado? E se se tratasse de valores, e você fosse um destruidor de valores? E acrescentou em seguida: um valor destruido e uma ilusão desmascarada têm o mesmo corpo lastimável, parecem-se e nada é mais fácil do que confundi-los.
Enquanto acompanhava Kostka no caminho para o hospital situado na outra ponta da cidade, brincava com as chaves no fundo do meu bolso e sentia-me bem ao lado do meu amigo de longa data, que era capaz de tentar convencer-me da sua verdade fosse onde fosse, até agora, ao atravessar o terreno desigual dos quarteirões novos. Kostka sabia sem dúvida que teríamos por nossa conta toda a noite do dia seguinte, e por isso logo se deixou de filosofias para passar aos assuntos banais, confirmando de novo que eu o esperaria amanhã em sua casa quando ele regressasse às sete horas (ele próprio não possuía outras chaves), e perguntando-me se não precisava realmente de mais nada. Passei a mão pela cara e disse que precisava de passar no barbeiro, pois tinha uma barba indecorosa. Vem mesmo a calhar, disse Kostka, arranjo-lhe um barbeiro especial! Não recusei os bons préstimos de Kostka e deixei-me levar a um pequeno salão onde em frente de três espelhos se encontravam plantadas três grandes cadeiras giratórias, duas das quais ocupadas por dois homens de cabeça inclinada e cara untada de creme. Duas mulheres de bata branca inclinavam-se sobre eles. Kostka aproximou-se de uma delas e segredou-lhe qualquer coisa; a mulher limpou a navalha com uma toalha e chamou para dentro: uma rapariga nova de bata branca apareceu para prestar os seus cuidados ao senhor abandonado na cadeira, enquanto a mulher a quem Kostka havia falado me dirigiu uma breve inclinação de cabeça e me convidou com a mão a sentar-me na cadeira livre. Kostka e eu despedimo-nos um do outro com um aperto de mão, e eu instalei-me, a cabeça apoiada na almofada que servia de encosto, e, como desde há muitos anos não gostava de olhar para a minha cara, esquivei-me ao espelho situado na minha frente, ergui os olhos e deixei-os errar pelas manchas do tecto caiado de branco.
Mantive os olhos pousados no tecto mesmo depois de sentir no pescoço os dedos da cabeleireira, que entalavam no colarinho da minha camisa a ponta de uma toalha branca. Depois ela afastou-se um passo, e não ouvi mais do que o vaivém da lâmina a ser afiada no cabedal e deixei-me ficar numa espécie de imobilidade beatífica cheia de feliz indiferença. Pouco depois, senti nas faces os dedos húmidos a aplicarem o creme sobre a pele e apercebi-me dessa coisa singular e incongruente: uma desconhecida que não me é nada, a quem eu também não sou nada, acaricia-me docemente. Em seguida, com um pincel, a cabeleireira pôs-se a espalhar o sabão e parecia-me não estar realmente sentado, mas flutuar num espaço branco semeado de manchas. E então imaginava-me (porque, mesmo nos momentos de repouso, as ideias não suspendem os seus jogos) ser uma vítima sem defesa, totalmente submetido à mulher que tinha afiado a lâmina». In Milan Kundera, A Brincadeira, 1967, Publicações dom Quixote, Lisboa, 1994, ISBN 978-972-200-014-4(7), 2016, ISBN 978-972-205-917-6.

Cortesia de PdonQuixote/JDACT

O Bibliotecário. AM Dean. «Chegou ao gabinete antes de eu conseguir acabar com ele. Na altura fiquei com a impressão de que algo não estava bem, mas não podia demorar-me»

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«(…) Isso é irrelevante, respondeu o Secretário, desde que tenhas cumprido a tua missão. Com excepcão da fonte, de quem irás encarregar-te em breve, era o último homem com acesso à lista. A fuga dessa lista havia sido um erro imperdoável. Uma coisa tão simples como uma lista de nomes punha em risco tudo o que tinham conseguido reunir. Uma lista que incluía nomes que ninguém devia conhecer. O plano dependia desse secretismo, desse anonimato, porém, sem saber bem como, a lista de nomes fora comprometida. A única resposta possível havia sido a eliminação daqueles que a tinham visto. O Guardião e o seu Ajudante eram homens cujas vidas possuíam um valor inegável, todavia esse valor era ultrapassado pelos riscos. O Secretário ficara tão absorto nos seus pensamentos que, num primeiro momento, nem sequer notou o silêncio do outro lado da linha. Mas não tardou a que um alarme interno soasse. Esqueceu os devaneios e inclinou-se para a frente. O que se passa? O que correu mal? O facto de estar à nossa espera..., pode ser mais relevante do que pensa. O Secretário estremeceu. Não lhe agradavam as surpresas. Inclinou-se um pouco mais e pressionou o auscultador contra a cara. Conta-me tudo.
Chegou ao gabinete antes de eu conseguir acabar com ele. Na altura fiquei com a impressão de que algo não estava bem, mas não podia demorar-me. A minha suspeita confirmou-se esta manhã quando regressei para acompanhar o desenvolvimento desse assunto. Continua, ordenou o Secretário com uma calma estudada. Contava com décadas de experiência a receber más notícias. Sabia como era importante manter a compostura nos momentos mais difíceis. Um bom líder tornava-se mais feroz e temível quando sabia manter a calma. Havia um livro no gabinete dele. Faltavam-lhe três folhas. Tinham sido arrancadas, explicou o Amigo. Encontrei-as queimadas no cesto dos papéis ao lado da cadeira. Fez uma pausa para que o Secretário pudesse digerir os pormenores. Não estava à espera de uma resposta ou de uma reacção. Não era assim que funcionava a relação entre eles. Esperava-se apenas que respondesse ao que lhe perguntavam. O Secretário pediria mais informações se as desejasse. O homem mais velho reflectiu sobre o estranho relatório. Então, havia qualquer coisa que o Guardião não queria que o seu assassino visse. Estava decidido a complicar-lhes a vida mesmo depois de morto. O Secretário pronunciou as seguintes palavras mais como uma ameaça do que como uma pergunta: conseguiste saber pormenores desse livro? Claro, senhor. Fez um esforço para relaxar os músculos dos ombros. O Amigo estava bem treinado. Quero esses pormenores em cima da minha mesa dentro de meia hora. Envia-os enquanto regressas a Washington. A caça não ia terminar daquela maneira. E consegue-me urna cópia desse livro.

Washington, D. C. 10h 45 EST (9h 45 CST)
As notícias contidas na pasta de arquivo vermelha que segurava nas mãos eram inquietantes, mas dificilmente mais exaustivas do que as proporcionadas pela CNN, no seu televisor, ligado do outro lado da sala, e apresentadas por uma mulher loira sentada a uma mesa. Tirara o som ao televisor há uns minutos, quando o assistente entrou no gabinete. A locutora dera a notícia de uma explosão no Reino Unido, e um helicóptero sobrevoava a cena para oferecer imagens em directo. Todavia, para além da hora da explosão e de uma panorâmica geral do alcance dos danos, pouco mais se sabia naquele momento. Uma célebre igreja antiga, uma das mais importantes do património inglês, fora destruída numa explosão às primeiras horas da manhã. Não havia baixas, salvo o dano sentimental e os estragos causados ao património histórico. Já alguém reivindicou a autoria da explosão?, quis saber. Ainda não, senhor Hines, replicou o seu assistente. Jefferson cerrou os dentes com força perante a falta de deferência do jovem. Não se dirigir a ele pelo cargo era algo que o outro fazia propositadamente. A CIA está a acompanhar o SIS britânico na procura de suspeitos, contudo, até agora, nem os loucos do costume quiseram ficar com os créditos». In AM Dean, O Bibliotecário, 2012, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-124-6.

Cortesia de CdoAutor/JDACT

A Oficina dos Livros Proibidos. Eduardo Roca. «O quê? Não dizes nada? O olhar turvo tornou-se sério. Acaso não estás contente com o nosso novo “Burgermeister?”»

