quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Objecto Quase. José Saramago, «Caindo assim a cadeira, sem dúvida cai, mas o tempo de cair é todo o que quisermos, e enquanto olhamos este tombo que nada deterá e que nenhum de nós iria deter»

jdact e wikipedia

«(…) Desgraçadamente, o mogno, verbi gratia, não resiste ao caruncho como resiste o antes mencionado ébano ou pau-ferro. A prova está feita pela experiência dos povos e dos madeireiros, mas qualquer de nós, se animado de espírito científico bastante, poderá fazer a sua própria demonstração usando os dentes numa e noutra madeira e julgando a diferença. Um canino normal, mesmo nada preparado para uma exibição de força dental circense, imprimirá no mogno uma excelente e visível marca. Não o fará no ébano. Quod erat demonstrandum. Por aqui poderemos avaliar as dificuldades do caruncho. Nenhuma investigação policial será feita, embora este fosse justamente o momento propício, quando a cadeira apenas se inclinou dois graus, posto que, para dizer toda a verdade, a deslocação brusca do centro de gravidade seja irremediável, sobretudo porque a não veio compensar um reflexo instintivo e uma força que a ele obedecesse; seria agora o momento, repete-se, de dar a ordem, uma severa ordem que fizesse remontar tudo, desde este instante que não pode ser detido até não tanto à árvore (ou árvores, pois não é garantido que todas as peças sejam de tábuas irmãs), mas até ao vendedor, ao armazenista, à serração, ao estivador, à companhia de navegações que de longe trouxe o tronco aparado de ramos e raízes. Até onde fosse necessário chegar para descobrir o caruncho original e esclarecer as responsabilidades. É certo que se articulam sons na garganta, mas não conseguirão dar essa ordem. Apenas hesitam, ainda, sem consciência de hesitar, entre a exclamação e o grito, ambos primários. Está por- tanto garantida a impunidade por emudecimento da vítima e por inadvertência dos investigadores, que só pro forma e rotina virão verificar, quando a cadeira acabar de cair e a queda por enquanto ainda não fatal estiver consumada, se a perna ou pé foi malevolamente cortado e criminosamente também. Humilhar-se-á quem tal verificação fizer, pois não é menos que humilhante usar pistola no sovaco e ter um toco de madeira carunchosa na mão, esfarelando-o debaixo da unha que para isso nem precisaria de ser tão grossa. E depois arredar com o pé a cadeira partida, sem ao menos irritação, e deixar cair, também cair, o pé inútil, agora que acabou o tempo da sua utilidade, que precisamente é a de se ter partido.
Em algum lugar foi, se é consentida esta tautologia. Em algum lugar foi que o coleóptero, pertencesse ele ao género Hilotrupes ou Anobium ou outro (nenhum entomologista fez peritagem e identificação), se introduziu naquela ou noutra qualquer parte da cadeira, de qual parte depois viajou, roendo, comendo e evacuando, abrindo galerias ao longo dos veios mais macios, até ao sítio ideal de fractura, quantos anos depois não se sabe, ficando porém acautelado, considerada a brevidade da vida dos coleópteros, que muitas terão sido as gerações que se alimentaram deste mogno até ao dia da glória, nobre povo nação valente. Meditemos um pouco na obra pacientíssima, esta outra pirâmide de Queóps, se isto são maneiras de grafar egípcio em português, que os coleópteros edificaram sem que dela nada pudesse ver-se por fora, mas abrindo túneis que de qualquer modo irão dar a uma câmara mortuária. Não é forçoso que os faraós sejam depositados no interior de montanhas de pedras, num lugar misterioso e negro, com ramais que primeiro se abrem para poços e perdições, lá onde deixarão os ossos, e a carne enquanto não for comida, os arqueólogos imprudentes e cépticos que se riem das maldições, naquele caso como se diz egiptólogos, neste caso como se deverá dizer lusólogos ou portugalólogos, a seu tempo chamados. Ainda sobre estas diferenças de lugar onde se faz a pirâmide e esse outro onde vai instalar-se ou é instalado o faraó apliquemos el cuento e digamos, de acordo com as sábias e prudentes vozes dos nossos antepassados, que num lado se põe o ramo e no outro se vende o vinho. Não estranhemos portanto que esta pirâmide chamada cadeira recuse uma vez e outras vezes o seu destino funerário e pelo contrário todo o tempo da sua queda venha a ser uma forma de despedida, constantemente voltada ao princípio, não por lhe pesar assim tanto a ausência, que mais tarde será para longes terras, mas para cabal demonstração e compenetração do que despedida seja, pois é bem sabido que as despedidas são sempre demasiado rápidas para merecerem realmente o nome. Não há nelas nem ocasião nem lugar para o desgosto dez vezes destilado até à pura essência, tudo é balbúrdia e precipitação, lágrima que vinha e não teve tempo de mostrar-se, expressão que bem quereria ser de profunda tristeza, ou melancolia como outrora se usou, e afinal fica careta, ou ficacareta que é evidentemente pior. Caindo assim a cadeira, sem dúvida cai, mas o tempo de cair é todo o que quisermos, e enquanto olhamos este tombo que nada deterá e que nenhum de nós iria deter, agora já sabido irremediável, podemos torná-lo atrás como o Guadiana, não de medroso, porém de gozoso, que é modo celestial de gozar, também sem outra dúvida merecido. Aprendamos, se possível, com Santa Teresa de Ávila e o dicionário, que este gozo é aquela sobrenatural alegria que na alma dos justos produz a graça. Enquanto vemos a cadeira cair, seria impossível não estarmos nós recebendo essa graça, pois espectadores da queda nada fazemos nem vamos fazer para a deter e assistimos juntos. Com o que fica provada a existência da alma, pela demonstrativa via de um efeito que, dito está, precisamente não poderíamos experimentar sem ela. Torne pois a cadeira à sua vertical e comece outra vez a cair enquanto à matéria voltamos. Eis o Anobium, que este é o nome eleito, por qualquer coisa de nobre que nele há, um vingador assim que vem do horizonte da pradaria, montado no seu cavalo Malacara, e leva todo o tempo necessário a chegar para que passe o genérico por inteiro e se saiba, se nenhum de nós viu os cartazes no átrio da entrada, quem afinal de contas realiza isto». In José Saramago, Objecto Quase, 1978, Editorial Caminho, colecção O Campo da Palavra, 1998, ISBN 978-972-210-292-6.

Cortesia de ECaminho/JDACT