segunda-feira, 18 de março de 2019

O Segredo de Compostela. Alberto S. Santos. «Um dia, a velha parteira ouviu casualmente as conversas dos escravos. Desde que o pequeno Danígico chegara ao mundo que não parara de chover!»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Enquanto os dois irmãos debatiam os valores morais e os princípios a transmitirem aos filhos, um criado veio, silencioso como o vento, anunciar: senhor, está lá fora um enviado de Ithacio com um mandato na mão… Um mandato?! O seu estômago apertou-se e o coração acelerou, enquanto os olhos se abriam e o rosto ruborescia. Um mandato?, continuava a remoer. Algo de grave acontecera ou estaria para acontecer. Sim, ordena que amanhã, depois do prandium, o senhor Lucídio Danígico Tácito se apresente no palácio… Que pretende esse Ithacio?! Nós a falarmos nele e lá aparece a sombra do abutre! O que achas que pode querer, Sabino?! Não sei… Mas coisa boa não será certamente! Esse homem é muito astucioso. Toma cuidado, meu irmão! Lucídio passou a noite em claro. E o caso não era para menos!

Aseconia (Santiago de Compostela)
Iria Flavia (Padrón)
Mais a norte, na Villa Aseconia, a notícia do nascimento do pequeno Prisciliano correra como uma flecha pelas bocas e orelhas dos habitantes. Colonos, criados e escravos bendisseram os deuses pelo bom augúrio dos céus à casa, sinal de descendência para assegurar a grande fortuna dos Danígicos e garantir a vida aos seus habitantes e respectivas gerações. Mas nem todos estavam felizes. Num dos homens da villa habitava um espírito de gosto diferente: o do ódio e da vingança. Passava o tempo a remorder-se com a sua má fortuna e aproveitava as sombras da noite para recorrer à magia negra, conjurando para que a criança não sobrevivesse. Por essa, ou por outras razões certificadas pelo destino, a desgraça abeirou-se, entretanto, da porta de Priscila, tornando-a numa mulher inconsolável. A notícia dos maus presságios correu igualmente por campos e vales, montes e outeiros, até se alojar nos corações dos habitantes da villa com a força de um tição ardente: o pequeno Prisciliano estava doente e definhava, dia após dia.
Valéria, ai que desgraça! Vai morrer o pobre Prisciliano! E nem tenho Lucídio comigo! A anciã suspirou. Afligia-se de remorsos com a cisma de que tivesse cometido alguma imprudência durante o parto e afectado os humores da criança. Mas, recordando cada um dos passos, tudo lhe parecia perfeito! Estava ciente de que, apesar das dificuldades, o parto correra bem. Tal como Priscila, Valéria não mais dormira nas noites que se lhe seguiram. O pequeno, por razões que lhe escapavam, não queria alimentar-se. O pouco leite que engolia era dado à força de muita insistência, e apenas o dos seios maternos. Recusava-se a mamar nos de qualquer escrava, pelo que a mãe vazava o leite para uma tigela de vidro, que Valéria, a muito custo, o fazia engolir.
Um dia, a velha parteira ouviu casualmente as conversas dos escravos. Desde que o pequeno Danígico chegara ao mundo que não parara de chover! Sabendo que Priscila era devota de Ísis, eles murmuravam que tantos dias de chuva só podiam significar as lágrimas da deusa pela má sorte da fervorosa devota e do seu filho. E se Ísis chorava, como chorava desde os tempos primordiais de cada vez que as águas do Nilo transbordavam, lembrando a imensa tristeza pela morte de Osíris, seu eterno esposo, urgia acudir-lhe depressa para apaziguar-lhe os sofrimentos. Talvez fizessem sentido os cicios dos escravos e colonos devotos da deusa oriental, para eles a verdadeira mãe dos deuses, aquela que assegurava a justiça aos pobres e oprimidos e o abrigo aos mais fracos». In Alberto S. Santos, O Segredo de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-068-096-9.

Cortesia de PEditora/JDACT