terça-feira, 12 de março de 2019

A Filha do Sangue. Anne Bishop. «Ainda que uma única vez, gostaria de servir uma Rainha que respeitasse, alguém em quem realmente pudesse acreditar»

Cortesia de wikipedia e jdact

Terreille
«(…) No entanto, Askavi já não era tão fértil como antes, pois fora pilhada durante séculos por aqueles que a esgotaram mas nunca retribuíram com o que quer que fosse. Ainda assim, era a sua terra, e os séculos de exílio em escravidão provocavam um desejo ardente pelo cheiro do ar puro da montanha, pelo sabor de um riacho fresco e doce, pelo silêncio dos bosques e, acima de tudo, pelas montanhas sobrevoadas pela raça eyriena. No entanto, encontrava-se em Pruul, aquela terra árida, quente, deserta e estéril, a serviço da devassa Zuultah, por não conseguir ocultar a aversão que sentia por Prythian, a Sacerdotisa Suprema de Askavi, por não conseguir domar o temperamento enquanto servia feiticeiras que desprezava. Entre os Sangue, os machos deveriam servir, não dominar. Lucivar jamais tinha desafiado essa ordem, apesar das várias feiticeiras que matara ao longo dos séculos. Tinha feito isso pois seria um insulto servi-las; ele era um Príncipe Eyrieno dos Senhores da Guerra que usava Jóias Cinza-Ébano e se recusava a acreditar que servir e ser servil eram sinónimos. Sendo um bastardo mestiço, não acalentava qualquer esperança de atingir posições de autoridade numa corte, apesar da categoria das suas Jóias. Sendo um guerreiro eyrieno experiente e dono de um temperamento explosivo mesmo para um Príncipe dos Senhores da Guerra, tinha ainda menos esperanças de que lhe fosse permitido viver fora das correntes sociais de uma corte. E fora capturado da mesma forma que todos os machos dos Sangue são capturados. Havia algo no seu interior que os fazia ansiar ardentemente por servir, que os impelia a se interligar, de alguma forma, a fêmeas ornadas com Jóias dos Sangue.

Lucivar contraiu o ombro e inspirou através dos dentes no preciso momento em que uma ferida infligida pelo chicote voltou a se abrir. Ao tocar com cuidado na ferida, sua mão ficou encharcada em sangue fresco. Sorriu amargamente, revelando os dentes. Como era aquele velho ditado? Um desejo, ofertado com sangue, é uma prece às Trevas. Fechou os olhos, ergueu a mão em direcção ao negro do céu e iniciou a interiorização, descendo ao abismo psíquico na profundidade das suas Jóias Cinza-Ébano para que o desejo se mantivesse secreto, para que ninguém na corte de Zuultah pudesse ouvir a transmissão do seu pensamento. Ainda que uma única vez, gostaria de servir uma Rainha que respeitasse, alguém em quem realmente pudesse acreditar. Uma Rainha poderosa que não temesse a minha força. Uma Rainha a quem pudesse também chamar amiga. Friamente divertido pela própria tolice, Lucivar limpou a mão na calça larga de algodão e suspirou. Era uma pena que a declaração de Tersa, enunciada setecentos anos antes, não tivesse passado de simples e louca ilusão. Por algum tempo, foi a sua fonte de esperança. Demorou muito até que ele percebesse que a esperança é amarga. Olá! Lucivar olhou em direcção aos estábulos onde se alojavam os escravos. Logo os guardas fariam a ronda nocturna. Ainda que pairasse no ar um cheiro quente e poeirento, ele desfrutaria da aragem da noite por mais um minuto, antes de regressar à cela imunda com a cama feita de palha, suja e infestada de bichos, antes de regressar ao fedor do medo, de corpos sujos e dejectos humanos». In Anne Bishop, A Filha do Sangue, Jóias Negras, 1998, Saída de Emergência, 2009, ISBN 978-972-883-977-2.

Cortesia de SaídadeEmergência/JDACT