domingo, 31 de março de 2019

No 31. Rosa Brava. José Manuel Saraiva. «Foi, portanto, com um sentimento de enorme alegria que Leonor recebeu aquele bendito anúncio, sobretudo pela perspectiva de uma alteração, embora breve, do curso regular do seu calendário, monótono e triste»

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«(…) Num frémito de emoção e de descontrolo, a velha ajoelhou-se de seguida no chão, ergueu os olhos e as mãos aos céus e bradou: perdoai-lhe, meu Deus Nosso Senhor que estais no Céu, e não queirais ouvir o que esta minha adorada dama Vos disse agora, levada com toda a certeza por algum espírito maligno trazido para aqui pelo seu danado esposo. Perdoai-lhe, Deus Nosso Senhor, e não a deixeis cair em tentações satânicas... De bruços sobre a cama e com o rosto escondido na palma das mãos, a dama começou a chorar já então arrependida, não só de ultrajar a Deus mas também com o receio de vir a sofrer pesados castigos por tanto ter pecado naquela hora exasperante. Emocionalmente devastada, exausta de dor e de pranto, a senhora do morgado acabou por adormecer sob a cuidada vigilância de Briolanja Mendes.
Nas duas semanas seguintes Leonor Teles e João Lourenço raramente se viram e se relacionaram. Ela passava a maior parte do tempo nos aposentos e no leito; ele consumia-o nas caçadas e diversões. Numa manhã, estava a jovem sentada na cozinha em frente à lareira, chegou o marido com a notícia de que João Afonso Telo mandara dizer que era sua intenção deslocar-se a Pombeiro para uma visita de cortesia, no último dia do mês. E que levaria consigo um grupo de amigos. Radiante com a novidade, quanto mais não fosse pela circunstância de rever o tio e de conhecer pessoas diferentes das habituais, Leonor prontificou-se imediatamente a organizar a ementa e a dirigir a recepção. Porém, até ao dia aprazado, o último de Novembro, o quotidiano de ambos não se alterou, como também nunca se recompôs a relação entre o casal. O matrimónio era recente, sem dúvida, mas as suas vidas já se tinham autonomizado. Ela continuava a dormir, a chorar e a rezar; ele persistia na caça, nas diversões e na ida às put… Foi, portanto, com um sentimento de enorme alegria que Leonor recebeu aquele bendito anúncio, sobretudo pela perspectiva de uma alteração, embora breve, do curso regular do seu calendário, monótono e triste.
Tamanho o entusiasmo dela que logo ali e naquele momento se manifestou empenhada na concepção de uma farta ementa, destinando para o jantar desse dia carne de vaca picada com cebola, cravo, açafrão, pimenta e gengibre, regada abundantemente com azeite e vinagre; fatias de galinha temperadas com salsa, coentros, hortelã, canela e um número considerável de ovos cozidos e escalfados; coelho assado com cebola pisada, vinagre, cravo, pimenta e muita gordura; e lampreia cozida, temperada com quase todos os condimentos utilizados nas anteriores iguarias. E porque ninguém melhor do que ela sabia dos gostos do tio, mandaria confeccionar, para o fim de tudo, a guloseima que ele mais apreciava: tigelada de arroz cozido com muitas gemas de ovos e queijo fresco. Vinho palhete de Azóia, que os apreciadores comparavam aos vinhos gregos de malvasia e que já era conhecido em Inglaterra, nos Países Baixos e em todo o mundo hanseático, haveria de servir de rega à poderosa ementa.
Como estava previsto, a meio da manhã de 30 de Novembro chegava ao morgado de Pombeiro João Afonso Telo com um familiar e oito amigos: o sobrinho Gonçalo Teles Menezes, irmão de Leonor, o arcebispo de Viseu, os alcaides de Castelo Rodrigo e da Covilhã, um fidalgo de São Pedro do Sul, um infanção de Montemor-o-Velho, um médico do Porto, um juiz e um lente da Faculdade de Direito Civil, de Coimbra. Cumprida a recepção de boas-vindas, sem quaisquer formalidades, os convidados passaram imediatamente à sala comum para descansar um pouco e, de seguida, se servirem das viandas postas à disposição de todos sobre a mesa de pinho que em espaço ocupava um quinto da divisão. O conde de Barcelos foi o primeiro a servir-se, como haveria de ser o último a acabar já o sol se tinha posto. A dado instante da conversa e ao correr do prândio, João Afonso Telo virou-se para a sobrinha e perguntou: então quando é que vamos ter a alegria de nos dares um descendente? A jovem passou disfarçadamente a ponta dos dedos pelos lábios, sorriu com indisfarçável nervosismo e mentiu: não sei para quando será, estimado tio, para já nada indica que venha a caminho...» In José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.
                                                                                                              
Cortesia de OdoLivro/JDACT

Rosa Brava no 31. José Manuel Saraiva. «Como sabes, preciso apenas de mais algum tempo para me certificar se estou ou não repleta. Se estiver, Briolanja, não tenho outro remédio…»


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«(…) Durante alguns minutos uma e outra ficaram em silêncio. A ama manteve-se na mesma posição, estática, de pé, encostada à parede do quarto; por seu lado, Leonor Teles deixou-se cair de costas para trás e, já deitada sobre a cama, confessou: o pior de tudo é que julgo estar de barriga, porque me faltou a regra já lá vão cinco dias. Como sabes, preciso apenas de mais algum tempo para me certificar se estou ou não repleta. Se estiver, Briolanja, não tenho outro remédio senão parir a criança que vier aí. Ao acabar a confissão com lágrimas no rosto, a nova senhora de Pombeiro ordenou à ama que se fosse embora e a deixasse sozinha. Mas, quando Briolanja transpunha já a porta, Leonor pediu: vê o que podes fazer por mim, boa amiga. Passou-se uma semana, mas um dia, na intimidade de mais uma conversa, a bela esposa de João Lourenço Cunha revelou à ama que tinha entrado num período de excepção. A menorreia nunca mais tinha aparecido. O caso fora confidenciado a Briolanja poucas horas antes da chegada intempestiva ao solar de um mensageiro de Barcelos com uma carta de Maria Teles para a sua irmã Leonor Teles. Era uma carta simples, breve, uma mensagem por via da qual Maria, já então viúva de Álvaro Dias Souza, senhor de Mafra e da Ericeira, lhe anunciava que ia partir para Lisboa. Logo que recebeu a carta, a destinatária abriu-a à pressa e leu:

Minha dilecta irmã,
Senhora dona Leonor Teles Menezes e Senhora do Morgado de Pombeiro, Quero apenas informar-te de que a rogo do nosso muitoestimado tio, senhor João Afonso Telo, junto de Sua Alteza Real El-Rei Fernando I, partirei já no próximo domingo para Lisboa, a fim de me instalar no Paço de São Martinho, como açafata da Infanta dona Beatriz, irmã de Sua Alteza Real. Talvez a minha ida para Lisboa, ainda por cima com o fim de servir na corte, ajude a superar a tristeza da minha amarga viuvez. Espero que sejas feliz com o teu admirável e benquisto esposo, que para isso muito pedirei a Deus Nosso Senhor e aos Santos milagreiros. Aceita, minha adorada irmã, a estima e o amor da Maria Teles.

Quando acabou de ler em voz alta a mensagem na presença da aia, Leonor, que se encontrava sentada numa cadeira junto à janela dos seus aposentos, levantou-se de súbito, esmagou a carta entre os dedos com toda a força e gritou descontrolada: ela vai para Lisboa rezar a Deus e aos santos milagreiros pela minha felicidade e a do meu admirável e benquisto esposo? Não acredito nisto, Briolanja, não acredito que a minha estimada irmã, conhecendo a natureza do canalha com quem me casei, rogue por mim a Deus e peça aos santos o favor de me salvarem. Não preciso disso, mulher, dispenso rezas e favores de quem quer que seja, a quem quer que seja... Senhora, acudiu a ama num grito sinistro, crispada de horror e medo ao ouvir tanta blasfémia. A intenção de sua amada irmã é estimável. Ela diz isso apenas porque lhe quer bem, e como a senhora sabe ninguém pede ajuda a Deus Nosso Senhor se não estiver em conformidade com as suas divinas leis». In José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.
                                                                                                              
Cortesia de OdoLivro/JDACT

sábado, 30 de março de 2019

A Farsa. Christopher Reich. «Não consigo mexer os dedos do pé. Parece que está tudo solto lá em baixo. Está doendo, Jonathan. De verdade. Calma, deixe eu dar uma vista de olhos»

