terça-feira, 26 de março de 2019

O Fogo e as Cinzas. Manuel da Fonseca. «Lá isso é verdade, concordava eu, inquieto. Vinha-me à ideia Antoninha das Dores e, muito embora preferisse calar-me, era certo acrescentar. É isso mesmo... Já não há incêndios...»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Que o meu canto seja no meio do temporal uma chicotada de vento que estremeça as estrelas desfaça mitos e rasgue nevoeiros, escancarando sóis!» In Manuel da Fonseca

«(…) Veio um dia, e vimo-nos obrigados a mudar de rumo. Quisemos acertar o passo, segundo as regras, e começaram as topadas, escorregadelas, desvios. No dia-a-dia enviusado e traiçoeiro da vila, onde muitos dos choramingas da escola ganhavam dinheiro grosso e honestas reputações, nós caímos de desilusão em desilusão. Não sei como isto foi. Mas, anos depois, vencido, eu emagrecera; secara, nodoso e cheio de rugas, como o tronco carcomido de um sobreiro. Pelo contrário, derrotado na luta inglória com o forreta do pai, André Juliano engordou, engordou muito. Apesar disso, quando às vezes o olhava, com aquele olhar distraído mas que, de súbito, parece atingir a verdade que há nos homens e nas coisas, eu julgava estar a ver-me diante de um espelho côncavo. Sim, senhor, tal qual como eu : todas as raivas, todos os ciúmes, as invejas, os fracassos, mas inchado e balofo. Nestes momentos, o ódio contraía-me as feições, e largava um palavrão. Fitava-o com o olhar endurecido: estamos tramados, André, estamos tramados! Nunca consegui saber se ele adivinhava os meus pensamentos; o certo, é que me respondia de beiço caído, como num eco: tramados, amigo, tramados...
Olho o relógio. Quatro horas. Doidas, as moscas tecem um emaranhado de círculos em volta dos cemitérios. Ponho-me a observá-las, e faço cálculos sobre qual dos papéis cobertos de melaço peganhento atrairá a primeira. Por fim, cansado, caio numa modorra. Um murmúrio distante vem devagar, engrossa, até soar nitidamente dentro de mim. É a voz autoritária de mestre Poupa bombeiro. Vejo-o e oiço-o como se realmente ele estivesse sentado à minha mesa. Fogo?!, exclama a voz. E, logo, desiludida, já não há incêndios... Era o seu assunto preferido. Mestre Poupa tinha artes de ir desviando qualquer conversa até aparecer com naturalidade o caso de um fogo. Hoje em dia, já não há incêndios, comentava ele. Vejam vocês: toca o sino da igreja; a auto-bomba desce do quartel, puxa-se a mangueira e, pronto!, está o fogo apagado. Fogo?... Qual fogo, se nem deixamos atear nada! Lá isso é verdade, concordava eu, inquieto. Vinha-me à ideia Antoninha das Dores e, muito embora preferisse calar-me, era certo acrescentar. É isso mesmo... Já não há incêndios...
Como que saindo da névoa do fumo do tabaco que enche o Café, André Juliano surge do outro lado da mesa. Enrola um cigarro entre os dedos enormes, e os olhos, caídos, desaparecem-lhe sob a gordura das pálpebras. Abana a cabeça, suspirando: já não há nada... Até dá doença uma vida destas!... Ora lá disse você uma verdade. Isto, hoje, até dá doença. Porque seria que eu me fiz amigo de mestre Poupa? Sempre que me interrogo a este respeito, ocorrem-me várias razões capazes de justificar o facto. Mas, a todas abandono e acabo por concluir que foi obra do acaso. Por esse tempo, a vila andava acesa em discussões originadas pela acção dos bombeiros voluntários. As coisas não podem continuar assim!, dizia-se alto e em bom som. As coisas, era isto: fogo que houvesse, os prejuízos maiores não os faziam as chamas ruas os bombeiros improvisados, na ânsia de tudo molharem e de tudo salvarem. Abriam caminho à machadada, arrombavam tabiques, partiam mobílias e loiças, sem dó nem piedade. Estragos do lume apenas uma que outra chaminé, ou um carunchoso soalho.
Enfim, chegaram a tais termos que um dia, ao declarar-se incêndio na chaminé do Elias Tarro, como alguém corresse a puxar o badalo da igreja velha, o homem postou-se entre os umbrais da porta de espingarda em riste: quem entrar, morre! E impediu que os bombeiros lhe assaltassem a casa, enquanto, com baldes de água, pelo quintal, a família apagava as labaredas. Choveram ameaças e insultos, de parte a parte. À má cara, os bombeiros abandonaram a presa. E, não era passada uma semana, quando o Elias Tarro apareceu com a cabeça cheia de pensos e ataduras. Fora o Chico Biló que o esmurrara, após breve discussão. Ao pagar a conta na farmácia do Durães onde andara a tratar-se, Elias Tarro deu graças pelo preço em que lhe ficara o incêndio.
Vá lá... Antes isto que os malandros me terem invadido a casa. Mas a vila, aterrada, mudou a direcção dos bombeiros voluntários. E, por cartas, ajustou com um técnico de Lisboa a chefia da mal afamada corporação. Foi mestre Poupa quem apareceu. Dias depois, já eu passava horas a ouvi-lo. Havia sido um incêndio que me arruinara a vida, e para ele os incêndios, que o tinham enchido de glória, eram agora a causa da sua amargura. O material moderno, as muitas bocas de água espalhadas pelas ruas e a técnica moderna tornavam, conforme nos dizia, a extinção fácil e rápida, o que era impossível antigamente. Só queria que vocês assistissem ao incêndio da rua de Madelena, lá em Lisboa. Isso é que foi um fogo bom!, recordava ele, animado e feliz. Morreram dezenas de pessoas». In Manuel da Fonseca, O Fogo e as Cinzas, Wikipedia, 1951, Editorial Caminho, 1998, ISBN 978-972-212-431-7.

Cortesia de Wikipedia/ECaminho/JDACT