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A cidade. Colónia. 1435
«(…) Por isso, reservara para ele o final do discurso. O novo burgomestre rogou-lhe que conduzisse todos os presentes numa prece. Cedeu-lhe a posição frente à assistência e Heller colocou-se junto à esposa. Sem olhar para ela, tomou-lhe a mão e adoptou uma atitude piedosa. Agripina baixou a cabeça e ouviu com fervor as palavras do arcebispo. Um solene ámen, encheu toda a praça. Nesse instante, os músicos fizeram soar os seus instrumentos e o silêncio desapareceu numa onda, tal como chegara. O público dirigiu-se aos diferentes locais que o alcaide havia disposto para que os seus concidadãos pudessem deleitar-se bebendo. De imediato foi lançada para trás das costas a piedade das palavras: o júbilo, as risadas e os bailes tornaram-se donos do centro da cidade.
Dentro do edifício, Heller dirigiu-se à sala para onde ele próprio havia convocado as autoridades a fim de celebrar a ascensão ao poder e onde já os aguardava o banquete pronto para o selecto grupo de comensais. Todos se apressaram a felicitar Heller pela nomeação e pelo discurso. Diferentemente do que acontecia na rua, ali corria o vinho mais delicioso. Um homem alto, de uns cinquenta anos, com uma larga boina magenta a combinar com a elegante túnica de tecido pesado e de requinte, esperava o momento para iniciar os elogios. Os meus mais sinceros parabéns, Burgermeister. Acompanhou as palavras com uma breve inclinação do corpo. Obrigado, meu bom Nikolas, respondeu, colocando especial ênfase no bom. Ides deleitar-nos com a vossa presença no banquete que a corporação preparou? Com certeza. Vós sabeis que a ocasião o merece, Herr…
Heller interrompeu-o, levantando a mão. Não há formalismos entre nós... Espero que desfruteis dos manjares que o consistório entendeu por bem preparar para celebrar este humilde acto. Não fiqueis afastado de mim, Nikolas. Noutro momento falaremos das vossas…, habilidades. Não duvideis. Estou à vossa inteira disposição, disse Nikolas Fischer enquanto franqueava a passagem ao burgomestre e à esposa com uma reverência. Agripina contemplava inebriada a conversa. A presença de tantas personalidades desorientava-a, pois na sua vida quotidiana via-se sempre rodeada das mesmas serviçais, de modos artificiais e melosos. O seu rosto ruborizou-se quando o homem da bela túnica magenta também a observou: surpreendida nos seus pensamentos, o olhar inteligente daquela figura parecia conhecê-los. Por um momento sentiu-se aturdida.
Um a um, foram desfilando todos os convidados. De cada qual, Heller procurou armazenar na memória o tom com que se referiam a ele, desejoso de distinguir os que estavam realmente contentes com a sua nomeação. Descobrir onde poderia ocultar-se o inimigo iria ser, a partir daquele instante, uma das suas tarefas quotidianas. O último a entrar foi o arcebispo. Heller tomou-lhe a mão entre as suas e, ajoelhando-se, beijou-lhe o anel. Bem, bem... Descontraí-vos, burgomestre. Heller apertou os dentes para simular um trejeito de orgulho. Hoje é o vosso dia. Reconheço que me surpreendeu o vosso belo discurso… Calou-se por um segundo, com a atenção fixada no bulício proveniente do exterior. Não há dúvida de que soubestes ganhar o coração dos cidadãos. Os olhos do arcebispo divergiam das suas amáveis palavras. Coroados por espessas sobrancelhas que caíam apontando ao cenho como flechas, mostravam-se duros, impenetráveis. Heller recordou-se do que se dizia: mais do que um havia tremido perante aquele olhar furibundo. Não foi mais do que um acto de agradecimento à cidade que tanto me tem dado, excelência reverendíssima. Estou convencido de que o Senhor se coloca ao lado daqueles que sabem ser agradecidos, assentiu o arcebispo com um leve sorriso. Heller sentiu um leve calafrio na nuca. Inclinou-se de novo enquanto o arcebispo deu a bênção, para se voltar lesto para a mesa do banquete. As suas mandíbulas estavam apertadas. A seu lado, Agripina suspirou. Que se passa contigo?, perguntou o marido, contrariado. Nada. É que o arcebispo foi tão amável ao saudar-nos... Não é verdade, esposo meu?
Uma figura esbelta, conquanto larga de ombros, atravessava a praça do município. Ia envolta numa túnica azul e num grande capuz da mesma cor que lhe ensombrava o rosto. Na praça, a celebração encontrava-se num momento culminante. Um homem bochechudo e rosado munido de uma enorme caneca de barro transbordante de cerveja interpôs-se no seu caminho. Pareceis um monge. Escapastes do mosteiro para virdes aqui, irmão? Soltou uma gargalhada que tresandava a álcool. O desconhecido não lhe respondeu. O homem, contrariado, afastou o capuz com um puxão. Céus, se não é um galhardo jovem! Acaso serves de escudeiro a algum cavaleiro? O outro continuava sem lhe responder. Só o cabelo ondulado e loiro se agitava quase imperceptivelmente. Os olhos, estranhamente escuros, estavam fixos no rosto do interlocutor.
O quê? Não dizes nada? O olhar turvo tornou-se sério. Acaso não estás contente com o nosso novo Burgermeister? És um desses desbocados que dizem que o grande Heller Overstolz é um assassino? Ah! Desgraçados! O seu rival morreu quando foi assaltado por meliantes, precisamente uma das muitas coisas que Heller resolverá! Decerto! Perante o silêncio, o homem franziu os lábios, visivelmente incomodado. Toma, bebe. Colocou-lhe a caneca frente ao rosto, firme. Vamos. Bebe! O jovem, após meditar um momento, segurou com uma só mão a caneca, sem a levar à boca. Por que esperas? Não estamos a celebrar?, insistiu o barrigudo, arrastando as palavras. Aproximou então a caneca dos lábios, levantou-a com rapidez e bebeu todo o seu conteúdo. Virou-a de boca para baixo para demonstrar ao bêbedo que já tinha terminado». In Eduardo Roca, A Oficina dos Livros Proibidos, O Conhecimento pode Mudar o Mundo, 2011, tradução de Óscar Mascarenhas, Marcador Editora, 2013, ISBN 978-989-754-015-8.

Cortesia de MarcadorE/JDACT

O Vírus Mona Lisa. Tibor Rode. «Madeleine olhou para a testa franzida do médico, que brilhava tenuemente à luz amarelada do candeeiro da secretária»

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«(…) O médico pôs de lado o dossiê e cruzou os braços, sem deixar de a fitar. O peito dele ergueu-se quando respirou fundo. Devia ter alguma coisa desagradável para lhe dizer. Madeleine, alegra-me muito, não, alegra-nos a todos muito que estejas melhor. Mas permite-me uma pergunta. E, por favor, não fiques irritada com ela. Como teu terapeuta, devo fazê-la muito directamente. Madeleine acenou afirmativamente com a cabeça, sentindo-se irritada. Nunca o vira assim em todas as conversas que haviam mantido. Ele, um polo de tranquilidade e refúgio de confiança, parecia estar tenso pela primeira vez. E a voz era de séria preocupação. De repente, Madeleine sentiu-se inquieta. Sim, claro, respondeu, com uma serenidade fingida. Pergunte à vontade! O terapeuta endireitou as costas e tossicou, cerimoniosamente. Madeleine, começou então, observando-a com uma expressão mais intensa do que antes. Engordaste? Madeleine até pensou ter percebido mal. Abriu a boca e fechou-a. Tentou escutar o eco das palavras dele, apesar de não haver eco na sala. Ele teria realmente..., falado em engordar» Não me percebas mal, prosseguiu o dr. Reid, parecendo sentir-se desconfortável.
Mas quando vieste ter connosco, eras uma rapariga muito magra e atraente. Muito mais bonita do que todas as outras. E agora estas aí sentada com o teu sorriso de autossatisfação, uma papada, barriguinha, como se pretendesses... O médico fez uma pausa e inclinou-se ligeiramente para ela. Desculpa a sinceridade: é de engordar que se trata! Com as últimas palavras, a expressão no seu rosto transformou-se em repugnância. Madeleine sentiu um aperto na garganta e o coração a bater dolorosamente contra as costelas, o que durante muitos anos fora um sinal evidente da sua má condição física. Sentiu uma impressão azeda a subir-lhe à boca e reprimiu um vómito com dificuldade. A mão quente do terapeuta pousou-lhe no joelho. Madeleine, disse-lhe ele, num tom compadecido, aqui queremos curar-te. Mas, ao mesmo tempo, não queremos fazer de ti uma pessoa presunçosa. Se fores odiosa e gorda, a tua saúde psíquica não te servirá para nada no mundo vulgar que existe lá fora. O mundo é mau, Madeleine. Não te esqueças disso.
Madeleine olhou para a testa franzida do médico, que brilhava tenuemente à luz amarelada do candeeiro da secretária. Sentiu a náusea a aumentar. Seria um teste? Nos olhos do dr. Reid procurou discernir algo que pudesse revelar que tudo não passava de uma brincadeira. Ou de uma simples prova de que ela entretanto se fortalecera. Mas nada descobriu no olhar dele que diminuísse a crueldade das suas palavras. Ele parecia, no entanto, seriamente preocupado com ela. E talvez mesmo triste. Todo o seu corpo se contraiu. Não dera por ter engordado. E Brian? Porque é que ele não dissera nada? Preferia mulheres gordas? Estaria na clínica para tratamento e não por causa da droga, como chegara a contar-lhe? Seria um pervertido fetichista? Ela tinha de se ir embora! Levantou-se de um salto e quase correu para a porta nas suas pernas trementes. Fez apelo a todas as suas forças para rodar a maçaneta da porta. O chão oscilou sob os seus pés como se fosse o convés de um navio debaixo de uma tempestade violenta». In Tibor Rode, O Vírus Mona Lisa, 2016, Topseller, 20/20 Editora, 2016, ISBN 978-989-883-989-3.

