sábado, 9 de março de 2019

Pecados Conjugais. Irving Wallace. «Tentou imaginar que impressão teria causado nela. Não que ela tivesse reparado nele. Virou-se na cadeira e espreitou-se ao espelho pendurado na outra parede»

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Sábado à noite
«(…) Ainda bem que vieram. Levem o tempo que for preciso. Queria dizer algo mais, mas não sabia o que havia de ser. A Burdock já vos deve ter dito..., os cortinados estão incluídos na venda. E as carpetas são novas. Aquilo era palermice. Calou-se. Bom..., então, se me dão licença... Sentiu-se desajeitado ao atravessar a sala. Tinha a sensação de que os olhos dela o seguiam. Quando chegou ao vestíbulo, olhou para trás. Ela aproximara-se do aparelho de alta-fidelidade e estava a pegar na biografia de Miro. No atravancado escritório, sentou-se em frente da máquina de escrever, sentindo-se vagamente perturbado. Chegavam-lhe aos ouvidos, indistintamente, as vozes das mulheres que transitavam na sala de estar para a de jantar. Estava ansioso por se ir juntar a elas, mas ficou a brincar com o lápis. A Peggy Degen. Perguntava a si mesmo se seria casada com alguém que trabalhasse nos estúdios. Talvez até já a tivesse encontrado antes, mas era pouco provável. Ter-se-ia lembrado, com certeza. Peggy Degen. Havia nela uma limpeza de linhas, um ar de sair da lavandaria, que ele achava atraente. Isso e os olhos ajaponesados, assim como aquela maneira de encaracolar uma das extremidades dos lábios como se fosse senhora de um segredo qualquer que lhe dissesse respeito.
Tentou imaginar que impressão teria causado nela. Não que ela tivesse reparado nele. Virou-se na cadeira e espreitou-se ao espelho pendurado na outra parede. Tinha uma espessa cabeleira negra, prematuramente raiada de branco nas têmporas, muito invejada pelos homens da sua idade, que penteavam desesperadamente as derradeiras farripas tentando cobrir as cúpulas calvas, em que deixavam crescer, esperançadamente, espessas patilhas. As mulheres de outros homens estavam sempre a dizer a Helen que ele tinha um rosto triste. Sabia bem que isso era o resultado do desenho especial dos seus olhos: de pálpebras pesadas, castanhos, ligeiramente míopes. Quando não estava à secretária, raramente usava óculos, o que dava aos seus olhos aquela expressão fixa e ao mesmo tempo melancólica que as mulheres achavam interessante. Tinha um nariz direito que lhe agradava. Nos últimos anos, o seu único problema, quanto ao físico, era o peso. Tinha um metro e oitenta de altura e pesava oitenta e quatro quilos. Nesse momento desejava ter uns cinco ou sete quilos a menos. Não gostava de ser maciço, queria antes ser angulosamente atraente, como os rapazes diziam sempre. E era assim que gostava que Peggy Degen o tivesse visto. Ouviu passos que, vindos da cozinha, atravessavam o vestíbulo. Virou-se rapidamente para a secretária, fingindo rabiscar notas num bloco de apontamentos. Oh, desculpe!...
Levantou os olhos. Peggy Degen estava sozinha junto à porta. Não sabia que estava a trabalhar. Philip sorriu. Não estava..., fingia apenas..., para não dar a impressão de estar por aí a espiar. Mas se tinha que sair... Nada de importante, sério... A Burdock anda a mostrar a cozinha à Dona... a Stafford, armário por armário. Confio essa parte à Dora. Não percebo nada de cozinhas. Então como é que o seu marido almoça e janta? Não tenho marido. Morreu num acidente de viação há mais de um ano. Peço desculpa. Não tem de quê. É difícil de explicar, mas dá-me a impressão de ter acontecido há milhões de anos. Ele observava-lhe os lábios a falar. Nunca vira lábios tão bem desenhados. Ou talvez fossem os olhos que tornavam aqueles lábios tão belos: uma morena clara de olhos verdes. Deu-se subitamente conta do que ela acabava de dizer e ficou momentaneamente sem saber quais seriam as palavras correctas para continuar a  conversa. - Esteve casada muito tempo?, perguntou. Não. Depois acrescentou, precipitadamente: Além disso, sempre tivemos criada, e, por isso, eu não tinha de cozinhar. Acho que devia aprender. Não é indispensável. Cozinhar é uma especialização. Ser decorativa é outra. Julguei que isso tinha passado de moda desde os dias de Nora Helmer. Nora Helmer? A esposa-boneca de Ibsen.
Philip olhou-a cautelosamente. Depois acrescentou: se Ibsen vivesse hoje, e escrevesse a continuação, acho que teria feito regressar Nora. Ela já estaria fartinha de todo de igualdade e de independência. Talvez já lhe agradasse regressar outra vez à função ornamental. Não acha? Não estou bem certa. Siga o meu conselho. Evite as mãos gretadas da lavagem da louça. Fique como está. Ela riu-se, evidentemente agradada. Depois voltou a ficar séria. A Burdock disse-nos que o senhor é um escritor famoso. Philip ficou embaraçado». In Irving Wallace, Pecados Conjugais, 1996, Livros do Brasil, Colecção dois Mundos, 1996, ISBN 978-972-381-578-8.

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