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«(…) Três metros a separavam das pedras. Um e meio. No instante seguinte, ela deu um salto perfeito e inverteu a direcção. Jonathan relaxou. Emma desceu zunindo pelo trenó e fez outra curva perfeita. Abaixou as mãos nas laterais do corpo. Flexionou os joelhos para amortecer qualquer lombada escondida. Qualquer sinal de cansaço havia desaparecido. Ele ergueu um punho cerrado em gesto de triunfo. Emma tinha conseguido. Dali a meia hora estariam os dois sentados num cubículo reservado no Restaurante Staffelalp, em Frauenkirch, com dois cafés Lutz fumegantes à sua frente, rindo das peripécias do dia e fingindo que nunca haviam corrido qualquer perigo. Não de verdade. Mais tarde voltariam para o hotel, cairiam na cama e... Emma caiu fazendo a terceira curva. Esbarrou em algum obstáculo sob a neve ou então demorou meio segundo a mais para virar e os seus esquis chocaram contra as pedras. A barriga de Jonathan se contraiu. Horrorizado, ele a viu cavar uma cicatriz bem no centro do trenó. As suas mãos se agarraram à neve, mas o declive era acentuado demais. E estava congelado. Emma foi descendo cada vez mais rápido. Ao bater numa lombada, o seu corpo foi arremessado no ar como uma boneca de pano. Aterrou com uma das pernas dobrada para trás. Houve uma explosão de neve. Os seus esquis foram lançados para cima como se tivessem sido disparados por um canhão. Ela começou a despenhar, com os braços e pernas abertos, girando sem parar.
Emma!, gritou Jonathan, tomando impulso e descendo pelo tobogã. Esquiou sem pensar, com os braços bem abertos para manter o equilíbrio, o corpo retesado, deslizando pela encosta. Um véu de bruma cruzou o declive e por um instante ele se perdeu num vazio branco e sem visibilidade nenhuma, sem saber onde era em cima e onde era em baixo. Endireitou os esquis e varou a nuvem como um raio. Emma estava caída bem mais abaixo na encosta, de bruços, com a cabeça mais baixa do que os pés e o rosto enterrado na neve. Ele parou a três metros dela. Tirando os esquis, caminhou pela neve fofa com passos altos, as pernas arqueadas, os olhos atentos a qualquer ínfimo movimento. Emma, disse com firmeza. Está-me ouvindo? Tirando a mochila, ajoelhou-se e limpou a neve da boca e do nariz da mulher. Apoiando uma das mãos nas suas costas, sentiu o peito subir e descer. Sua pulsação estava forte e regular. Dentro da mochila havia uma sacola de nylon com um gorro sobressalente, luvas, óculos e uma t-shirt térmica. Ele enrolou a t-shirt e acomodou-a debaixo da bochecha de Emma. Nesse exacto instante ela mexeu-se. Ai, mer…, murmurou.
Fique quieta, ordenou Jonathan com a mesma voz que usava no pronto-socorro. Correu uma das mãos por cima da sua calça, começando na coxa e descendo. De repente, o rosto dela se contorceu de agonia. Não..., pare!, gritou. Ele afastou as mãos. Alguns centímetros acima do joelho, alguma coisa fazia pressão por dentro no tecido da calça. Ficou olhando para aquela protuberância grotesca. Somente uma coisa no mundo tinha aquele aspecto. Partiu, não foi?, Emma estava com os olhos arregalados, piscando depressa. Não consigo mexer os dedos do pé. Parece que está tudo solto lá em baixo. Está doendo, Jonathan. De verdade. Calma, deixe eu dar uma vista de olhos. Usando o canivete suíço, ele abriu um rasgão na calça de esqui da mulher e afastou o tecido delicadamente. Um osso espatifado furava a sua roupa térmica de baixo. O tecido em volta estava ensopado de sangue. Fratura exposta do fémur». In Christopher Reich, A Farsa, tradução de Fernanda Abreu, Editora Arqueiro, S. Paulo, 2008, ISBN 978-858-041-013-6.

Cortesia de EArqueiro/JDACT

Wolf Hall. Hilary Mantel. «Mas é verdade!, exclama Morgan. Tim-tim por tim-tim. Não é? Excepto a história do padre. E que ele ainda não morreu»

Cortesia de wikipedia e jdact

Cruzando o Mar Estreito. Putney, 1500
«(…) Ah, diz Kat, eles vivem brigando. Garotos. Na margem do rio. Certo, deixe-me ver se entendi bem, começa Morgan. O garoto chegou em casa ontem com as roupas rasgadas e os nós dos dedos esfolados e o velho disse: o que é isso, andou brigando? Então Walter esperou até ao dia seguinte e atacou o garoto com uma garrafa. Em seguida, derrubou-o no pátio, cobriu-o de pontapés, espancou o menino com uma tábua de madeira que estava ali perto... Ele fez isso? Toda a paróquia já sabe! Tinha gente fazendo fila no cais para me contar, eles já gritavam a história para mim antes mesmo que o barco atracasse. Morgan Williams, escute isso, seu sogro espancou Thomas e o garoto foi rastejando à beira da morte para a casa da irmã, eles chamaram o padre... Chamou o padre? Ai, essa família Williams!, reclama Kat. Vocês se acham tão importantes por aqui... As pessoas fazem fila para lhe contar coisas... E porquê? Porque você acredita em qualquer história. Mas é verdade!, exclama Morgan. Tim-tim por tim-tim. Não é? Excepto a história do padre. E que ele ainda não morreu. Com esse minucioso estudo da diferença entre um cadáver e meu irmão, sem dúvida vai acabar na bancada dos magistrados.
Quando eu for magistrado, vou atirar o seu pai nas galés. Multá-lo? Não tem multa que chegue para ele. De que adianta multar uma pessoa que simplesmente vai roubar ou extorquir o mesmo valor de algum inocente que cruzar o seu caminho? O garoto geme: mas tenta fazê-lo sem interromper a conversa. Calma, calma..., murmura Kat. Eu diria que os magistrados já tiveram o bastante, diz Morgan. Quando ele não está aguando a cerveja que produz, está criando animais ilegalmente em território público; quando não está explorando áreas públicas, está atacando um juiz de paz; quando não está bêbado, está desmaiado de bêbado; e se ele não for morto antes do seu tempo, não existe justiça neste mundo. Já acabou?, pergunta Kat. Ela dá as costas ao marido. Tom, é melhor ficar connosco por enquanto. Morgan Williams, o que me diz? Quando ficar bom, ele será útil no trabalho pesado. Tom pode fazer as contas, ele sabe somar e..., qual era a outra coisa? Ora, vamos, não riam de mim, quanto tempo acham que eu tive para aprender números, com um pai daqueles? Se sei escrever o meu nome, é porque o Tom aqui me ensinou. Ele não vai..., diz o rapaz, gostar disso.
Ele só consegue articular frases curtas, simples e declarativas. Gostar? Ele deveria envergonhar-se, declara Morgan. Kat comenta: quando Deus fez meu pai, deixou a vergonha de fora. O garoto diz: porque..., pouco mais de um quilómetro. Ele pode, fácil..., vir atrás de si? Ele que experimente! Morgan exibe o punho novamente: seu nervoso soquinho galês. Após Kat terminar de limpá-lo e Morgan Williams deixar de se gabar e de tentar reconstituir o ataque, o garoto dormiu por uma ou duas horas para se recuperar. Durante esse tempo, Walter chegou à casa com algum conhecido e houve certa gritaria e pontapés nas portas, mas o barulho chegou ao garoto de modo abafado e ele pensou que talvez fosse um sonho. Agora, a questão na sua mente é o que vou fazer?, não posso ficar em Putney. Em parte porque as lembranças de anteontem e da primeira briga estão retornando, e ele acha que talvez uma faca tenha aparecido em algum momento, que fora enterrada em alguém, e que esse alguém não era ele; resta saber se teria sido por ele. Nada disso está claro na sua mente. Apenas a sua decisão sobre Walter: Para mim, chega. Se ele vier atrás de mim novamente, eu vou matá-lo, e se eu o matar, vão-me enforcar, e se vão enforcar-me, quero que seja por um motivo melhor». In Hilary Mantel, Wolf Hall, 2009, Editora Record, tradução de Heloisa Mourão, 2011, ISBN 978-850-109-768-2.