Cortesia de Topseller/20/20E/JDACT

O Mercador de Livros Malditos. Marcello Simoni. «Gastos pelo tempo e pelo uso, os livros emanavam um cheiro a mofo que tornava o ar irrespirável. Espreitando por entre as portas dos” armaria”»

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O Mosteiro dos Enganos
«(…) Ignazio limitou-se a esboçar um gesto compreensivo, sem transformar a conversa num interrogatório. Tinha a certeza de que as revelações não tardariam, bastando para tal uma conversa pacífica. O monge, talvez arrependido por ter falado de mais, baixou os olhos. Vinde, disse, como se quisesse acolhê-lo na sua própria casa. Permiti que vos mostre a biblioteca. A biblioteca do Castrum Abbatis estava pouco cuidada. A humidade alastrava por todo o lado, apesar de as janelas garantirem um discreto arejamento. Gastos pelo tempo e pelo uso, os livros emanavam um cheiro a mofo que tornava o ar irrespirável. Espreitando por entre as portas dos armaria, Ignazio reparou nas obras de Agostinho e de Isidoro de Sevilha, de Gregório Magno e de Ambrósio. A maior parte das obras respeitava às Sagradas Escrituras, mas também havia autores pagãos como Séneca e Aristóteles. O mercador ia folheando os livros, lia frases soltas e simultaneamente citava textos que naquela biblioteca não existiam, obras raras de temas bizarros que Gualimberto não conhecia. O bibliotecário ouvia-o com atenção, perguntando-se quem seria na realidade o indivíduo que tinha à sua frente. O acento da sua fala era indefinível: talvez castelhano, pensara, mas tingido de vagas inflexões mouriscas. Tendes muita preparação, admitiu a dada altura. Dizei-me, onde estudastes? No Studium de Toledo, respondeu o mercador, assoprando os dedos cheios de pó. Usufruí dos benefícios dos ensinamentos de Gherardo Cremona. O famoso Gherardo, que se recolheu em Espanha para estudar os textos ocultos dos mouros! Um grande magíster, exclamou o monge quase eufórico. Então deveis ter sido seguramente iniciado nos mistérios da alquimia e das ciências herméticas. Aos lábios de Ignazio aflorou um sorriso dissimulado. Por favor, padre, mudemos de assunto, peço-vos. É melhor evitarmos certos temas.
Gualimberto pareceu desiludido. Tendes razão. No entanto quero prevenir-vos: homens do vosso talento são frequentemente mal compreendidos e tornam-se presas fáceis em lugares como este. Não confieis em ninguém, no mosteiro. Sobretudo, não confieis em Rainerio Fidenza. É a segunda vez que o dizeis. Ignazio devolveu-lhe um olhar inquiridor. Tendes provas sobre a sua má-fé, ou apenas suspeições? Falai sem medo. – Suspeições? As mesmas que vós tereis, imagino. Os lábios carnudos de Gualimberto fecharam-se num sorrisinho maroto. Aposto que não acreditastes na história da morte de Maynulfo Silvacandida. O que pensais? Que se trata de uma patranha. Maynulfo não teria morrido com o gelo do Inverno. Rainerio mentiu-vos, como, de resto, o fez com toda a gente. São acusações graves. E dizei-me, o que terá acontecido ao velho? Ninguém viu o cadáver, excepto Rainerio. Os olhos do monge arregalaram-se, subitamente, febris. Diz-se que Maynulfo foi morto enquanto rezava no ermo..., e que o seu corpo terá sido escondido dos olhares dos confrades, uma vez que evidenciava sinais de ferimentos infringidos.
Tocado com esta conversa, Ignazio agarrou Gualimberto pelo braço e puxou-o para ele com um gesto enérgico. O monge estremeceu com a surpresa e opôs resistência, mas a força do interlocutor era muita e não conseguiu libertar-se. Depois ouviu a voz do mercador sussurrar-lhe ao ouvido, e então compreendeu que ele não o abordava numa atitude de ameaça mas de confidencialidade. E alguém sabe quem terá sido o responsável?, perguntou-lhe Ignazio. Não, apressou-se a responder o bibliotecário. O torno que o prendia apertou-o mais ainda, convidando-o a prosseguir. Mas..., antes da morte de Maynulfo, Rainerio acolheu na hospedaria uma figura estranha, um frade com um rosto desfigurado. Poucos o viram. Desapareceu depois da morte do velho abade, sem deixar rasto. Ignazio libertou a presa. O nome? Gualimberto recuou e baixou os olhos. Procurei entre as cartas de Rainerio… Sei que não o deveria ter feito, mas a curiosidade prevaleceu sobre a contenção». In Marcello Simoni, O Mercador de Livros Malditos, 2011, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-224-029-4.

Cortesia CAutor/JDACT

Abadia dos Cem Pecados. Marcello Simoni. «Tal como a pedra lançada ao mar pelo anjo está a pedra do exílio situada no monte da flor para nossa salvação encerrada numa vetusta cripta»

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A pedra do exílio
Planalto de Crécy. 26 de Agosto de 1346
«(…) O carro de Jérôme Bataille já se havia afastado quando Maynard conseguiu finalmente deitar-se num catre. Encontrara alojamento numa tenda próxima da igreja, uma habitação digna, protegida de olhares indiscretos. Ordenou a um rapaz que lhe levasse uma tina de água e pediu-lhe ajuda para se lavar, retirando uma moeda da bolsa que trazia à cintura e lançando-lha. Arranja-me algo que comer e roupas em bom estado, pediu. O rapaz agarrou na moeda em voo e aceitou, saindo da tenda com uma vénia. Regressou pouco depois com roupas bem dobradas e uma escudela de terracota. Enquanto esperava, Rocheblanche dedicara-se à ferida. Limpara-a com um pano húmido, passando-o em volta da cauterização de modo a sentir algum alívio. O inchaço diminuíra, mas não a dor. No entanto, não se queixava. Podia dizer-se contente por ter saído quase ileso do inferno de Crécy. Perante a espantosa mortandade de valorosos a que assistira, era de se perguntar se sobrevivera por mera sorte ou em nome de um desígnio superior. Aliás, fora apenas graças a ele que o segredo do rei da Boémia não se perdera. A questão preocupava-o. Jang Blannen não se limitara a confiar um objecto à sua guarda. Confessara-lhe uma traição, talvez nascida no seio das fileiras do exército rea1. Maynard perguntou-se se seria lícito não o contar ao soberano, apesar do juramento de silêncio.
Naquele momento, viu o rapaz estender-lhe um casaco com mangas em balão e um par de ceroulas de excelente corte. Esperando algo de mais modesto, olhou-o com desapontamento. Onde os encontraste? O rapaz encolheu os ombros. Roubei-os, admitiu com um sorriso, voltando a colocar a escudela cheia de caldo ao lado do catre. O cavaleiro vestiu-se sem fazer comentários. Embora tivesse descansado, ainda se sentia fraco. Ardia em febre e não tinha apetite, mas esforçou-se por sorver o rancho na esperança de se recompor rapidamente. Pegou então numa segunda moeda e mostrou-a ao jovem. Se souberes responder às minhas perguntas, também te dou esta, prometeu, fazendo-a rodar entre os dedos. Sua majestade encontra-se neste acampamento, não se encontra? Sim, senhor. Está na igreja em ruínas. Sabes se já convocou um conselho de guerra? Não faço ideia. Então vais ter de descobrir, disse o cavaleiro, e de te informar também sobre se sua majestade poderá conceder uma audiência. Vai! Esperou que o rapaz saísse para se entregar a outra questão importante. Pegou no pequeno rolo que lhe fora confiado por Jang Blannen e retirou-o do anel cardinalício. Não o mostreis a ninguém... Nem ao meu filho... E assim faria, pensou o cavaleiro, mas também queria descobrir qual era o mistério pelo qual ele, João I da Boémia, fora traído. A folha de pergaminho era de pequenas dimensões, podendo ser facilmente escondida atrás de uma mão. Continha um texto sucinto, escrito em latim.

