domingo, 10 de março de 2019

Memorial do Convento. José Saramago. «… que eram vinhos comprados no Porto, e as naus francesas são afinal inglesas que andam no seu comércio, e de caminho vão-se rindo à nossa custa, bom prato somos para galhofas estrangeiras»

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«(…) E como hei-de eu acreditar que tudo isso é verdade, se tu vais explicando coisas que eu não posso ver com os meus olhos, perguntou Baltasar, e Blimunda respondeu, Faze com o teu espigão um buraco naquele lugar e encontrarás uma moeda de prata, e Baltasar fez o buraco e encontrou, Enganaste-te, Blimunda, a moeda é de ouro, Melhor para ti, e eu não deveria ter arriscado, porque sempre confundo a prata com o ouro, mas em ser moeda e valiosa acertei, que mais queres, tens a verdade e o lucro, e se a rainha por aqui passasse eu te diria que está outra vez prenha, mas que ainda é cedo para saber se ocupou de varão ou fêmea, já dizia minha mãe que a matriz das mulheres o mal é ter enchido uma vez, logo quer mais e sempre, e agora te digo que começou a mudar o quarto da lua, porque sinto os olhos a arderem-me e vejo umas sombras amarelas a passar diante deles, são como piolhos caminhando, remexendo as patas, e são amarelos, mordem-me os olhos, pela salvação da tua alma te peço, Baltasar, leva-me para casa, dá-me de comer, e deita-te comigo, porque aqui adiante de ti não te posso ver, e eu não te quero ver por dentro, só quero olhar para ti, cara escura e barbada, olhos cansados boca que é tão triste, mesmo quando estás ao meu lado deitado e me queres, leva-me para casa, que eu irei atrás de ti, mas com os olhos baixos, porque uma vez jurei que nunca te veria por dentro, e assim será, castigada seja eu se alguma vez o fizer.
Levantemos agora os nossos próprios olhos, que é tempo de ver o infante Francisco a espingardear, da janela do seu palácio, à beirinha do Tejo, os marinheiros que estão empoleirados nas vergas dos barcos, só para provar a boa pontaria que tem, e quando acerta e eles vão cair no convés, sangrando todos, um e outro morto, e se a bala errou não se livram de um braço partido, dá o infante palmas de irreprimível júbilo, enquanto os criados lhe carregam outra vez as armas, bem pode acontecer que este criado seja irmão daquele marinheiro, mas a esta distância nem sequer a voz do sangue é possível ouvir, outro tiro, outro grito e queda, e o contramestre não se atreve a mandar descer os marujos para não irritar sua alteza e porque, apesar das baixas, a manobra tem de ser feita e dizermos nós que ele não se atreve é ingenuidade de quem de longe está olhando, porque o mais certo é nem sequer pensar esta simples humanidade, Lá está aquele filho da pu… a dar tiros nos meus marinheiros que vão para o mar a descobrir a Índia descoberta ou o Brasil encontrado, e em vez disso dá ordem para que venham lavar o convés, e sobre esta matéria não temos mais que dizer, que tudo viria a dar em repetição fastidiosa, afinal, se há-de o marinheiro levar um tiro fora da barra, de um corsário francês, melhor é que lho dêem aqui, morto ou ferido sempre está na sua terra, e por falarmos de corsário francês, vão os nossos olhos mais longe, lá no Rio de Janeiro, onde entrou uma armada daqueles inimigos, e não precisaram de dar um tiro, estavam os portugueses a dormir a sesta, tanto os do governo do mar como do governo da terra, e tendo os franceses fundeado a seu bel-prazer, desembarcaram, eles sim que parecia que estavam na sua terra, a prova foi que o governador deu logo ordem formal para que ninguém tirasse nada de casa, lá teria as suas boas razões, pelo menos as que o medo dá, tanto que os franceses deram eles saque a tudo o que encontraram, e com o que não fizeram recolher aos navios armaram uma venda no meio da praça, que não faltou quem ali fosse comprar o que roubado lhe fora uma hora antes, não pode haver maior desprezo, e deitaram fogo à casa do fisco, e foram aos matos, por denúncia de judeus, a desenterrar o ouro que certas pessoas principais tinham escondido, e isto sendo os franceses apenas dois ou três mil e os nossos dez mil, porém estava o governador feito com eles, não há mais que saber, que, entre portugueses traidores houve muitas vezes, ainda que nem tudo seja o que parece, por exemplo, aqueles soldados dos regimentos da Beira de quem dissemos que desertaram para o inimigo, não desertaram, antes foram para onde lhes dariam de comer, e outros houve que fugiram para as suas casas, se isso é traição, é o que está sempre a suceder, quem quiser soldados para entregar à morte há-de ao menos dar-lhes de comer e de vestir, enquanto estiverem vivos, e não andarem por aí descalços, sem trabalhos de marcha e disciplina, mais gostosos de pôr o próprio capitão na mira da espingarda do que de estropiar um castelhano do outro lado, e agora, se quisermos rir do que estes nossos olhos vêem, que a terra dá para tudo, consideremos o caso das trinta naus de França que já se disse estarem à vista de Peniche, ainda que não falte quem diga tê-las avistado no Algarve, que é perto, e na dúvida se guarneceram as torres do Tejo, e toda a marinha se pôs de olho alerta, até Santa Apolónia, como se as naus pudessem vir rio abaixo, de Santarém ou Tancos que isto de franceses é gente capaz de tudo, e estando nós tão pobrezinhos de barcos pedimos a uns navios ingleses e holandeses que aí estão e eles foram pôr-se na linha da barra, à espera do inimigo que há-de estar no espaço imaginário, já em tempos antes contados se deu aquele famoso caso da entrada dos bacalhaus, e agora veio-se a saber que eram vinhos comprados no Porto, e as naus francesas são afinal inglesas que andam no seu comércio, e de caminho vão-se rindo à nossa custa, bom prato somos para galhofas estrangeiras». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT