sábado, 30 de março de 2019

A Farsa. Christopher Reich. «Não consigo mexer os dedos do pé. Parece que está tudo solto lá em baixo. Está doendo, Jonathan. De verdade. Calma, deixe eu dar uma vista de olhos»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Três metros a separavam das pedras. Um e meio. No instante seguinte, ela deu um salto perfeito e inverteu a direcção. Jonathan relaxou. Emma desceu zunindo pelo trenó e fez outra curva perfeita. Abaixou as mãos nas laterais do corpo. Flexionou os joelhos para amortecer qualquer lombada escondida. Qualquer sinal de cansaço havia desaparecido. Ele ergueu um punho cerrado em gesto de triunfo. Emma tinha conseguido. Dali a meia hora estariam os dois sentados num cubículo reservado no Restaurante Staffelalp, em Frauenkirch, com dois cafés Lutz fumegantes à sua frente, rindo das peripécias do dia e fingindo que nunca haviam corrido qualquer perigo. Não de verdade. Mais tarde voltariam para o hotel, cairiam na cama e... Emma caiu fazendo a terceira curva. Esbarrou em algum obstáculo sob a neve ou então demorou meio segundo a mais para virar e os seus esquis chocaram contra as pedras. A barriga de Jonathan se contraiu. Horrorizado, ele a viu cavar uma cicatriz bem no centro do trenó. As suas mãos se agarraram à neve, mas o declive era acentuado demais. E estava congelado. Emma foi descendo cada vez mais rápido. Ao bater numa lombada, o seu corpo foi arremessado no ar como uma boneca de pano. Aterrou com uma das pernas dobrada para trás. Houve uma explosão de neve. Os seus esquis foram lançados para cima como se tivessem sido disparados por um canhão. Ela começou a despenhar, com os braços e pernas abertos, girando sem parar.
Emma!, gritou Jonathan, tomando impulso e descendo pelo tobogã. Esquiou sem pensar, com os braços bem abertos para manter o equilíbrio, o corpo retesado, deslizando pela encosta. Um véu de bruma cruzou o declive e por um instante ele se perdeu num vazio branco e sem visibilidade nenhuma, sem saber onde era em cima e onde era em baixo. Endireitou os esquis e varou a nuvem como um raio. Emma estava caída bem mais abaixo na encosta, de bruços, com a cabeça mais baixa do que os pés e o rosto enterrado na neve. Ele parou a três metros dela. Tirando os esquis, caminhou pela neve fofa com passos altos, as pernas arqueadas, os olhos atentos a qualquer ínfimo movimento. Emma, disse com firmeza. Está-me ouvindo? Tirando a mochila, ajoelhou-se e limpou a neve da boca e do nariz da mulher. Apoiando uma das mãos nas suas costas, sentiu o peito subir e descer. Sua pulsação estava forte e regular. Dentro da mochila havia uma sacola de nylon com um gorro sobressalente, luvas, óculos e uma t-shirt térmica. Ele enrolou a t-shirt e acomodou-a debaixo da bochecha de Emma. Nesse exacto instante ela mexeu-se. Ai, mer…, murmurou.
Fique quieta, ordenou Jonathan com a mesma voz que usava no pronto-socorro. Correu uma das mãos por cima da sua calça, começando na coxa e descendo. De repente, o rosto dela se contorceu de agonia. Não..., pare!, gritou. Ele afastou as mãos. Alguns centímetros acima do joelho, alguma coisa fazia pressão por dentro no tecido da calça. Ficou olhando para aquela protuberância grotesca. Somente uma coisa no mundo tinha aquele aspecto. Partiu, não foi?, Emma estava com os olhos arregalados, piscando depressa. Não consigo mexer os dedos do pé. Parece que está tudo solto lá em baixo. Está doendo, Jonathan. De verdade. Calma, deixe eu dar uma vista de olhos. Usando o canivete suíço, ele abriu um rasgão na calça de esqui da mulher e afastou o tecido delicadamente. Um osso espatifado furava a sua roupa térmica de baixo. O tecido em volta estava ensopado de sangue. Fratura exposta do fémur». In Christopher Reich, A Farsa, tradução de Fernanda Abreu, Editora Arqueiro, S. Paulo, 2008, ISBN 978-858-041-013-6.

Cortesia de EArqueiro/JDACT