Missam ut molam ab angelo in mare
est Lapis exilii situs in Monte floris
nostra salute clausus in uetusta crypta
sub caelo historiis mire depicto
a meridie Sancti Sauini in uilla Cerisii.

Maynard franziu a testa, incapaz de compreender. Não era o significado das palavras que lhe fugia, mas os conceitos a que faziam alusão. Parecia um enigma, como os que por vezes são deixados pelos monges copistas nas margens dos textos por si transcritos. Esforçou-se por descobrir um sentido, traduzindo em voz baixa.

Tal como a pedra lançada ao mar pelo anjo
está a pedra do exílio situada no monte da flor
para nossa salvação encerrada numa vetusta cripta
sob um céu de histórias maravilhosamente pintado
no meridião de São Savino em villa Cerisio.

O único indício compreensível encontrava-se na última linha, em que se fazia referência à famosa Igreja de Saint-Savin de Vienne, surgida não longe de Poitiers, perto de um local anteriormente conhecido como villa Cerisio. Fora isto, o texto apontava para um misterioso Lapis exilii, pedra do exílio, escondida numa cripta para nossa salvação, ou seja, a salvação do género humano. A alusão à pedra e ao anjo, bem como ao céu pintado, representava um verdadeiro dilema. O principal enigma, aquele que segundo Mavnard teria permitido interpretar correctamente o texto, consistia porém nas palavras in monte floris, no monte da flor. Tratava-se antes de mais de um local alto, uma montanha ou uma colina. Era aí que se devia encontrar a vetusta cripta onde estava encerrada a pedra do exílio. O cavaleiro não conseguia imaginar que arcano tesouro poderia esconder-se nesse lugar. Fosse o que fosse, Jang Blannen obrigara-o a jurar que guardaria segredo quanto ao pergaminho. Não poderia falar no assunto nem ao rei Filipe VI». In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.

Cortesia de CdoAutor/JDACT

O Vírus Mona Lisa. Tibor Rode. «Diante dos seus olhos cintilou um clarão amarelo. Betty sobressaltou-se e voltou-se para ela»

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«(…) Por isso é que vai ter problemas, replicou Helen, secamente. Mas, ao ver como Betty olhava para ela com perplexidade, pousou-lhe a mão no ombro num gesto tranquilizador. Estava só a brincar! Enquanto a colega parecia ficar mais descontraída, o olhar de Helen foi atraído pela imagem do monitor à sua frente. O que parecia uma metade sobredimensionada de uma noz aberta era, na realidade, um corte transversal do seu próprio cérebro. No canto superior direito, viu o seu nome: Helen Morgan. Era a primeira vez que via assim o seu cérebro. Entre contornos cinzentos que pareciam cristais brilhavam zonas de um vermelho-amarelado como se fossem pequenos incêndios. É a tua primeira ressonância magnética?, perguntou Betty, com um tom de inconfundível preocupação na voz. Era evidente que, apesar da tentativa de Helen de minimizar o incidente, ela tentava saber o que se passara. Já te disse, precisava de ir à casa de banho... Não me refiro a isso. Betty inclinou-se para a frente, para ver melhor um pormenor no monitor à sua frente. Mas a isto aqui. Helen sentiu o coração a acelerar-se ao olhar, com Betty, para a imagem do seu cérebro. Reparava agora no que antes deixara visivelmente passar. A alguns centímetros das zonas coloridas, no lado direito do cérebro, destacava-se um ponto no conjunto da imagem. Um ponto que ela, como neurologista, sabia bem que não devia estar ali. E era para aí que apontava o dedo indicador de Betty. E, de imediato, soube o que significava aquele ponto vermelho-claro da dimensão de uma unha do dedo polegar. Betty voltou-se para Helen, observando-a com as sobrancelhas arqueadas. Helen ignorou-a, mantendo os olhos fixos no ecrã. Lera muito, vira as imagens nos manuais e imaginara que seria assim. Mas o que agora via diante de si, e no seu próprio cérebro, causava-lhe um medo maior do que há muito antecipara. Teve a sensação de que o dedo de Betty, que ficara imóve1 mesmo no centro da imagem do seu cérebro, a tocava no interior do crânio. Helen nunca pensara que a anomalia se deixasse reconhecer tão bem e esperava que Betty não desse por ela. Dentro dela havia um mistério clínico que deixava de estar agora tão escondido que era como se tivesse sido exposto no placar de parede da sala comum. Iria custar-lhe algo manter o segredo. Sem desviar o olhar do ecrã, Helen estendeu a mão direita e empurrou com força a porta ao seu lado, fazendo com que se fechasse com estrondo. Diante dos seus olhos cintilou um clarão amarelo. Betty sobressaltou-se e voltou-se para ela. Que dirias se, no fim de semana, eu vos deixasse o laboratório, a ti e ao Claude, para as vossas gravações musicais? Um sorriso enorme fez dançar as sardas do rosto de Betty.

San Antonio
Não te sentes bem, Madeleine? Sê sincera comigo!, parecia dizer o olhar do médico. Madeleine abanou energicamente a cabeça. Desta vez não devia mentir. Sentia-se bem. Nas últimas semanas, sentira-se melhor de dia para dia. Graças às sessões com o médico. Mas também a Brian. Com este pensamento na sua cabeça de cabelos castanhos revoltos, o coração até saltou. Sinto-me realmente bem. Mesmo bem, disse, com voz firme, sustendo o olhar do dr. Reid. A expressão de cepticismo do rosto dele deu lugar a um sorriso. Isso é bom. Isso é mesmo muito bom, comentou, olhando para o dossiê com os documentos que tinha no colo como se aí procurasse uma referência. Madeleine endireitou o pescoço e julgou ver um cheque no meio dos papéis. Talvez fosse da sua mãe, para pagar o internamento na clínica. O olhar desviou-se para o relógio, pendurado por cima da porta. Já passavam cinco minutos das 15h 30. Às 16h ia encontrar-se com Brian no parque da clínica. Como demorava o ponteiro dos minutos a mexer-se!» In Tibor Rode, O Vírus Mona Lisa, 2016, Topseller, 20/20 Editora, 2016, ISBN 978-989-883-989-3.

Cortesia de Topseller/20/20E/JDACT

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

A Brincadeira. Milan Kundera. «… vou precisar de um ambiente agradável. Obviamente, não para estar sozinho. Sim, fez Kostka baixando ligeiramente a cabeça, calculo»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Expliquei-lhe que tinha chegado havia uma hora para tratar de um assunto sem importância que me reteria ali perto de dois dias, e ele logo me manifestou a surpresa feliz por a minha primeira visita lhe ter sido dedicada. Foi-me subitamente desagradável não o ter vindo procurar com um espírito desinteressado, por ele só, e a pergunta que lhe fiz (perguntei-lhe jovialmente se voltara a casar) pareceu reflectir uma atenção sincera, quando, no fundo, provinha de um calculismo baixo. Disse-me (para minha satisfação) que continuava só. Declarei que tínhamos muito que contar um ao outro. Ele concordou e lamentou não dispor, infelizmente, de pouco mais de uma hora, visto ter ainda que voltar ao hospital e, no fim da tarde, ter de apanhar um autocarro para fora da cidade. Não mora aqui?, digo, assustado. Assegurou-me que sim, um estúdio num edifício novo, mas que é penoso viver solitário. Soube que Kostka tinha, numa outra cidade a vinte quilómetros, uma noiva professora, possuindo, também ela, um pequeno apartamento de duas assoalhadas. Vai viver com ela futuramente?, perguntei-lhe. Disse-me que dificilmente encontraria trabalho noutro sítio tão interessante como aquele que lhe arranjara e que, pelo contrário, a sua noiva teria dificuldade em arranjar um lugar aqui. Pus-me a vituperar (de bom coração) as demoras da burocracia, incapaz de facilitar as coisas de maneira a que um homem e uma mulher possam viver juntos. Sossegue, Ludvik, disse-me com uma doce indulgência, que não é assim tão insuportável. A viagem custa-me, é certo, dinheiro e tempo, mas a minha solidão permanece intacta e sou livre. Porque tem você um tal desejo de liberdade?, perguntei-lhe. E você?, disse ele. Eu ando atrás das raparigas, respondi-lhe. Não é pelas mulheres, é por mim que me faz falta a minha liberdade, disse, e acrescentou: oiça, venha um momento a minha casa antes de eu me ir embora. Eu não pedia mais que isso. Saídos do recinto do hospital, logo fomos dar a um grupo de edifícios novos que, uns a seguir aos outros, se elevavam desarmoniosamente de um solo poeirento desnivelado (sem relva, sem passeios, sem asfalto) e formavam um triste cenário nos confins dos campos, vastos e planos, estendidos a perder de vista. Atravessámos uma porta, subimos uma escada demasiado estreita (o elevador estava avariado) e detivemo-nos no terceiro andar, onde reconheci o nome de Kostka no cartão-de-visita. Quando, tendo atravessado a entrada, nos encontrámos na sala, senti-me mais que satisfeito: um grande e confortável divã ocupava um canto; além do divã, havia uma pequena mesa, uma poltrona, uma grande biblioteca, um gira-discos e um aparelho de rádio.
Elogiei a Kostka o seu quarto e perguntei-lhe como era a casa de banho. Nada de luxuoso, disse, contente do interesse que eu mostrava, e fez-me passar à entrada de onde se abria a porta para a casa de banho, pequena mas muito agradável, com banheira, duche, lavatório. Ao ver este apartamento magnífico, vem-me uma ideia, disse. Que vai fazer amanhã à tarde e à noite? Ali, desculpou-se confuso, amanhã terei um longo dia de serviço, não voltarei com certeza a casa antes das sete horas. À noite, não vai estar livre? Pode ser que tenha a noite livre, respondi, mas, mais cedo, não me pode emprestar o estúdio durante a tarde? A minha pergunta surpreendeu-o, mas, imediatamente (como se tivesse medo que eu duvidasse do seu desvelo), disse-me: com todo o gosto, é seu. E prosseguiu, como que num esforço de recusa em procurar as razões do meu pedido: se tem problemas de alojamento, pode dormir aqui a partir de hoje, pois irei directamente para o hospital. Não é preciso. Estou no hotel. O problema é que o meu quarto é bastante desconfortável e, amanhã à tarde, vou precisar de um ambiente agradável. Obviamente, não para estar sozinho. Sim, fez Kostka baixando ligeiramente a cabeça, calculo». In Milan Kundera, A Brincadeira, 1967, Publicações dom Quixote, Lisboa, 1994, ISBN 978-972-200-014-4(7), 2016, ISBN 978-972-205-917-6.