Cortesia ERecord/JDACT

sexta-feira, 29 de março de 2019

A Princesa Determinada. Catarina de Aragão. Philippa Gregory. «Henrique analisou-as. Pedira a Suas Majestades da Espanha que todas as acompanhantes da filha fossem bonitas…»

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«(…) Deus queira que nunca caia. Mas agora os vossos problemas terminaram, concluiu Henrique. O próximo barco que apanhareis será a barcaça real, quando descerdes o Tamisa. Agrada-vos ser Princesa de Gales? Eu sou a Princesa de Gales desde os três anos, corrigiu. Sempre me trataram por Catarina, a Infanta, Princesa de Gales. Eu sabia que seria esse o meu destino. Olhou para Artur, que permanecia sentado, em silêncio, a observar a mesa. Toda a vida soube que casaríamos. Foi simpático da vossa parte escrever-me com tanta frequência. Ordenaram-me que vos escrevesse, disse desajeitadamente. Fazia parte dos meus estudos. Mas eu gostava de receber as vossas respostas. Meu Deus, rapaz, não és lá muito brilhante, pois não?, perguntou o pai em tom crítico. O rosto de Artur tornou-se escarlate até às orelhas. Não precisavas de lhe dizer que te tinham mandado escrever-lhe, ralhou o pai. Era melhor deixá-la pensar que escrevias por tua iniciativa. Não me importo, afirmou Catarina, tranquilamente. A mim também me mandavam responder. E, a propósito, gostaria que disséssemos sempre a verdade um ao outro. O rei soltou uma gargalhada.
Daqui a um ano, já não querereis, previu. Nessa altura, preferireis a mentira correcta. A grande salvação de um casamento é a ignorância mútua. Artur assentiu obedientemente com a cabeça, mas Catarina limitou-se a sorrir, como se as observações do rei fossem interessantes, mas não necessariamente verdadeiras. Henrique deu por si a sentir-se melindrado com a rapariga, mas também provocado pela sua beleza. Atrevo-me a afirmar que o vosso pai não conta à vossa mãe cada pensamento que tem, afirmou, tentando fazer com que ela voltasse a olhar para si. Conseguiu. Ela lançou-lhe um olhar prolongado, lento e avaliador com os seus olhos azuis. Talvez não conte, admitiu. Não sei. Não é apropriado que eu saiba. Mas, quer ele lhe conte quer não, a minha mãe sabe sempre de tudo. Ele riu-se. A dignidade dela era bastante agradável numa rapariga cuja cabeça mal lhe chegava ao peito. A vossa mãe é uma visionária? Tem o dom da vidência? Ela não retribuiu o sorriso. Ela é sábia, disse simplesmente. É a mais sábia monarca da Europa.
O rei pensou que seria um disparate refrear a devoção de uma rapariga pela sua mãe, e seria deselegante apontar que a mãe podia ter unificado os reinos de Castela e Aragão, mas que ainda estava bastante longe de conseguir criar uma Espanha pacífica e unida. A capacidade táctica de Isabel e Fernando forjara um único país a partir dos reinos muçulmanos, ainda tinham de conseguir que todos aceitassem a sua paz. A própria viagem de Catarina para Londres perturbada por rebeliões dos mouros e judeus, que não suportavam a tirania dos reis espanhóis. Mudou de assunto. Porque não nos mostrais uma dança?, pediu, pensando que gostava de a ver mover-se. Ou isso também não é permitido na Espanha? Uma vez que sou uma princesa inglesa, tenho de aprender os vossos costumes, disse. Uma princesa inglesa levantar-se-ia a meio da noite e dançaria para o rei, depois de este ter forçado a entrada nos seus aposentos? Henrique riu-se para ela. Se tivesse alguma consciência, dançaria. Ela esboçou um sorriso, pequeno e reservado.
Então, dançarei com as minhas aias, decidiu, levantando-se da cadeira junto da mesa principal e indo para o meio do salão. Chamou uma pelo nome, Henrique reparou, Maria Salinas, uma rapariga bonita, de cabelo escuro, que veio rapidamente colocar-se ao lado de Catarina. Outras três jovens, fingindo timidez, mas ansiosas por se exibirem, avançaram.
Henrique analisou-as. Pedira a Suas Majestades da Espanha que todas as acompanhantes da filha fossem bonitas, e estava satisfeito por comprovar que, por muito que o seu pedido lhes tivesse parecido insensível e inapropriado, haviam acedido a satisfazê-lo. As raparigas eram todas bonitas, mas nenhuma ofuscava a princesa que permaneceu composta e, em seguida, levantou as mãos e bateu palmas, para ordenar aos músicos que tocassem. Reparou de imediato que ela se movia como uma mulher sensual. A dança era uma pavana, uma dança lenta e cerimonial, e ela movia-se abanando as ancas e de olhos fechados, com um leve sorriso nos lábios. Fora bem ensinada, qualquer princesa seria ensinada a dançar no mundo da corte, onde dançar, cantar, a música e a poesia eram mais importantes do que qualquer outra coisa; mas ela dançava como unia mulher que permitia que a música a conduzisse, e Henrique, que tinha alguma experiência, acreditava que as mulheres que se deixavam invadir pela música eram as que melhor respondiam aos ritmos do desejo». In Philippa Gregory, Catarina de Aragão, A Princesa Determinada, Livraria Civilização Editora, 2006, ISBN 978-972-262-455-8.
                                                                                      
Cortesia CivilizaçãoE/JDACT

Alexandre VI. Volker Reinhardt. «A santidade dos dominicanos revelou-se no cumprimento da profecia. A canonização é também um acto de agradecimento. Dessa maneira, foi estabelecida uma relação de reciprocidade…»

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De Xátiva a Roma. 1378-1458. As Origens dos Bórgia
«(…) E a recompensa era grande: glória ao governante e posições de liderança lucrativas ao conselheiro ou diplomata que desse a sua colaboração. Em 1411, o clérigo de Xátiva, cuja reputação como advogado não parava de crescer, foi nomeado cônego da Catedral de Lérida. Essa função, que fora ocupada regularmente por outros membros da linhagem principal da família, garantia consideráveis rendimentos e justificava as esperanças por posições mais elevadas. Mas na viragem da história de vida de Alonso deve ter ocorrido alguns anos antes. O dominicano Vicente Ferrer (morto em 1419), amplamente conhecido como rígido pregador, anunciou ao jovem clérigo que ele, um dia, ocuparia o trono de Pedro. Tais profecias não faltavam em biografias papais.
Factos concretos são a prova de que aqui não se trata da invenção piedosa de um biógrafo tardio, mas sim de uma autêntica e marcante experiência. Trinta e seis anos após a morte do eloquente frade, Calisto III, de facto eleito papa, não tendo outra coisa mais importante para fazer, incluiu o nome de Ferrer na lista dos candidatos à canonização. Mas também isso não significava muita coisa, afinal o dominicano era considerado havia muito tempo um escolhido do Senhor no que dizia respeito às rígidas reformas da Igreja. Ele era também um conterrâneo do papa, o que geralmente acelerava os processos de canonização. Mas havia um motivo ainda mais pessoal para a rápida canonização. Esse motivo é mencionado na competente biografia de Ferrer, escrita pela pena de um contemporâneo:
Alonso Borja dizia havia anos aos seus seguidores que estava confiante, antes mesmo de ter sido eleito efectivamente papa: ele nutria a esperança de um dia governar pessoalmente a Igreja Romana. Mas depois de terem morrido dois ou três papas e a eleição ter acabado de forma diferente, muitos daqueles que tinham apostado nele agora faziam troça do velho ridículo, cujas previsões não passavam de conversa fiada. Essas mesmas pessoas, contudo, ficaram tremendamente surpresas quando, após a morte do papa Nicolau VI, ele, de facto, ocupou o trono de Pedro, e questionavam-no pelas inspirações que o tinham levado a fazer tão frequentemente previsões desse desfecho, de forma assim tão inabalável. Sua resposta: quando eu era ainda adolescente, foi-me anunciado por um homem mundialmente famoso, marcado pela fé, piedade e santidade de vida, Vicente Ferrer, da Ordem dos Pregadores, que eu, um dia, seria o maior de todos os mortais e, depois de sua morte, iria superar todas as pessoas em louvor, honra e adoração. [...]. E como vejo agora que, como um dom de Deus, fui realmente agraciado com o que ele dissera, foi-me ordenado fazer por ele o que ele profetizara a ser minha missão, a ser cumprida perante a sua pessoa. Portanto, o meu veredicto é que esse grande homem seja santificado por mim o mais rápido possível.

A santidade dos dominicanos revelou-se no cumprimento da profecia. A canonização é também um acto de agradecimento. Dessa maneira, foi estabelecida uma relação de reciprocidade, que conjugava destino e dignidade. Assim, Alonso Borja torna-se papa a fim de outorgar a Ferrer a sua legítima categoria. Dou para que dês: devoção aos santos e sua duradoura protecção ao pontífice e sua família. A ideia de elegibilidade por dinastias vai tomando forma. Pouco depois de 1400, essa profecia pareceu, em princípio, ousada. Como deveria ser o caminho de Lérida a Roma? Como patrocinador, o primeiro a agir foi o papa Bento XIII, um dos três papas rivais da época, que colocou o promissor compatriota sob as suas asas. O valor de sua protecção, no entanto, foi irrelevante, já que foi deposto sumariamente, com os seus concorrentes, pelo Concilio de Constança. O objectivo era eleger, por volta de 1417, na figura de Martinho V, da família Colonna, pertencente à alta aristocracia romana, um novo pontifex maximus que fosse reconhecido por todos. E também Alonso Borja arranjou um novo e influente protector: Afonso V (1396-1458), rei de Aragão». In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o Papa Sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9

Cortesia EEuropa/JDACT

A Princesa Determinada. Catarina de Aragão. Philippa Gregory. «O rei, depois de ter feito a sua higiene e bebido alguns copos de vinho antes de ir jantar, tratava a jovem princesa com afabilidade, determinado em fazer esquecer a sua apresentação»

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«(…) O que queria dizer era, a tua tentativa falhada para evitar este encontro, a informalidade brusca do meu pai, a minha incapacidade para o deter ou acalmar, e sobretudo, a infelicidade que tudo isto deve representar para ti: vir para longe de casa, para o meio de estranhos, para conheceres o teu marido, e seres arrancada da cama contra a tua vontade. Ela baixou o olhar. Ele observou a palidez perfeita da sua pele as pestanas louras e as sobrancelhas claras. Depois, olhou para ele. Não faz mal, disse. Já vi bem pior do que isto, já estive em lugares bem piores, e conheci homens bem piores do que o vosso pai. Não receeis por mim. Não tenho medo de nada.

Nunca ninguém saberá o quanto me custou sorrir, ficar diante do teu pai e não tremer. Ainda nem tenho dezasseis anos, estou longe da minha mãe, num país estranho cuja língua não sei falar e onde não conheço ninguém. Não tenho amigos, à excepção do grupo de damas de companhia e de criados que trouxe comigo, e estes esperam que eu os proteja. Nem sequer pensam em ajudar-me. Sei o que tenho de fazer. Tenho de ser uma princesa espanhola para os ingleses e uma princesa inglesa para os espanhóis. Tenho de mostrar que estou à vontade quando não estou, e parecer segura quando sinto medo. Podes ser o meu marido, mas mal te conheço, ainda não tenho nenhuma ideia a teu respeito. Não tenho tempo para te analisar, estou concentrada em ser a princesa que o teu pai comprou, a princesa que a minha mãe enviou, a princesa que cumprirá o negócio e garantirá um tratado entre a Inglaterra e a Espanha. Nunca ninguém saberá que tenho de fingir estar à vontade, ser segura, ser graciosa. Claro que tenho medo. Mas nunca, nunca o mostrarei. E, quando chamarem pelo meu nome, darei sempre um passo em frente.

O rei, depois de ter feito a sua higiene e bebido alguns copos de vinho antes de ir jantar, tratava a jovem princesa com afabilidade, determinado em fazer esquecer a sua apresentação. Por uma ou duas vezes ela apanhou-o a observá-la de soslaio, como se estivesse a avaliá-la e voltou-se para o olhar, fixamente, com uma das sobrancelhas levemente franzida, como a interrogá-lo. Sim?, perguntou ele. Peço desculpa, disse serenamente. Pensei que Vossa Graça necessitava de alguma coisa. Olháveis para mim. Estava a pensar que não sois muito semelhante ao vosso retrato, afirmou. Ela corou um pouco. Os retratos são concebidos para favorecer aquele que posa, e quando este é uma princesa real, à procura de marido, ainda mais. Sois mais bem-parecida, afirmou Henrique com relutância, para a acalmar. Mais jovem, mais agradável e mais bonita.
Ela não se deixou amolecer pelo elogio, como ele esperava. Limitou-se a fazer um sinal com a cabeça, como se tratasse de uma observação interessante. Tivésseis uma má viagem, observou Henrique. Muito má, respondeu. Voltou-se para o príncipe Artur. Tivemos de voltar para trás, quando partimos da Corunha em Agosto e de esperar que as tempestades passassem. Quando finalmente largámos, o tempo continuava bastante adverso, e então, fomos forçados a atracar em Plymouth. Não conseguíamos chegar até Southampton de forma nenhuma. Todos tínhamos a certeza de que naufragaríamos. Bem, não podíeis ter vindo por terra, afirmou Henrique categoricamente, pensando no perigoso estado da França e na hostilidade do rei francês. Seríeis uma refém preciosa para um rei que seria suficientemente cruel para vos sequestrar. Graças a Deus que nunca caístes em mãos inimigas. Ela olhou-o pensativamente». In Philippa Gregory, Catarina de Aragão, A Princesa Determinada, Livraria Civilização Editora, 2006, ISBN 978-972-262-455-8.
                                                                                      
Cortesia CivilizaçãoE/JDACT

quinta-feira, 28 de março de 2019

Alexandre VI. Volker Reinhardt. «A história dos Bórgia, tal como pode ser verificada nos livros da Igreja e nos registros oficiais, foi por muito tempo caracterizada por falta de glamour, mas não se pode afirmar que tenha sido obscura»

Cortesia de wikipedia e jdact

De Xátiva a Roma. 1378-1458. As Origens dos Bórgia
«(…) O início da história da família é repleto de lendas. Se acreditarmos na mais persistente e importante delas, a família de Borja teria sua origem por volta de 1140, proveniente de um ramo da dinastia de Aragão. As mais recentes pesquisas genealógicas refutaram completamente essa tese, mas Alexandre VI acreditava piamente nas suas raízes reais. Há provas visíveis dessa crença até hoje. No tecto em caixotões da Basílica de Santa Maria Maior, encomendado por ele, o touro do brasão da família carrega a coroa dupla dos reis aragoneses. Nessa mesma época, um herdeiro vivo dessa dinastia referiu-se ao papa como um parente querido. Bem se sabe que Alexandre VI estava ciente de que se tratava de uma manobra diplomática. No entanto, profundamente satisfeito, exultou: finalmente, depois de tanto tempo, o desejado
reconhecimento! A história dos Bórgia, tal como pode ser verificada nos livros da Igreja e nos registros oficiais, foi por muito tempo caracterizada por falta de glamour, mas não se pode afirmar que tenha sido obscura. Ao longo de várias gerações, os descendentes desse clã vastamente ramificado ocuparam posições de liderança na cidade de Xátiva, na planície de Valência. Pelas normas relativamente vagas daquela época, podiam ser classificados como membros da nobreza menor. E as notoriedades locais com vastas propriedades teriam grandes probabilidades de permanecer nessa classificação, se não fosse a escalada do herdeiro de uma linhagem lateral de menor prestígio que viria a beneficiar toda a estirpe: Alonso Borja, nascido no primeiro dia de 1378, no povoado de Canais, perto de Xátiva, falecido em 6 de Agosto de 1458, como papa Calisto III, em Roma. O ano do seu nascimento, como o do seu sobrinho Rodrigo, faz parte da mitologia da família e é bastante simbólico, pois marcou o início do grande cisma do Ocidente: a divisão da Igreja em duas e, a partir de 1409, com três papas e seus respectivos séquitos.
Esse estado irremediável desperta medo pela glória eterna: seria possível ainda chegar ao paraíso? Não foram poucos os teólogos que responderam a essa pergunta com cepticismo e pessimismo. A fragmentação da Igreja, por direito indivisível, arrastou-se ao longo de clivagens políticas e nacionais. Especialmente a contradição entre cardeais franceses e ingleses fez fracassar todas as tentativas de uma reunificação, colocando o papado em risco. Afinal de contas, dado o impasse, vieram à tona velhas teorias, agora renovadas, segundo as quais a autoridade suprema de governar a Igreja era reservada ao concílio, um fórum que concentrava todos os fiéis. Esse conciliarismo, por sua vez, caiu como uma luva nas mãos dos governantes seculares. Diante da discórdia reinante no clero, eles seriam os únicos que, por meio da convocação de um concílio, poderiam ter êxito no processo de reunificação da Igreja. Tendo como pano de fundo esses desdobramentos que fortaleceram os poderes ilimitados dos príncipes sobre suas respectivas igrejas regionais, o senhor de Xátiva vai trilhando seu longo, gradual e, para a época, típico caminho: como advogado, como conselheiro do príncipe e como clérigo.
Depois de estudar Direito em Lérida, Alonso Borja tomou a decisão, em 1408, de seguir a carreira eclesiástica. Era uma carreira que tradicionalmente oferecia melhores perspectivas de sucesso aos jovens ambiciosos das camadas sociais menos elevadas. Além disso, naqueles tempos conturbados, havia grande procura por especialistas em Direito Eclesiástico. Eles ainda eram os mediadores mais confiáveis nas questões relacionadas ao cisma entre os clérigos e os leigos». In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o Papa Sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9

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A Princesa Determinada. Catarina de Aragão. Philippa Gregory. «O rei soltou uma gargalhada áspera. Podeis pedir-me uma cerveja e ordenar que me enviem roupa lavada e água quente ao melhor quarto…»

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«(…) Tenho a certeza de que me ensinareis boas maneiras inglesas, afirmou. Quem poderia ser melhor para me aconselhar?, voltou-se para o príncipe Artur e fez-lhe uma reverência real. Meu senhor. Ele hesitou na vénia que lhe devolveu, espantado com a serenidade que ela transmitia neste momento tão embaraçoso. Procurou o presente dela no casaco, brincou com a pequena bolsa de jóias, deixou-a cair, voltou a apanhá-la e finalmente entregou-lha, sentindo-se ridículo. Ela pegou nas jóias e inclinou a cabeça em agradecimento, mas não as abriu. Já haveis jantado. Vossa Graça? Comeremos aqui, respondeu ele bruscamente. Já pedi o jantar. Posso então oferecer-vos uma bebida? Ou um lugar para vos lavardes e trocardes de roupa antes de jantar?, observou a sua altura e magreza de modo avaliador, desde a lama que salpicava o seu rosto pálido e enrugado, às suas botas empoeiradas. Os ingleses formavam uma nação prodigiosamente suja, nem sequer uma casa enorme como esta possuía um hammam adequado ou água canalizada. Ou talvez, não queirais lavar-vos? O rei soltou uma gargalhada áspera. Podeis pedir-me uma cerveja e ordenar que me enviem roupa lavada e água quente ao melhor quarto, e trocarei de roupa antes do jantar, levantou uma mão. Não tendes de interpretar isto como um cumprimento a vós. Eu lavo-me sempre antes de jantar.
Artur viu-a morder o lábio inferior com pequenos dentes brancos como se estivesse a controlar para não responder sarcasticamente. Sim. Vossa Graça, disse suavemente. Como desejardes. Chamou a sua dama de companhia para perto de si e transmitiu-lhe ordens em espanhol, em voz baixa e rápida. A mulher fez uma reverência e conduziu o rei para fora da sala. A princesa voltou-se para o príncipe Artur. Et tu?, perguntou em latim. E vós? Eu? O quê?, gaguejou ele. Sentiu que ela estava a tentar não suspirar de impaciência. Também gostaríeis de vos lavar e trocar de casaco? Eu lavei-me, afirmou. Mal as palavras lhe saíram da boca, podia ter mordido a própria língua. Parecia uma criança que estava a receber uma reprimenda de uma ama, pensou. Eu lavei-me mesmo. O que ia fazer a seguir? Mostrar as mãos com as palmas viradas para cima, para ela poder ver que era bem comportado? Então, desejais beber uma caneca de vinho? Ou de cerveja? Catarina voltou-se para a mesa, onde os empregados pousavam apressadamente canecas e jarros. Vinho.
Ela levantou um copo e um jarro e os dois brindaram uma vez e depois outra. Espantado, apercebeu-se de que as mãos dela estavam a tremer. Ela verteu o vinho rapidamente e estendeu-lho. O olhar dele passou da mão e da superfície ligeiramente borbulhante do vinho para o seu rosto pálido. Pode verificar que ela não lhe sorria. Não estava nada à vontade com ele. A indelicadeza do pai fizera sobressair o orgulho nela, mas, sozinha com ele, não passava de uma menina, alguns meses mais velha do que ele, mas ainda uma menina, a filha dos dois mais admiráveis monarcas da Europa; mas não deixava de ser uma menina, com as mãos a tremer. Não precisais de estar assustada, disse, muito calmamente, lamento tudo o que aconteceu». In Philippa Gregory, Catarina de Aragão, A Princesa Determinada, Livraria Civilização Editora, 2006, ISBN 978-972-262-455-8.
                                                                                      
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Alexandre VI. Volker Reinhardt. «Alexandre VI estava confiante no facto de que teria tempo de sobra para as suas realizações. A que se devia esse optimismo, vindo de um homem que, segundo os padrões da época, já era considerado um ancião?»

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De Xátiva a Roma. 1378-1458. As Origens dos Bórgia
«(…) Rodrigo Borja nasceu, provavelmente, no primeiro dia de 1431. Ou, também presumivelmente, um ano depois. Embora a sua data de nascimento exacta seja cercada de dúvidas, uma coisa é certa: mesmo sendo um amante de festas opulentas e glamourosos bailes nocturnos, não celebrava o seu aniversário de forma ostensiva. Não era prioridade de um pontifex maximus comemorar a saída do útero materno, e sim o dia de sua nomeação como sucessor de Pedro. A escolha do Espírito Santo, de acordo com a versão oficial, outorgava ao predestinado, de facto, uma segunda existência, uma existência superior. Como símbolo dessa transformação, os papas assumem, até aos dias atuais, um novo nome. Assim, Rodrigo Borja, que havia muito já usava o nome italianizado para Borgia, passou a ser Alexandre VI em 11 de Agosto de 1492. Como pontífice, uma das suas maiores preocupações foi prolongar o seu pontificado, e, por conseguinte, a sua vida. Foi tão longe nessa obsessão que, a partir do ano-novo de 1502, resolveu pagar para garantir que viveria mais. Começou oferecendo 30 ducados a cada um de seus criados, acrescentando cinco ducados ao montante a cada ano. A contrapartida daqueles presenteados de forma tão generosa era garantir que o prémio chegasse a 100 ducados por cabeça, ou, em última análise, assegurar que Alexandre VI chegasse aos 86 anos de idade. A ideia por trás de tanta generosidade era conseguir algo das pessoas, tornando-as também beneficiárias do seu próprio benefício. Como os empregados conseguiriam prolongar a vida de seu senhor, não foi, no entanto, revelado. Provavelmente, por meio de orações. Pelo menos esse seria o método tradicional. Outros papas esperavam pelas preces de pobres seleccionados. Alexandre VI, ao contrário, apostava na consciência saudável sobre o lucro.
Mesmo com tais estimativas e empenho por conseguir uma expectativa de vida barata, Alexandre VI não era, de forma alguma, um caso isolado. Desfrutava a companhia de ilustres predecessores e teólogos. Todos eles tinham denunciado a contradição entre a majestade do papado e a curta duração da maioria dos pontificados como um escândalo que podia levar os cristãos à apostasia. Cuidados com o corpo e a higiene pessoal já faziam parte, desde muito tempo, do estilo de vida dos papas. No caso de Alexandre VI, no entanto, os seus contemporâneos acreditavam unanimemente que as precauções com saúde e longevidade deveriam beneficiar principalmente, se não exclusivamente, os Bórgia, ou seja, a expansão e protecção do poder familiar. Isso é o que indica também o momento dos generosos presentes de aniversário: 1503 tinha de ser o ano das decisões. A ordem era não morrer naquele momento.
Alexandre VI estava confiante no facto de que teria tempo de sobra para as suas realizações. A que se devia esse optimismo, vindo de um homem que, segundo os padrões da época, já era considerado um ancião? A confiança era alimentada, sem dúvida, pela tradição da família Bórgia. Desde muitas gerações, essa família estava convencida de que as suas modestas condições de vida nada tinham a ver com a sua origem nobre. Isso fez que os seus membros partissem do princípio de que um dia iriam ocupar o lugar que mereciam. Ressentimentos e esperanças desse tipo não eram incomuns naquela época. No caso dos Bórgia, somaram-se profecias precisas de que o destino os predestinara às mais elevadas honrarias. Muitas outras famílias que tinham conseguido subir na hierarquia social também lançavam mão de tais previsões. Dessa forma, justificavam seu sucesso como vontade divina. Não é de se estranhar que Alexandre VI acreditasse nas obras da previdência para justificar a história da sua linhagem. Dificilmente outra família da época teria tido uma ascensão tão vertiginosa quanto a sua. O destino, ao que parece, conduziu a família Bórgia da sua antiga pátria à terra prometida, e logo duas vezes, com tio e sobrinho, à Cátedra de Pedro». In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o Papa Sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9

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quarta-feira, 27 de março de 2019

O Diário Secreto de Ana Bolena. Robin Maxwell. «Se vos retirarem o afecto, as alianças cairão por terra. Sabeis tão bem como eu que existem outros aspirantes a este trono e se a vossa posição ficar debilitada, não duvideis que o sangue correrá»

