sábado, 25 de fevereiro de 2017

A Oficina dos Livros Proibidos. Eduardo Roca. «A torre sul da catedral inacabada começava a erguer-se majestosa e espalhava o seu influxo sobre cada um dos presentes, dizia-se que, uma vez que as duas torres estivessem completas»

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A cidade. Colónia. 1435
«(…) Nessa manhã de Outubro, o dia tinha-se levantado instável. Nas ruas desordenadas, multidões começavam a percorrer a cidade mais antiga do império. Havia já catorze séculos que fora fundada pelos romanos ao expulsarem uns bárbaros dos seus acampamentos nas margens do Reno. Apesar de ter amanhecido nublado e da chuva intermitente que ferroava do céu, as cores vivas estavam presentes como fragmentos de um mosaico espalhado pelas principais praças da cidade. Os habitantes transbordavam de alegria: o novo burgomestre celebrava a sua ascensão ao cargo com abundante cerveja e com numerosos actos para regozijo dos cidadãos. Muitos assistiam porque na maioria das oficinas tinham dado o dia como feriado; alguns, porque se sentiam contagiados pela estridência de outros; uns poucos, porque a aglomeração de gente lhes permitia aproximarem-se das bolsas dos mais descuidados. Em geral, Colónia respirava efervescência. A recente colheita não fora má. Logo chegaria o duro Inverno com as suas longas noites de frio e de preocupações.
A torre sul da catedral inacabada começava a erguer-se majestosa e espalhava o seu influxo sobre cada um dos presentes, dizia-se que, uma vez que as duas torres estivessem completas, do mais alto delas e num dia limpo seria possível divisar a cidade de Breda e a desembocadura do Reno. No interior das muralhas, não ficava recanto que um olhar de pássaro não alcançasse. Desde a praça, o Altmarkt, centro nevrálgico e dinamizador da cidade, até aos extremos da rua principal, a Hochstrasse, os cidadãos sentiam o abrigo clemente da pedra sagrada erguida como tributo a Deus e aos seus adoradores, os Reis Magos. Os seus restos descansavam ali, trazidos de terras longínquas.
Extramuros, a sua influência era também notável e, a partir do topo, avistavam-se muitas léguas em redor. O perfil recortado da grande sé prometia aos camponeses uma aproximação ao Criador. A paisagem ocre e dura da campina mostrava os canteiros poligonais a formarem as diferentes peças de um quebra-cabeças. No meio, como o talhe impossível de uma faca descomunal, o Reno, avançando sinuoso até se perder na distância, o ar cada vez mais espesso, o horizonte diluído na neblina dividindo a meio o quadro da paisagem: em cima, no alto de tudo, um azul rasgado pelas nuvens; ao fundo, o ocre e o amarelo das alamedas e dos freixiais que acompanhavam o curso das águas sem se atreverem a tocar-lhes. Mais longe, estendendo-se para leste e para norte, o verde dos bosques de coníferas: um imenso mar impossível de abarcar por inteiro. Dispersos, a meio caminho, o acobreado e o laranja dos telhados húmidos salpicando a natureza, avisando da presença humana para lá da cidade repleta e buliçosa que marcava o ponto final na harmonia da paisagem.
O recém-nomeado burgomestre tinha convidado os cidadãos a celebrar a sua ascensão ao poder consistorial, uma coisa por que ele, Heller Overstolz, ansiava havia anos. A figura de Heller mal se via da praça quando assomou à torre gótica que coroava a fachada da câmara municipal, a Rathaus. Num acto invulgar, dirigiu-se à cidadania com um discurso inflamado e cheio de promessas. Em baixo, a assistência silenciou-se por instantes, grata pela festa de que desfrutava. A maioria dos assistentes escutou enlevada o que dizia o novo Burgermeister, não tanto porque estivesse interessada no discurso em si, mas porque representava uma novidade, uma ruptura com a rotina. A boca de Heller esboçou um sorriso semelhante ao de um réptil aos olhos de todos aqueles rostos atentos. Não distinguia as fisionomias, tão-somente as ricas cores dos seus trajos festivos e as caras sorridentes daqueles que já haviam provado a cerveja grátis. Aspirou fundo enquanto continuava com as suas palavras, uma alocução embutida na memória na noite anterior. O seu corpo delgado mantinha-se estático, cativando a atenção no braço direito, que se movimentava para cima e para baixo como se estivesse a marcar um compasso». In Eduardo Roca, A Oficina dos Livros Proibidos, O Conhecimento pode Mudar o Mundo, 2011, tradução de Óscar Mascarenhas, Marcador Editora, 2013, ISBN 978-989-754-015-8.

Cortesia de MarcadorE/JDACT