Cortesia de PdonQuixote/JDACT

A Brincadeira. Milan Kundera. «O quarto não era muito convidativo: uma cama contra a parede, no meio uma mesinha com uma única cadeira, ao lado da cama um pretensioso toucador de mogno…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Assim, depois de tantos anos, voltava de novo a casa. De pé, na praça principal (que, criança, depois rapaz, depois jovem, atravessara mil vezes), não sentia qualquer emoção; pelo contrário, pensava que aquele espaço onde a torre do sino (parecida com um antigo cavaleiro sob o seu elmo) se vê acima dos telhados, lembrava a vasta parada de um quartel, e que o passado militar daquela cidade da Morávia, outrora muralha contra as incursões dos Magiares e dos Turcos, imprimira nela a marca de uma irrevogável fealdade. Durante anos, nada me atraíra à minha cidade natal. Dizia-me que ela se me tinha tornado indiferente, e isso parecia-me natural: ao fim de quinze anos vividos fora, só me restam alguns conhecidos, ou mesmo os amigos (que prefiro, de resto, evitar); a minha mãe está enterrada num túmulo estrangeiro, que não visito. No entanto iludia-me: aquilo que eu chamava indiferença era na realidade rancor; escapavam-me as razões, pois tinham-me acontecido coisas boas ou coisas más nesta cidade como em todas as outras, em todo o caso esse rancor existia; percebera-o durante a minha viagem: a missão que aqui me trazia poderia, bem vistas as coisas, cumpri-la igualmente bem em Praga, mas tinha sido, num repente, irresistivelmente atraído pela ocasião oferecida de executá-la na minha cidade natal, precisamente por se tratar de uma missão cínica e terra-a-terra que, por ironia, me absolvia da suspeita de aqui voltar sob o efeito de um enternecimento piegas pelo tempo perdido.
Uma vez mais, percorri cinicamente com os olhos a praça desengraçada antes de lhe voltar costas e tomar a rua do hotel onde tinha um quarto alugado para essa noite. O porteiro estendeu-me uma chave pendurada numa pêra de madeira dizendo segundo andar. O quarto não era muito convidativo: uma cama contra a parede, no meio uma mesinha com uma única cadeira, ao lado da cama um pretensioso toucador de mogno com espelho, junto da porta um lavatório lascado absolutamente minúsculo. Pousei a toalha na mesa e abri a janela: a vista dava sobre um pátio e sobre casas com as traseiras nuas e sujas viradas para o hotel. Fechei a janela, corri os cortinados e aproximei-me do lavatório, que tinha duas torneiras, uma com sinal encarnado, outra azul; experimentei-as, a água correu igualmente fria em ambas. Examinei a mesa, que, em rigor, chegava, visto que nela cabiam perfeitamente uma garrafa e dois copos; infelizmente, à falta de uma segunda cadeira no quarto, só uma pessoa se poderia lá instalar. Tendo puxado a mesa para perto da cama, tentei sentar-me nesta, mas era demasiado baixa e a mesa alta de mais; mais ainda, encovava de tal maneira que logo foi evidente que não só constituía um mau assento, como desempenharia de maneira duvidosa a sua função de cama. Apoiei-me nos punhos; depois estendi-me levantando cuidadosamente os pés calçados para evitar sujar a coberta e o lençol. Com o colchão cavado sob o meu peso, encontrava-me estendido como numa rede ou numa campa estreita: não me era possível imaginar partilhar aquela cama com alguém.
Sentei-me na cadeira, o olhar perdido nas cortinas iluminadas em transparencia, e reflecti. Nesse momento, fizeram-se ouvir passos e vozes no corredor; duas pessoas, um homem e uma mulher, e cada palavra era inteligível: falavam de um certo Petr, que tinha fugido de casa, e de uma tal Mara, que era idiota e estragava o pequeno; depois ouviu-se uma chave a rodar na fechadura, uma porta que se abria e as vozes que continuavam no quarto ao lado; ouvi os suspiros da mulher (sim, até os suspiros me chegavam!) e a decisão do homem de dizer de vez duas palavras à Mara. Levantei-me, a minha resolução estava tomada; lavei ainda as mãos no lavatório, limpei-as com a toalha, e deixei o hotel sem saber ao certo para onde ia. Sabia simplesmente que, se não quisesse comprometer o bom sucesso de toda a minha viagem (viagem consideralvelmente longa e fatigante) por causa da única imperfeição do meu quarto de hotel, devia, por muito que não me apetecesse, fazer um discreto apelo a qualquer amigo local. Passei rapidamente em revista todas as caras do tempo da minha juventude, para logo as afastar, pois o carácter confidencial do favor solicitado me iria obrigar a construir uma ponte laboriosa sobre os muitos anos em que nos perdêramos de vista, e isto desagradava-me. Depois lembrei-me de que aqui vivia sem dúvida um homem a quem outrora tinha, aqui mesmo, arranjado um emprego e que ficaria, pelo que conheço dele, muito contente por me fazer por sua vez um favor.
Era um ser estranho, simultaneamente de uma moralidade rígida e curiosamente inquieto e instável, de quem, pelo que eu sabia, a mulher se tinha divorciado ao fim de vários anos pelo simples facto de ele viver indiscriminadamente em qualquer lado, desde que fosse longe da mulher e dos filhos. Assustava-me a ideia de que ele se pudesse ter voltado a casar, circunstância propícia a complicar a satisfação do meu pedido, e apressei o passo em direcção ao hospital. O hospital é um conjunto de edifícios e pavilhões semeados aqui e ali sobre um vasto espaço de jardins; entrei na pequena guarita junto ao portão e pedi ao porteiro sentado atrás de uma mesa para me pôr em contacto com a secção de virologia; ele empurrou o telefone para o canto da mesa do meu lado e disse: zero dois!  Marquei o zero dois e fiquei a saber que o doutor Kostka saíra há alguns segundos e que estaria prestes a chegar à saída. Sentei-me num banco perto da porta principal para me assegurar de que o não perderia, e olhava distraidamente os homens passeando-se em roupão de hospital, de riscas azuis e brancas, quando o vi: vinha pensativo, alto, magro, simpático na sua falta de presença, sim, era mesmo ele. Levantei-me do meu banco e fui direito a ele como se fosse empurrá-lo; deitou-me um olhar de desagrado, mas depressa me reconheceu e me abriu os braços. Senti que a sua surpresa foi de quase felicidade, e a espontaneidade do seu acolhimento deu-me prazer». In Milan Kundera, A Brincadeira, 1967, Publicações dom Quixote, Lisboa, 1994, ISBN 978-972-200-014-4(7), 2016, ISBN 978-972-205-917-6.