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«(…) Esta noite, não, replicou Isabel. Desejava manter consigo durante o máximo de tempo possível, os últimos vestígios de Robin Dudley. Kat dobrava com cuidado as peças de roupa da rainha à medida que esta as despia com a sua ajuda. Isabel, coberta apenas pela camisa de renda francesa, tremia de frio e chegou-se ao lume. Posso falar-vos?, perguntou num tom glacial. Alguma vez vos pude impedir de o fazer, Kat? A idosa mulher estendeu-lhe um robe de cetim amarelo. Isabel enfiou os braços nas enormes mangas e aconchegou a si o forro de pele. Sentindo-se fraca, deixou-se cair na cadeira de costas altas, erguendo os olhos para Kat que baixara os seus, para fitar as próprias mãos. Senhora, começou. Sois a minha vida e amo-vos como se fôsseis carne da minha carne. É por isso que vos digo que há que pôr cobro às coisas horríveis que soam por aí. Diz-se que vós e Robert Dudley vos comportais como se fôsseis casados. E esta noite?, desviou o rosto incapaz de enfrentar o olhar ardente de Isabel. Sei que é certo. Conheço esse homem desde menino, quando brincava convosco, e conheci toda a sua família. Foram todos executados por traição à coroa. Robin Dudley é um súbdito leal!, exclamou Isabel. É um homem com a ambição no sangue. Não posso dizer que não vos ame, Isabel, mas como todos os outros, ama ainda mais o seu sonho de poder. Não confio nele. É um homem casado!
Isabel desviou o olhar. Nessa tarde, esquecera por algum tempo a terrível verdade, ou talvez na euforia do seu recente poder acreditasse que o assunto não tinha importância. Porém, só tinham passado três meses da coroação e, por causa de Robin, havia já rumores escandalosos a seu respeito. Mesmo assim, dissera para consigo que não precisava preocupar-se com uma possível gravidez, já que não sangrava com o ciclo lunar, como todas as outras mulheres. E era a monarca reinante. Poderia fazer o que lhe aprouvesse. Não quereis aperceber-vos do que salta à vista?, perguntou Kat. Estais tão cega pela luxúria que não compreendeis as consequências dos vossos actos? Isabel, estais a perder o respeito dos vossos conselheiros, da vossa corte, até dos vossos súbditos.
Se vos retirarem o afecto, as alianças cairão por terra. Sabeis tão bem como eu que existem outros aspirantes a este trono e se a vossa posição ficar debilitada, não duvideis que o sangue correrá. Sangue de inocentes, que cairá sobre a vossa cabeça. Juro que se soubesse que as coisas chegariam a este ponto, vos teria estrangulado no berço! Isabel estremeceu com a veemência de Kat. Porém, esta não tinha ainda terminado. Ajoelhou-se e tomou nas suas, as mãos da rainha. Casai-vos, Isabel. Imploro-vos. Comprometei-vos com um pretendente digno da vossa estirpe..., estrangeiro, inglês, não importa. Casai-vos. Proporcionai herdeiros Tudor, ou seremos invadidos pelo caos! Isabel acariciou a mão manchada de Kat Ashley. Kat, sei que falais em nome do vosso bom coração e verdadeira fidelidade. Mas escutai: nesta minha vida só tenho tido penas e atribulações. A felicidade tem sido tão pouca que mereço aquela que este homem me dá». In Robin Maxwell, O Diário Secreto de Ana Bolena, Planeta Editora, colecção Tudor 1, 2002, ISBN 978-972-731-131-6.
                   
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terça-feira, 26 de março de 2019

O Fogo e as Cinzas. Manuel da Fonseca. «Lá isso é verdade, concordava eu, inquieto. Vinha-me à ideia Antoninha das Dores e, muito embora preferisse calar-me, era certo acrescentar. É isso mesmo... Já não há incêndios...»

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«Que o meu canto seja no meio do temporal uma chicotada de vento que estremeça as estrelas desfaça mitos e rasgue nevoeiros, escancarando sóis!» In Manuel da Fonseca

«(…) Veio um dia, e vimo-nos obrigados a mudar de rumo. Quisemos acertar o passo, segundo as regras, e começaram as topadas, escorregadelas, desvios. No dia-a-dia enviusado e traiçoeiro da vila, onde muitos dos choramingas da escola ganhavam dinheiro grosso e honestas reputações, nós caímos de desilusão em desilusão. Não sei como isto foi. Mas, anos depois, vencido, eu emagrecera; secara, nodoso e cheio de rugas, como o tronco carcomido de um sobreiro. Pelo contrário, derrotado na luta inglória com o forreta do pai, André Juliano engordou, engordou muito. Apesar disso, quando às vezes o olhava, com aquele olhar distraído mas que, de súbito, parece atingir a verdade que há nos homens e nas coisas, eu julgava estar a ver-me diante de um espelho côncavo. Sim, senhor, tal qual como eu : todas as raivas, todos os ciúmes, as invejas, os fracassos, mas inchado e balofo. Nestes momentos, o ódio contraía-me as feições, e largava um palavrão. Fitava-o com o olhar endurecido: estamos tramados, André, estamos tramados! Nunca consegui saber se ele adivinhava os meus pensamentos; o certo, é que me respondia de beiço caído, como num eco: tramados, amigo, tramados...
Olho o relógio. Quatro horas. Doidas, as moscas tecem um emaranhado de círculos em volta dos cemitérios. Ponho-me a observá-las, e faço cálculos sobre qual dos papéis cobertos de melaço peganhento atrairá a primeira. Por fim, cansado, caio numa modorra. Um murmúrio distante vem devagar, engrossa, até soar nitidamente dentro de mim. É a voz autoritária de mestre Poupa bombeiro. Vejo-o e oiço-o como se realmente ele estivesse sentado à minha mesa. Fogo?!, exclama a voz. E, logo, desiludida, já não há incêndios... Era o seu assunto preferido. Mestre Poupa tinha artes de ir desviando qualquer conversa até aparecer com naturalidade o caso de um fogo. Hoje em dia, já não há incêndios, comentava ele. Vejam vocês: toca o sino da igreja; a auto-bomba desce do quartel, puxa-se a mangueira e, pronto!, está o fogo apagado. Fogo?... Qual fogo, se nem deixamos atear nada! Lá isso é verdade, concordava eu, inquieto. Vinha-me à ideia Antoninha das Dores e, muito embora preferisse calar-me, era certo acrescentar. É isso mesmo... Já não há incêndios...
Como que saindo da névoa do fumo do tabaco que enche o Café, André Juliano surge do outro lado da mesa. Enrola um cigarro entre os dedos enormes, e os olhos, caídos, desaparecem-lhe sob a gordura das pálpebras. Abana a cabeça, suspirando: já não há nada... Até dá doença uma vida destas!... Ora lá disse você uma verdade. Isto, hoje, até dá doença. Porque seria que eu me fiz amigo de mestre Poupa? Sempre que me interrogo a este respeito, ocorrem-me várias razões capazes de justificar o facto. Mas, a todas abandono e acabo por concluir que foi obra do acaso. Por esse tempo, a vila andava acesa em discussões originadas pela acção dos bombeiros voluntários. As coisas não podem continuar assim!, dizia-se alto e em bom som. As coisas, era isto: fogo que houvesse, os prejuízos maiores não os faziam as chamas ruas os bombeiros improvisados, na ânsia de tudo molharem e de tudo salvarem. Abriam caminho à machadada, arrombavam tabiques, partiam mobílias e loiças, sem dó nem piedade. Estragos do lume apenas uma que outra chaminé, ou um carunchoso soalho.
Enfim, chegaram a tais termos que um dia, ao declarar-se incêndio na chaminé do Elias Tarro, como alguém corresse a puxar o badalo da igreja velha, o homem postou-se entre os umbrais da porta de espingarda em riste: quem entrar, morre! E impediu que os bombeiros lhe assaltassem a casa, enquanto, com baldes de água, pelo quintal, a família apagava as labaredas. Choveram ameaças e insultos, de parte a parte. À má cara, os bombeiros abandonaram a presa. E, não era passada uma semana, quando o Elias Tarro apareceu com a cabeça cheia de pensos e ataduras. Fora o Chico Biló que o esmurrara, após breve discussão. Ao pagar a conta na farmácia do Durães onde andara a tratar-se, Elias Tarro deu graças pelo preço em que lhe ficara o incêndio.
Vá lá... Antes isto que os malandros me terem invadido a casa. Mas a vila, aterrada, mudou a direcção dos bombeiros voluntários. E, por cartas, ajustou com um técnico de Lisboa a chefia da mal afamada corporação. Foi mestre Poupa quem apareceu. Dias depois, já eu passava horas a ouvi-lo. Havia sido um incêndio que me arruinara a vida, e para ele os incêndios, que o tinham enchido de glória, eram agora a causa da sua amargura. O material moderno, as muitas bocas de água espalhadas pelas ruas e a técnica moderna tornavam, conforme nos dizia, a extinção fácil e rápida, o que era impossível antigamente. Só queria que vocês assistissem ao incêndio da rua de Madelena, lá em Lisboa. Isso é que foi um fogo bom!, recordava ele, animado e feliz. Morreram dezenas de pessoas». In Manuel da Fonseca, O Fogo e as Cinzas, Wikipedia, 1951, Editorial Caminho, 1998, ISBN 978-972-212-431-7.

Cortesia de Wikipedia/ECaminho/JDACT

O Fogo e as Cinzas. Manuel da Fonseca. «André Juliano, meu amigo de infância, como nós mudámos... Sim, senhor, como mudámos. Na escola éramos temidos»

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«Que o meu canto seja no meio do temporal uma chicotada de vento que estremeça as estrelas desfaça mitos e rasgue nevoeiros, escancarando sóis!» In Manuel da Fonseca

«(…) E, de tronco direito, sopro para longe as primeiras fumaças. Mas ninguém se importa com estes ares de desafio. Aos poucos, a cabeça vai-me tombando entre os ombros vergados pela vida. Os meus olhos, nevoentos, voltam-se para o passado. O passado. Do fundo do tempo, aparecem pedaços de recordações. Demoram-se um instante, doem-me suavemente e somem-se, num tropel, da memória cansada. Caio numa complicada malha de coisas vagas e sem nexo. Para ali fico dobrado num sonolento quebranto. De súbito, estremeço: lá vem Antoninha das Dores semi-nua! Lá vem ela nos braços do Chico Biló fardado de bombeiro! Apavorado, ergo a cabeça e olho em roda. Não, ninguém pode descobrir o que estou pensando. E, impune, revejo gulosamente a imagem da minha noiva em fralda de camisa. As fontes vão-se-me perlando de um suor gelado; amarfanha-me a raiva de não poder voltar atrás, mudar o tempo, e recomeçar a vida. Se fosse possível! Que me importava a mim o que aconteceu!... Poltrão! Porque não casei eu com Antoninha das Dores?
Enrolo novo cigarro. Mas, agora, com a pressa, caem-me pedaços de tabaco dos dedos trémulos. Fumo lume e sorvo uma ansiada fumaça. O espelho, em frente, mostra-me o meu carão esverdinhado de velho. Vejo-me, de queixo caído, a apertar as mãos uma na outra até os ossos dos dedos estalarem. Poltrão. É isso: um cobarde. Sempre o fui, e só a presença dos meus amigos me ajudava a suportar melhor a imagem tão odiada e tão querida de Antoninha das Dores. Eu chegava sempre primeiro ao Café. Depois, mestre Poupa. Mal encetávamos a conversa, víamos através do vidro da montra, o corpo enorme de André Juliana sair de casa e iniciar lentamente a custosa subida. Com alvoroço, eu dizia: lá vem o André! Nunca passou uma tarde sem que o dissesse. Às vezes, pensava: amanhã, não digo aquilo. Pois se mestre Poupa o vê ao mesmo tempo que eu... Ora bem; ao outro dia, a porta abria-se, o corpo pachorrento saía para a rua, e era fatal a minha inquieta alegria: lá vem o André!...
Agora mesmo ia jurar que o estou a ver despegar-se com moleza dos umbrais. Mas, na realidade, apenas vejo para lá do vidro, ao fundo da rua, a casa destruída pelo fogo. Tudo tal qual como no fim do incêndio: a parede negra, sem portas nem janelas... Foi aí que mestre Poupa bombeiro morreu, lutando contra as chamas. André Juliano, esse ainda está vivo; mas, em Lisboa, atrás das grades da Penitenciária. Dou voltas na cadeira, torço-me, enterro o chapéu pela cabeça abaixo. Tudo em vão. Antoninha das Dores continua na minha frente, deitada nos braços do Chico Biló. Saem-lhe da camisa as pernas, o ventre e um pedaço do seio; de volta, o povo arregala os olhos. Vejo-os a todos, rosto a rosto, com a facilidade de quem está olhando vagarosamente uma fotografia. Como os odeio! Depressa, Maneta, outro café! Espero, esfregando as mãos. E, ao esvaziá-lo, de queixo erguido, vejo no espelho o meu carão de tal forma espantado que me parece ter acabado de beber veneno. Coberto de suor, lá vou aos poucos serenando.
André Juliano, meu amigo de infância, como nós mudámos... Sim, senhor, como mudámos. Na escola éramos temidos. Passávamos as tardes de castigo e, um dia, armámos uma desordem medonha. Partimos carteiras, o quadro grande, e saímos cheios de troféus: pedaços de bibes rasgados, os peitos das camisolas salpicados de medalhas de tinta. Fomos expulsos. Acabámos por aprender as letras, os números e uma fantástica História de Portugal com o bebedola do Jaime Ursulino, que nos ia matando à varada e a quem, por fim, esmurrámos de sociedade. Nossos pais consideraram maduramente no caso, e concluíram que estávamos quites com a cultura. Foi um alívio. O largo, e mais tarde os bailes desordeiros do campo e a noite sem lei das ruas da vila passaram a ser o nosso mundo. Um mundo cheio de sustos, mas mais leal que as aritméticas do Ursulino e as falinhas choronas dos moços da escola». In Manuel da Fonseca, O Fogo e as Cinzas, Wikipedia, 1951, Editorial Caminho, 1998, ISBN 978-972-212-431-7.

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O Fogo e as Cinzas. Manuel da Fonseca. «Que querem? Estou aqui, paguei o meu café, faço o que me apetece!»

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«Que o meu canto seja no meio do temporal uma chicotada de vento que estremeça as estrelas desfaça mitos e rasgue nevoeiros, escancarando sóis!» In Manuel da Fonseca

«Mestre Poupa bombeiro, André Juliano e eu formávamos uma trindade falhada. Positivamente, três velhos falhados e tontos. Há momentos em que vejo isto com uma grande clareza. Mas de nada me vale. Os factos miúdos que me estragaram a vida pegam de novo em mim e arrastam-me. Desviam-me cada vez mais de toda a gente e isolam-me numa apatia da qual não tenho forças para escapar-me. Serei acaso um cobarde? Talvez. Ao certo, apenas sei que, volta não volta, Antoninha das Dores me vem à memória com uma nitidez atroz. Aparece-me, não recatada e séria como ela sempre foi, mas em fralda de camisa. Sim, senhor; no meio da rua, em fralda de camisa. E deitada nos braços do grandalhão do Chico Biló! Foi isto que me estragou trinta anos de vida. Já a mágoa que consumia mestre Poupa não era de ordem amorosa. Lamentava a toda a hora que tivessem acabado os incêndios grandes e devastadores, como havia antigamente. Vamos lá a perceber tal coisa! Poderá acaso ser este o drama de um chefe de bombeiros? Pois era. Quanto a André Juliano as razões do seu desgosto toda a vila as sabe. Com cinquenta anos, e o pai, homem rico, ainda lhe não consentia mandasse no tio que viria a ser seu, e apenas lhe dava vinte e cinco tostões por dia. Vinte e cinco tostões! Enfim, éramos os três inseparáveis, cada um roendo o seu osso.
Hoje, praticamente, só resto eu. Mestre Poupa morreu num incêndio; um fogo dos bons, como ele gostava. E André Juliano jaz, à espera da morte, no fundo de uma cadeia. No entanto, estão tão presentes na minha memória que a todo o momento me parece natural ir encontrá-los, ao voltar duma esquina. E posso, sem o mínimo esforço, engendrar uma conversa. Sei e oiço as suas respostas às minhas palavras, vejo as maneiras peculiares de mexerem os lábios, de sorrirem com tristeza, ou de ficarem taciturnos por largos espaços. De tal modo ainda fazem parte da minha vida que, todos os dias, mal acabo de almoçar, saio de casa direitinho ao Café onde costumávamos encontrar-nos. Hoje aconteceu atardar-me, interessado na leitura do jornal. Quando dei por mim e olhei para o relógio, ergui-me num salto, e lá vim eu cheio de pressa pelas ruas fora. Cheio de pressa, como se eles estivessem à minha espera...
Mas, como sempre sucede, ao entrar, o entusiasmo arrefeceu e fui sentar-me, desconfiado, na mesa do canto. Como sempre, pus-me a pensar por que seriam aquelas pressas. Para que faço eu isto todos os dias? Vai o cafezinho do costume, senhor Portela? Surpreendido, encaro o criado. E grito-lhe, sem querer, com a voz transtornada: han?!..., mas, logo, as palavras me ocorrem, submissas. Pois..., o cafezinho do costume... Passava aqui todas as tardes com André Juliano e mestre Poupa bombeiro. Agora, sozinho, mal o Maneta põe sobre o mármore sujo a chávena fumegante e se afasta, eu começo com as manigâncias habituais para matar o tempo. Demoro o café, adoçando-o com pitadas, colher a colher; bebo-o a pequenos goles. Isto dá-me à volta de quinze minutos. De soslaio, lanço uma mirada pelos grupos que falam de mesa para mesa. Passeio o olhar pelo grande espelho suspenso da parede, pelas moscas que volteiam em redor dos nojentos cemitérios caídos do tecto, em espiral. Belo, digo eu de mim para mim, já lá se foi um quarto de hora...
Segue-se o cigarro, muito embora o médico me aconselhe a não fumar. Quero lá saber! Aí uns dois minutos lucro eu enquanto meto as mãos pelos bolsos à procura das mortalhas, da onça e do isqueiro.
Coloco tudo isto em cima da mesa segundo uma ordem: o livro das mortalhas, à esquerda; ao meio, a onça; e o isqueiro, à direita. Despego a mortalha, dobro-lhe uma estreita tira no sentido longitudinal e rasgo-a, pois gosto do cigarro delgado. Abro a onça com uns vagares ronceiros e calculo sobre a palma da mão a quantidade de tabaco precisa; cato entre os fios as impurezas, e só então o começo a enrolar. Guardo as mortalhas e a onça, pego no isqueiro e raspo lume. Outros quinze minutos! Estas e outras coisas acarretam-me a fama de ter o miolo avariado. Eu sei. Até há quem se ponha a seguir as minhas manobras e sorria. Que querem? Estou aqui, paguei o meu café, faço o que me apetece!» In Manuel da Fonseca, O Fogo e as Cinzas, Wikipedia, 1951, Editorial Caminho, 1998, ISBN 978-972-212-431-7.

