sábado, 23 de março de 2019

A Traidora do Trono. Alwyn Hamilton. «Mas não precisava de uma arma para derrubar doze homens. Era quase engraçado. Eles haviam usado uma corda para me prender, não o ferro que me tornaria tão humana quanto eles»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Príncipe Estrangeiro
«(…) Um burburinho percorreu a multidão. Estaria mentindo se dissesse que isso não me deixou arrepiada. E mentir era pecado. Fazia quase seis meses que eu estivera em Fahali com Ahmed, Jin, Shazad, Hala e os gêmeos Izz e Maz. Nós sete contra dois exércitos e Noorsham, um demdji transformado em arma pelo sultão, e que por acaso era meu irmão. Enfrentámos forças muito maiores que nós e um ser devastadoramente poderoso. Mas sobrevivemos. A história da batalha de Fahali viajou pelo deserto mais rápido do que a dos jogos do sultim. Eu a ouvi dezenas de vezes, contada por pessoas que não sabiam que a rebelião estava ali. As nossas proezas ficavam maiores e menos plausíveis cada vez que eram recontadas, mas o relato sempre terminava do mesmo jeito, com a sensação de que a história ainda não tinha acabado. De um jeito ou de outro, o deserto não seria o mesmo após aquela batalha.
A lenda da Bandida de Olhos Azuis havia crescido para além desse relato, até eu me transformar numa história que mal reconhecia. Diziam que a Bandida de Olhos Azuis era uma ladra, e não uma rebelde. Que seduzia pessoas para obter informações para o príncipe. Que havia assassinado o próprio irmão no campo de batalha. Essa era a versão que eu mais odiava. Talvez porque, por um momento, com o dedo no gatilho, ela quase se tivesse tornado realidade. Mas eu o deixara escapar. O que era tão ruim quanto matá-lo. Ele estava em algum lugar, com todo aquele poder. Mas, diferente de mim, não tinha outros demdjis para ajudá-lo. Às vezes, tarde da noite, depois de todos irem dormir, eu dizia em voz alta que ele estava vivo, só para saber se era verdade ou não. Até então, conseguira pronunciar as palavras sem pestanejar. Mas tinha medo de que chegasse o dia em que não seria assim. Isso significaria que era mentira, que meu irmão havia morrido, sozinho e assustado, em algum lugar do deserto impiedoso e devastado pela guerra.
Se ela é tão perigosa quanto dizem, deveríamos matá-la de uma vez, alguém da multidão gritou. Era um homem com uma faixa militar amarela brilhante cruzando o peito. Parecia que tinha sido costurada a partir de farrapos. Notei que outros também a vestiam. Deviam ser os recém-nomeados guardas de Saramotai, já que a guarda real havia sido assassinada. O homem que falou segurava uma arma apontada para a minha barriga. Feridas naquela região não eram nada legais. Matavam lentamente. Mas se ela for a Bandida de Olhos Azuis, trabalha para o príncipe rebelde, outra pessoa falou. Isso não significa que está do nosso lado? Essa era a pergunta de um milhão de pessoas. Jeito curioso de tratar um aliado, disse, exibindo as mãos atadas. Um burburinho percorreu a multidão. Aquilo era bom. Significava que eles não eram tão unidos quanto pareciam de fora da sua muralha impenetrável. Então, já que somos todos amigos, que tal me desamarrar para podermos conversar? Bela tentativa, Bandida. Hossam segurou-me mais firme. Não vamos dar-te a chance de botar as mãos numa arma. Ouvi dizer que matou uma dúzia de homens com uma única bala. Eu tinha certeza de que isso não era possível. Mas não precisava de uma arma para derrubar doze homens. Era quase engraçado. Eles haviam usado uma corda para me prender, não o ferro que me tornaria tão humana quanto eles. Daquele jeito, eu poderia erguer todo o deserto contra aquelas pessoas. O que significava que era capaz de causar mais dano de mãos atadas do que com uma arma. Mas o plano não era causar estrago nenhum». In Alwyn Hamilton, A Traidora do Trono, A Rebelde do Deserto 2, 2016/2017, Editora Seguinte, Companhia das Letras, ISBN 978-855-534-029-1.

Cortesia de ESeguinte/CdasLetras/JDACT