Cortesia de PdonQuixote/JDACT

domingo, 26 de fevereiro de 2017

El rei João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «Donzelas, encontrei-me numa bela manhã,  em meados de Maio, num verde jardim»

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O Homem de Alexandria e a Pedra Filosofal
«(…) Ali, no seu jardim, por detrás dos terrenos onde, mais tarde, João, o Rei perfeito e odiado por tantos, erigiu o hospital sob a devoção de Todos-os-Santos, mestre Tadeu construíra o seu Éden para apetrechamento da sua botica que, também, era a parte aparente do seu laboratório de Adepto secreto, de buscador da verdade e de mim mesmo, cabritinho. Que pena, mestre Tadeu, tu reres partido já e me teres deixado! Há instantes na nossa vida, só porque conhecemos alguém que o destino fez cruzar nosso caminho, que valem todo o seu percurso. O horto de mestre Tadeu faz-me recordar um poeta, Poliziano:

«Donzelas, encontrei-me numa bela manhã,
em meados de Maio, num verde jardim.
À minha volta havia violetas e lírios,
entre a erva verde. e graciosas flores novas
azuis, amarelas, brancas e vermelhas:
pus a minha mão no coração delas
para enfeitar meus cabelos ruivos...»

Meus cabelos são louros e mestre Tadeu colocou a mão sobre a minha fronte, olhou-me nos olhos e afirmou, com aquele sorriso leve a aflorar-lhe a boca carnuda, muito vermelha: aguenta-te, rapaz. Vamos tratar disto. Podia ser pior. Depois saiu. Meu tio Gil, que o trouxera, afagou-me o rosto: calma, filho, o homem de Alexandria, às vezes, faz milagres. Só mais tarde soube que os físicos mais importantes do Ocidente tinham de passar por Alexandria. Até hoje. A velha escola médica ainda funciona. Não sei se o bom Tadeu me concedeu o privilégio de me oferecer as goras mágicas que retirou do tubo de vidro onde destilava o espírito do mercúrio, do enxofre, do arsénio e do sal amoníaco, como ensinou Vicente Beauvais, ou me ofereceu o reflexo da matéria-prima através daquela beberagem insípida que ingeri durante sete dias de mistura com as gotas de orvalho destiladas pelo filtro das madrugadas. Não sei se mestre Tadeu retirou a sabedoria do Talmude, das palavras mágicas de Salomão ou dos livros cobertos de pó do seu Scriptorium, por onde exercia nos domínios da memória a aprendizagem diária do seu saber.
Não sei, nem me interessou na altura, se foi com o auxílio de Matthaeus Sylvaticus ou de Nicolau Myrepso ou de Avicena, que ele me recambiou a maldita doença. Uma manhã vi que a urina que vertia para o pote de cobre e que a minha mãe despejava numa tigela de barro claro, para observar se continha sangue, estava clara, levemente amarelo-acastanhada, mas que o sangue vermelho já não deixava depósito no fundo em borras escuras. Mais três dias, deixei de ter dores e fiquei são. A febre desapareceu. Quase a chorar, agarrei-me a ele, percorrido pela gratidão. Sorridente, afastou-me: calma, rapaz. Fiz isso por ti, mas que ninguém saiba. Fi-lo pela tua juventude, pelos teus, pelo teu tio. Não quero problemas. Por uma coisa destas uma familiar minha foi queimada em Espanha. Por lá ainda é pior o ódio ao médico judeu. A desgraçada curou um frade e, sobre a mezinha, fez uma reza, uma oração banal. O malandro salvou-se mas denunciou-a como feiticeira. Foi queimada com os livros todos que tinha na botica. Agora deixa-te de histórias com rameiras. Que te fique de emenda. Podia ser pior. Estás curado.
Ainda pensei ir para Pisa, pois soubera da transferência da Universidade de Florença para lá. Isto foi no ano em que Ivan III de Moscovo casou com a neta do infeliz derradeiro imperador bizantino e declarou Moscovo a Terceira Roma, e, em Agosto, a Princesa dona Joana foi para o convento de Aveiro. Toda a Élente se espantou. Primeiro
Odivelas, depois Aveiro. O príncipe não gostou e tentou tudo para a convencer do contrário. Estávamos informados através de João da Paz, ainda apenas Yacoub, e de Isaac Abravanel, responsável pelas finanças e também conselheiro, nesse capítulo, do duque de Bragança. A ida de dona Joana para o Convento das Dominicanas foi um choque muito profundo para o irmão». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de EPresença/JDACT

Casanova Revisitado. Susan Swan. «Mantido unido por fita gomada, o muito manuseado livrinho de alegres axiomas listava mais de 230 entradas, incluindo a recomendação de lord Byron»

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«(…) É melhor enterrarmo-nos em casa e evitar um desastre como o que vitimara a sua mãe, na Grécia. Se não fosse pela sensação incómoda de que devia à mãe e a ela própria conhecer a ilha em que Kitty morrera, nunca teria deixado Lee pagar-lhe a viagem para o cerimonial fúnebre em Creta. E, evidentemente, ficara intrigada quando a tia lhe pedira para entregar os documentos na Biblioteca Sansoviniana, em Veneza. Fora a primeira vez que a tia Beatrice tomara a sério o trabalho de Luce como arquivista e sentia-se orgulhosa por lhe ter sido concedido o papel de guardiã dos documentos da família.
Voltou a colocar o diário, cuidadosamente, na sua caixa de arquivo, juntamente com as fotocópias e o manuscrito árabe. Pela janela, avistava filas de telhados de terracota, brilhando ao sol da manhã. Afinal, acabaria por ser um dia ensolarado. Fechou as cortinas e começou a despejar a mochila, comprada numa loja de campismo local. Primeiro, o kit de pêndulo que a mãe lhe oferecera alguns natais antes. Depois, o seu monte de livros. A par de As Pedras de Veneza e o seu Guia Básico de Veneza, trouxera alguns ensaios sobre Casanova, um texto encadernado, Casanova: o Homem Que Realmente Amava as Mulheres, por Lydia Flem, e uma bastante manuseada cópia do primeiro volume de História da Minha Vida, por Jacob Casanova, descrevendo a sua infância veneziana. Tivera de deixar em casa os outros volumes de memórias, assim como uma estimada cópia do seu único romance, Icosameion, uma fantasia de ficção científica surpreendentemente moderna, acerca de uma nova raça humana que vivia nas entranhas da terra. Em seguida: uma pequena mala de roupa com a maquilhagem da mãe, que ainda retinha o aroma do perfume dela. Alinhou os livros no parapeito da janela e começou a arrumar as suas roupas novas. Não eram do seu estilo habitual, mas pretendera algo de mais vivo, para aliviar o espírito. Pendurou três blusas de chiffon semitransparentes e três vestidos coleantes e voltou a dobrar cuidadosamente os minúsculos tops de licra e as lindas calças Malibu brancas que comprara para usar na Grécia.
Seguindo o conselho de Lee, emalara também um cachecol de lã e a sua camisola favorita, um patchwork de coloridas sedas chinesas cosidas nos ombros, porque Veneza era fresca na Primavera. Inesperadamente, os dedos fecharam-se sobre a figurinha que Lee lhe oferecera naquela manhã e ela empurrou-a mais para o fundo da mochila. Luce não soube quanto tempo dormiu. Vestiu um par de calças de ganga e a camisola favorita, depois voltou a tirar o diário da sua antepassada de dentro da caixa. Devia levá-lo com ela? Usar a cópia de leitura fornecida por Charles Smith não pareceria tão pessoal. As suas folhas soltas, fotocopiadas, não ostentavam a tinta original, a impressão da mão de um escritor. Embora soubesse que não devia, não conseguiu resistir. Embrulhou o diário no tecido sem ácido da caixa de arquivo e colocou-o dentro de uma mochila pequena. Foi à recepção procurar as instruções que Lee lhe deixara e percorreu as ruas de Veneza transportando o diário da sua antepassada.
Já era um pouco tarde para usar óculos de sol, mas ela tinha falta de vista e precisava das lentes para ver à distância. Na praça, deparou com uma celebração. Uma figura de vestes vermelhas e rendas caminhava, oscilante, em direcção à basílica, carregando uma cruz de ouro do tamanho de uma pessoa. A figura escarlate era seguida por uma grande multidão de homens, mulheres e crianças, cantando um hino em latim. Sentiu um ligeiro temor, como se observasse um misterioso rito antropológico. A tia Beatrice era o último membro da família a crer numa doutrina cristã formal. Insistira em levar Luce, quando esta era pequena, aos serviços anglicanos e mostrara-lhe, orgulhosamente, o antigo exemplar de família de A Boa Noite do Optimista. Mantido unido por fita gomada, o muito manuseado livrinho de alegres axiomas listava mais de 230 entradas, incluindo a recomendação de lord Byron, segundo a qual fazer o seu melhor é o caminho para a bênção.
Havia a mãe, claro, mas o tipo de religião que esta professava não era nada a que se pudesse chamar cristão. E, de qualquer forma, suspeitava de que uma auto-ilusão premeditada se ocultava no seio de todas as convicções religiosas, um deliberado pôr de lado aquilo que é verdade, em favor daquilo que o crente necessita que seja verdade, semelhante à suspensão da descrença durante um filme ou uma peça de teatro. Virando as costas à basílica, seguiu as instruções de Lee e deu por si no restaurante Da Raffaele. Saiu para o terraço, com mesas dispostas ao longo do canal, e viu o jovem fotógrafo do táxi aquático a beber um cappuccino. Vestia algo que pareceu a Luce um fato de mágico: um casaco preto que lhe assentava mal, com lapelas brilhantes, e também um ligeiro brilho nas costuras dos ombros. A enorme máquina fotográfica repousava na cadeira a seu lado. Pôs-se de pé, sorrindo, e ela virou-se timidamente, fingindo não o ver. Menina!, gritou ele e, quando ela se virou, impressionada pela sua persistência, uma explosão de luzes floresceu por trás da cabeça dele, como relâmpagos minúsculos, vários flashes simultâneos que iluminaram a sua bonita expressão devoradora». In Susan Swan, Casanova Revisitado, 2005, tradução de Fernanda Semedo, Editorial Estampa, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-332-345-0.

