terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

O Erotismo. Georges Bataille. «Pois há para os amantes mais chance de não poder se reencontrar longamente do que gozar de uma contemplação alucinada da continuidade que os une»

jdact e wikipedia

«(…) O erotismo dos corpos tem de qualquer maneira algo de pesado, de sinistro. Ele guarda a descontinuidade individual, e isto é sempre um pouco no sentido de um egoísmo cínico. O erotismo dos corações é mais livre. Ele se separa, na aparência, da materialidade do erotismo dos corpos, mas dele procede, não passando, com frequência, de um seu aspecto estabilizado pela afeição recíproca dos amantes. Ele pode-se desligar inteiramente daquele, mas isto são excepções, justificadas pela grande diversidade dos seres humanos. Em sua origem, a paixão dos amantes prolonga no campo da simpatia moral a fusão dos corpos entre si. Ela a prolonga ou lhe serve de introdução. Mas, para aquele que a sente, a paixão pode ter um sentido mais violento que o desejo dos corpos. Nunca devemos esquecer que, apesar das promessas de felicidade que a acompanham, ela introduz inicialmente a confusão e a desordem. A paixão venturosa acarreta uma desordem tão violenta que a felicidade em questão, antes de ser uma felicidade cujo gozo é possível, é tão grande que é comparável ao seu oposto, o sofrimento. A sua essência é a substituição de uma descontinuidade persistente por uma continuidade maravilhosa entre dois seres. Mas essa continuidade é sobretudo sensível na angústia, na medida em que ela é inacessível, na medida em que ela é busca na impotência e na agitação. Uma felicidade tranquila, onde o sentimento de segurança predomina, só tem sentido se encontrar a calma para o longo sofrimento que a precedeu. Pois há para os amantes mais chance de não poder se reencontrar longamente do que gozar de uma contemplação alucinada da continuidade que os une.
As chances de sofrer são tão grandes que só o sofrimento revela a inteira significação do ser amado. A posse do ser amado não significa a morte; ao contrário, a sua busca implica a morte. Se o amante não pode possuir o ser amado, algumas vezes pensa em matá-lo: muitas vezes ele preferiria matar a perdê-lo. Ele deseja em outros casos sua própria morte. O que está em jogo nessa fúria é o sentimento de uma continuidade possível percebida no ser amado. Ao amante parece que só o ser amado, isto tem por causa correspondências difíceis de definir, acrescentando à possibilidade de união sensual a união dos corações, pode neste mundo realizar o que nossos limites não permitem, a plena fusão de dois seres, a continuidade de dois seres descontínuos. A paixão nos engaja assim no sofrimento, uma vez que ela é no fundo a procura de um impossível e, superficialmente, sempre a busca de um acordo dependente de condições aleatórias. Entretanto, ela promete ao sofrimento fundamental uma saída. Nós sofremos com o nosso isolamento na individualidade descontínua. A paixão nos repete incessantemente: se você possuísse o ser amado, este coração que a solidão de, ora formaria um só coração com o do ser amado. Pelo menos em parte, esta promessa é ilusória. Mas, na paixão, a imagem dessa fusão toma corpo, às vezes de maneira diferente para cada um dos amantes, numa louca intensidade. Para além de sua imagem, de seu projecto, a fusão precária que reserva a sobrevivência do egoísmo individual pode, por seu lado, entrar na realidade.
Pouco importa: dessa fusão precária ao mesmo tempo profunda, o sofrimento, a ameaça de uma separação, deve, o mais frequentemente, manter a plena consciência. Nós devemos, seja como for, tomar consciência de duas possibilidades opostas. Se a união dos dois amantes é o efeito da paixão, ela invoca a morte, o desejo de matar ou o suicídio. O que caracteriza a paixão é um halo de morte. Abaixo dessa violência, à qual responde o sentimento de contínua violação da individualidade descontínua, começa o campo do hábito e do egoísmo a dois, o que quer dizer uma nova forma de descontinuidade. É somente na violação, com estatuto de morte, do isolamento individual que aparece essa imagem do ser amado que tem para o amante o sentido de tudo o que é. O ser amado para o amante é a transparência do mundo.
É o ser pleno, ilimitado, que não limita mais a descontinuidade pessoal. É, em síntese, a continuidade do ser percebida como uma libertação a partir do ser do amante. Há uma absurda, uma enorme desordem nessa aparência, mas, através do absurdo, da desordem, do sofrimento, uma verdade de milagre. Nada, no fundo, é ilusório na verdade do amor: o ser amado equivale para o amante, para o amante só, sem dúvida, pouco importa, à verdade do ser. O acaso quer que, através dele, a complexidade do mundo tendo desaparecido, o amante perceba o fundo do ser, a simplicidade do ser». In Georges Bataille, O Erotismo, 1957/1968, tradução de João Bernard Costa, L&PM Editores, 1987, Editora Antígona, Lisboa, 1988, ISBN 978-972 608-018-3.

Cortesia de L&PM/E Antígona/JDACT