Cortesia de Wikipedia/ECaminho/JDACT

segunda-feira, 25 de março de 2019

Redescobrir Manuel da Fonseca. Paula Graça Rodrigues. «Após ter conhecido um enorme êxito em Espanha, o romance picaresco expandiu-se por toda a Europa através de traduções…»

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Com a devida vénia à dra Paula Rodrigues

Resumo
«O principal objectivo desta dissertação é aprofundar o conhecimento do romance Cerromaior, da autoria de Manuel da Fonseca, perceber a sua importância e significado no contexto histórico-literário do neorrealismo português, assim como evidenciar que o referido romance se enquadra nas características do subgénero literário romance de formação. Demonstra-se que, para além de se tratar de um romance que se enquadra nos pressupostos da ficção neorrealista tradicional, Cerromaior já traz também uma perspectiva mais aberta do próprio conceito de realismo, o que lhe permite dialogar com a tradição modernista (sobretudo na valorização de aspectos estéticos), sem trair o compromisso social, ético e político, essencial ao neorrealismo dos anos 40. Voltado para a problematização de aspectos psicológicos, Cerromaior, ao centrar-se numa personagem em evolução que vai desafiando a narrativa conforme a sua tomada de consciência, pode ser considerado como romance de formação. A nível estrutural, esta dissertação é constituída por três capítulos. No primeiro capítulo, apresenta-se a fundamentação teórica do romance de formação/bildungsroman, a sua origem, evolução e caracterização. No segundo capítulo, estabelecendo a relação entre a obra de Manuel da Fonseca e o seu contexto histórico-literário, apresenta-se as principais coordenadas estéticas e ideológicas do neorrealismo português, enquadrando Cerromaior como romance de formação. No último capítulo, faz-se uma análise estrutural de Cerromaior dialogando com a perspectiva lukacsiana sobre o romance de formação. São destacados ainda os aspectos histórico e social, a representação da sociedade rural no universo da narrativa, tendo em conta os valores, atitudes e comportamentos das personagens e a sua influência no percurso formativo/de aprendizagem do herói».

Romance de formção / bildungsroman: campo conceptual
Origem e evolução do conceito
«Desde os horizontes da literatura picaresca até ao bildungsroman, o romance de formação é herdeiro de uma longa filiação de textos narrativos. Como tal, é importante determo-nos um pouco na evolução deste subgénero literário, de modo a compreender os elementos fundadores da obra que será objecto do nosso estudo. Tal como as noções de romance de educação ou romance de aprendizagem, a noção de romance de formação é de emprego relativamente recente na pena dos críticos de obras literárias, surgindo estas noções pela primeira vez no século XVIII. É importante referir que estes géneros romanescos só passaram a ser utilizados a partir do século XIX e entraram em uso corrente a partir de 1945. Explorando a plurissignificação do conceito, podemos dizer, por exemplo, que um exame atento do léxico francês apresenta as três noções utilizadas como sinónimos. A nível diacrónico, no decurso do século XVI surge em Espanha o romance picaresco, caracterizado, inicialmente, pela presença da personagem de um jovem que narra na primeira pessoa as aventuras de uma vida airada, que se desenrolam muitas vezes em façanhas nada abonatórias. Reforçando o lado transgressor do herói do romance picaresco, ao longo da narrativa multiplicam-se encontros e farras de uma personagem destituída de estatuto social, geralmente um mendigo, cuja pobreza impede de se fixar num lugar ou numa sociedade definida. Deste modo, como observam os especialistas deste subgénero, o romance picaresco aparece marcado pela mesma instabilidade da personagem da qual narra múltiplas aventuras. Após ter conhecido um enorme êxito em Espanha, o romance picaresco expandiu-se por toda a Europa através de traduções, de imitações, ou actualizações paródicas. Deste modo, numerosos romances de formação reivindicam uma filiação picaresca.
Contudo, estabelecendo as diferenças entre os subgéneros já citados, enquanto a personagem pícara experimenta uma série de aventuras, de encontros, de mudanças de estado ou de destino sem a preocupação de reflectir sobre o que lhe está a acontecer, o herói do romance de formação, por sua vez, é marcado pelo espírito reflexivo. Esforça-se por gerir o seu destino e está dotado de capacidade de análise psicológica que falta à personagem pícara. Assim, o romance de formação, contrariamente ao picaresco, introduz, por vezes, pausas narrativas (redacção de uma carta, exames de consciência, etc.), ao longo das quais a personagem reflecte sobre o modo como deve ou pode comportar-se. Tal como o pícaro, o herói do romance de formação também é um homem jovem que, preso à tutela da sua família, percorre o mundo e a sociedade ao sabor de numerosas aventuras. Da tradição picaresca, este subgénero actualiza, portanto, uma temática de viagem e, sobretudo, as características de uma personagem socialmente móvel, dotada de grande profundidade psicológica, qualidade que, como já foi sublinhado, falta ao pícaro da tradição espanhola. Quem pela primeira vez utiliza a designação de romance de formação ou Bildungsroman são os críticos que fazem da literatura alemã o seu domínio de estudo privilegiado e servem-se do conceito para designar obras germânicas como Les années d’apprentissage de Wilhelm Meister, de Goethe, Heinrich d’Ofterdingen, de Novalis, Henri le vert, de Keller.
A primeira dificuldade com que se confrontam os estudiosos do romance de formação é, precisamente, a questão da sua origem. De facto, apesar de surgirem, como já referimos, no início do século XVIII as primeiras referências ao termo, este subgénero só se afirmará no século XIX, com a já citada obra Wilhelm Meister, de Goethe, vista por muitos críticos como o seu modelo regenerador. É o caso de Morgenstern que, em 1820, caracteriza o Bildungsroman como um subgénero romanesco ocidental. Segundo ele, a ideia central de Bildung (formação, criação) retoma e seculariza a ideia de criação divina aplicando-a ao homem: formar-se e educar-se em contacto com a realidade é, no século XVIII, o dever essencial do indivíduo, levado a expandir as suas potencialidades à luz da sua razão visando, sobretudo, uma perfeita harmonia entre a sua alma e o seu corpo». In Paula da Graça Rodrigues, Redescobrir Manuel da Fonseca, Cerromaior como Romance de Formação, Dissertação apresentada à Universidade Autónoma de Lisboa, Departamento de Línguas e Literaturas Modernas, Tradução e Interpretação, para a obtenção do grau de Mestre em Estudos Portugueses, Lisboa, 2012.

Cortesia de UAdeLisboa/JDACT