Cortesia de EEstampa/JDACT

sábado, 25 de fevereiro de 2017

A Oficina dos Livros Proibidos. Eduardo Roca. «Ao mesmo tempo que o marido manobrava no sentido da ascensão social, Agripina continuou a viver rodeada de criadas. Embora a princípio tenha protestado»

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A cidade. Colónia. 1435
«(…) A vestimenta era constituída por valiosas roupagens de veludo preto, e um manto de pele de bela confecção resguardava-o do leve frio. Na cabeça, um chapéu largo e abaulado recentemente trazido da Flandres. Heller continuava a recitar o discurso enquanto a sua mente visitava outros lugares. Embora continuasse a sorrir, os seus olhos cinzentos emoldurados por umas sobrancelhas quase inexistentes deixaram de prestar atenção à plebe para olharem para dentro, para as suas recordações. Sentia-se extremamente satisfeito com o que conseguira. Hábil no ofício da construção, que herdou do pai, chegou muito jovem a mestre; o mais jovem de toda a Renânia. Mas rapidamente a sua ambição o conduziu pelas veredas da política e do poder. Subiu os degraus dentro do seu grémio até atingir a direcção do conselho da congregação dos mestres construtores. A partir daí, colheu fama de duro negociador na sua luta feroz pela manutenção da autonomia de todos os seus agremiados perante o poder local, sempre disposto a intervir, tentando controlar os preços, as transacções, os impostos. Heller aprendeu de maneira natural a ser persuasivo, constante e tenaz. E também a mostrar-se ameaçador quando era necessário. Porém, acima de tudo aprendeu que sem poder ficaria sempre às portas de atingir as suas metas.
Para as conseguir abrir tinha de ganhar a confiança dos nobres. Muitos burgueses compravam por bom dinheiro um título nobiliário. Pugnavam por conseguir a chave para uma muito privada instância do prestígio social, um patamar de onde se decidia o destino do resto da população. Com paciência de formiga, Heller foi acumulando o dinheiro necessário. De repente, apresentou-se-lhe um atalho: a filha de um idoso barão atravessou-se no seu caminho. Agripina, assim chamada em honra da mulher do imperador romano Cláudio, que cedeu o seu nome à cidade (Colonia Agrippina), era apenas uma adolescente fruto de um casamento tardio. A sua mãe falecera quando ela nasceu, pelo que a doce e ingénua rapariga cresceu menina mimada por um pai com mais de sessenta anos e pelas criadas que dela cuidavam.
A candura da moça era tal que, ao conhecê-la, Heller compreendeu que seria um delito não aproveitar a oportunidade. Fez uso de toda a sua capacidade de persuasão até que a menina se sentiu a mulher mais apaixonada do mundo. O casamento acabou por ser celebrado, malgrado a oposição inicial do barão, que pretendia reservar a filha para algum nobre de melhor linhagem. Heller, portanto, viu-se tornado barão por obra e graça do sacramento do matrimónio. Enquanto saboreava o mel dos esponsais precoces, conseguiu fazer com que o sogro, cada vez mais débil, lhe fosse confiando a direcção das suas propriedades e, sobretudo, a representação em público do seu cargo. Quando o barão faleceu, Heller já era tratado como mais um nobre e, com pouco mais de quarenta anos, um firme candidato a cargos de poder.
Ao mesmo tempo que o marido manobrava no sentido da ascensão social, Agripina continuou a viver rodeada de criadas. Embora a princípio tenha protestado, batendo o pé, tentando chamar a atenção de um marido que via cada vez menos, acabou por se render. Parecia que o seu destino estava escrito: viver sem que nada de material lhe faltasse e sem homem a quem abraçar. Enquanto o povo de Colónia o interrompia com aplausos, Heller desviou por um instante o olhar para a sua mulher e fez uma pausa. Chegara o momento dos agradecimentos. O novo Burgermeister estava consciente de que devia cuidar muito bem das suas relações. Sabia que estava colocado num lugar idóneo conquanto frágil. Encontrava-se entre os nobres pelo casamento. Era membro dos grémios, sempre tensos com as autoridades locais, das quais era agora a cabeça visível. Um passo em falso e ninguém lho perdoaria.
Havia ainda o arcebispo, o mais intransigente, o mais perigoso. Dieter von Morse era um dos homens mais poderosos de todo o Sacro Império Romano Germânico e, além de arcebispo, um dos sete príncipes eleitores. Entre as prerrogativas destes estava a de escolher o imperador. Devia mostrar-se submisso e obediente perante ele. A relação com o imperador, com o papa de Roma e com a nobreza, os Von Morse eram uma das famílias mais antigas, tornava-o depositário do poder autêntico em Colónia, se bem que vivesse realmente em Bona. As suas visitas eram constantes e inúmeras as suas propriedades por toda a cidade. Também o eram no campo: se um dia impedisse a passagem pelo seu território, Colónia ficaria isolada. Até a água do Reno se deteria a uma só ordem dele». In Eduardo Roca, A Oficina dos Livros Proibidos, O Conhecimento pode Mudar o Mundo, 2011, tradução de Óscar Mascarenhas, Marcador Editora, 2013, ISBN 978-989-754-015-8.

Cortesia de MarcadorE/JDACT

A Oficina dos Livros Proibidos. Eduardo Roca. «A torre sul da catedral inacabada começava a erguer-se majestosa e espalhava o seu influxo sobre cada um dos presentes, dizia-se que, uma vez que as duas torres estivessem completas»

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A cidade. Colónia. 1435
«(…) Nessa manhã de Outubro, o dia tinha-se levantado instável. Nas ruas desordenadas, multidões começavam a percorrer a cidade mais antiga do império. Havia já catorze séculos que fora fundada pelos romanos ao expulsarem uns bárbaros dos seus acampamentos nas margens do Reno. Apesar de ter amanhecido nublado e da chuva intermitente que ferroava do céu, as cores vivas estavam presentes como fragmentos de um mosaico espalhado pelas principais praças da cidade. Os habitantes transbordavam de alegria: o novo burgomestre celebrava a sua ascensão ao cargo com abundante cerveja e com numerosos actos para regozijo dos cidadãos. Muitos assistiam porque na maioria das oficinas tinham dado o dia como feriado; alguns, porque se sentiam contagiados pela estridência de outros; uns poucos, porque a aglomeração de gente lhes permitia aproximarem-se das bolsas dos mais descuidados. Em geral, Colónia respirava efervescência. A recente colheita não fora má. Logo chegaria o duro Inverno com as suas longas noites de frio e de preocupações.
A torre sul da catedral inacabada começava a erguer-se majestosa e espalhava o seu influxo sobre cada um dos presentes, dizia-se que, uma vez que as duas torres estivessem completas, do mais alto delas e num dia limpo seria possível divisar a cidade de Breda e a desembocadura do Reno. No interior das muralhas, não ficava recanto que um olhar de pássaro não alcançasse. Desde a praça, o Altmarkt, centro nevrálgico e dinamizador da cidade, até aos extremos da rua principal, a Hochstrasse, os cidadãos sentiam o abrigo clemente da pedra sagrada erguida como tributo a Deus e aos seus adoradores, os Reis Magos. Os seus restos descansavam ali, trazidos de terras longínquas.
Extramuros, a sua influência era também notável e, a partir do topo, avistavam-se muitas léguas em redor. O perfil recortado da grande sé prometia aos camponeses uma aproximação ao Criador. A paisagem ocre e dura da campina mostrava os canteiros poligonais a formarem as diferentes peças de um quebra-cabeças. No meio, como o talhe impossível de uma faca descomunal, o Reno, avançando sinuoso até se perder na distância, o ar cada vez mais espesso, o horizonte diluído na neblina dividindo a meio o quadro da paisagem: em cima, no alto de tudo, um azul rasgado pelas nuvens; ao fundo, o ocre e o amarelo das alamedas e dos freixiais que acompanhavam o curso das águas sem se atreverem a tocar-lhes. Mais longe, estendendo-se para leste e para norte, o verde dos bosques de coníferas: um imenso mar impossível de abarcar por inteiro. Dispersos, a meio caminho, o acobreado e o laranja dos telhados húmidos salpicando a natureza, avisando da presença humana para lá da cidade repleta e buliçosa que marcava o ponto final na harmonia da paisagem.
O recém-nomeado burgomestre tinha convidado os cidadãos a celebrar a sua ascensão ao poder consistorial, uma coisa por que ele, Heller Overstolz, ansiava havia anos. A figura de Heller mal se via da praça quando assomou à torre gótica que coroava a fachada da câmara municipal, a Rathaus. Num acto invulgar, dirigiu-se à cidadania com um discurso inflamado e cheio de promessas. Em baixo, a assistência silenciou-se por instantes, grata pela festa de que desfrutava. A maioria dos assistentes escutou enlevada o que dizia o novo Burgermeister, não tanto porque estivesse interessada no discurso em si, mas porque representava uma novidade, uma ruptura com a rotina. A boca de Heller esboçou um sorriso semelhante ao de um réptil aos olhos de todos aqueles rostos atentos. Não distinguia as fisionomias, tão-somente as ricas cores dos seus trajos festivos e as caras sorridentes daqueles que já haviam provado a cerveja grátis. Aspirou fundo enquanto continuava com as suas palavras, uma alocução embutida na memória na noite anterior. O seu corpo delgado mantinha-se estático, cativando a atenção no braço direito, que se movimentava para cima e para baixo como se estivesse a marcar um compasso». In Eduardo Roca, A Oficina dos Livros Proibidos, O Conhecimento pode Mudar o Mundo, 2011, tradução de Óscar Mascarenhas, Marcador Editora, 2013, ISBN 978-989-754-015-8.

Cortesia de MarcadorE/JDACT

O Espião de João II de Portugal. Deana Barroqueiro. «Piscando um olho ao mercador que soluça, o corsário deita um pouco de cai no recipiente e agita-o»

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O corsário de Malabar
«(…) Os corsários ocupam-se dos feridos, sem deixar de manter uma vigilância apertada sobre a tripulação e os viajantes, separados em dois grupos. Pêro observa como os passageiros guardam os mulheres no meio deles, para as proteger de qualquer ultraje. O capitão e o seu lugar-tenente abeiram-se dos mercadores e os homens que não estão de guarda acercam-se para participar na folia. Meus senhores, pede Timoja com irónica cortesia, dai-nos as vossas bolsas e as jóias, em paga do muito trabalho e dos mortos que houvemos na tomada do barco. O pai de Schaban e a maioria dos homens entregam as bolsas e as jóias que trazem postas. Quatro tratantes (aquele que faz negócios) caem de joelhos, numa ladainha de juras e súplicas: não trago dinheiro, meu senhor! Só mercadorias para vender em Goa. Sou Al-Qadi, um pobre mercador de panos, nada mais tenho além do que me haveis confiscado, capitão! Juro por Allah! Fio-me mui pouco em juras de mouros embusteiros, diz Timoja a rir e faz sinal aos seus homens. Dois corsários corpulentos sobem com Al-Qadi para um rebordo alto de madeira e, por entre gargalhadas de escárnio, suspendem-no pelos tornozelos, de cabeça para baixo, sacudindo-o como um trapo. A cabaia vira-se do avesso, descaindo para o pescoço e deixa à mostra as largas ceroulas de algodão e as meias atadas nos joelhos, ao mesmo tempo que uma chuva de moedas cai de um cinto de pano e rola pela cobertura.
Com que então não tinhas posses, cão mentiroso?!, achincalha Marakkar. Dêem-lhe umas chicotadas para lhe avivar a memória. O senhor que se segue... Capitão! Marakkar!, grita um grumete. Aquele ali engoliu umas pedras. Ora vede o ratoneiro de jóias! Achas-te mais esperto que os outros?, zomba o lugar-tenente, acercando-se do mercador, que, pálido de terror, se limita e abanar a cabeça numa negativa muda às perguntas do pirata. Engoliste as pedras, filho de moura barregã, para as cagares mais tarde? Não sabes que para grandes males há sempre grandes remédios? Um riso velhaco arrepanha-lhe a cara queimada como um esgar de desdém: Trazei-me um affabeh e um pouco de cal! O grumete entrega-lhe de imediato o jarro de bico fino e um punhado de cal, como se os tivesse preparado de antemão. Basta-me uma colher, pois não quero matar este cão antes de me dar as pedras ou terei de lhe abrir a pança. Solta as vestes e urina para dentro do cântaro usado para as abluções da boca e das mãos, provocando o murmúrio indignado dos prisioneiros.
Piscando um olho ao mercador que soluça, o corsário deita um pouco de cai no recipiente e agita-o. Segurem o porco mouro e abram-lhe a boca. Os algozes lançam ao chão o prisioneiro, a espernear e a guinchar, imobilizando-o. Marakkar enfia-lhe o bico do affabeh na boca, forçando-o a engolir a beberragem até ao fim, deixando-o enrodilhado no solo, a chorar de asco e humilhação. O veneno não tarda a fazer efeito e o mercador, num acesso de soluços e tremuras convulsivas, começa a vomitar como se fosse lançar os fígados pela boca. Até parece mouro encantado, a bolçar rubis e pérolas da boca p'ra fora! Como é que comeste tanta pedra, capado tinhoso, sem te esganares? Com insultos e pragas, os corsários recolhem do vomitado uma meia dúzia de pedras e pérolas de preço, enquanto o homem agoniza com o estômago desfeito, amaldiçoando-os. Botei cal em demasia e tirei-lhe o chiadouro, diz Marakkar, revirando-o com o pé para se certificar de que morrera e afastando-se em seguida. Agora os outros.
Já todos entregaram a pedraria!, corta Timoja, de cenho franzido, mostrando-lhe as bolsas das jóias que os três mercadores tinham feito aparecer de dentro das vestes, como por magia. Já tens o que querias. Então, vejamos as mulheres, pois as fêmeas mouras dão boas escravas e ainda melhores concubinas! Estalam uivos e gritos e as mulheres choram nos braços dos parentes. São sete, quatro persas e três árabes. Pêro já vira as primeiras junto dos pequenos pavilhões armados sobre a cobertura de canas e, quanto às arábias, apenas avistara uma matrona que não parava de rezingar a propósito de tudo e de nada com o marido, um mercador de tecidos de algodão; as duas restantes nunca tinham posto um pé fora do casulo de panos. Todas estão veladas, os rostos cobertos por um pedaço de tecido fino com uma estreita fenda para os olhos ou com uma espécie de pequeno avental de crinas de cavalo.
Marakkar afasta os prisioneiros da sua frente e, seguido de dois guardas armados, acerca-se das mulheres. Pêro e Schaban remexem-se inquietos, contorcendo os corpos numa vã tentativa de soltar as cordas. As vossas jóias, ó flores do Islão, entregai-nos as vossas jóias e nenhum mal vos sucederá. Estamos aqui para vos proteger e..., servir! A última frase, dita com ironia, provoca risos e doestos de grosseiro apreço. Pulseiras, colares, brincos e anéis passam para as mãos do lugar-tenente de Timoja. É tudo, minhas belas? Lembrai-vos de que pagareis caro pelo escondido... Ide buscar, sem detença, os vossos cofres de viagem! Os parentes das cativas protestam, querendo acompanhá-las, mas são mantidos em respeito pelas armas. Acompanhadas por um guarda, as mulheres entram nas tendas que lhes servem de habitação, já vasculhadas pelos corsários, com a mais velha a resmungar entre dentes contra os ladrões de honestos viajantes que mal ganham para viver». Deana Barroqueiro, O Espião de D. João II, na Demanda dos Segredos do Oriente e do Misterioso Reino do Preste João, Ésquilo, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-809-258-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT