terça-feira, 12 de março de 2019

A Filha do Sangue. Anne Bishop. « Estaria imaginando coisas ou a voz dela tinha mudado? Continuava parecendo a voz de uma menininha, mas nela havia trovões, cavernas e céus de meia-noite. Estava sofrendo»

Cortesia de wikipedia e jdact

Terreille
«(…)Olá! Lucivar voltou-se lentamente, desenhando um círculo, os sentidos físicos alertas, a mente investigando a origem daquele pensamento. A comunicação psíquica podia ser difundida a todos numa determinada área, como gritar num quarto cheio de gente, ou restringida a uma única categoria de Jóias, ou, mais ainda, a uma única mente. Aquele pensamento parecia dirigido directamente a ele. Não existia nada ali para além do que seria de esperar. O que quer que fosse, tinha desaparecido. Lucivar balançou a cabeça. Estava ficando tão assustado como os plebeus, aqueles que, qualquer que seja a raça, não fazem parte dos Sangue, com suas superstições sobre o mal que espreita durante a noite. Olá! Lucivar girou sobre si próprio, as asas negras abertas para manter o equilíbrio enquanto colocava os pés em posição de combate. Sentiu-se ridículo ao ver a menina que o fitava, de olhos arregalados. Não passava de uma coisinha magra, com cerca de sete anos. Descrevê-la como comum seria bondade. Contudo, mesmo ao luar, possuía olhos extraordinários, que faziam-no lembrar do céu ao crepúsculo ou um lago profundo da montanha. Suas roupas eram de boa qualidade, certamente melhores do que as que usaria um pedinte. Os cabelos louros tinham cachos que indicavam carinho e cuidado, mesmo que parecessem ridículos no seu rostinho pontiagudo. O que está fazendo aqui?, perguntou abruptamente.
Ela entrelaçou os dedos e encolheu os ombros. Eu..., ouvi. Queria uma amiga. Me ouviu? Lucivar olhou-a fixamente. Mas como diabo o tinha ouvido? De facto, tinha transmitido esse desejo para o exterior, mas por um fio Cinza-Ébano. Era o único Cinza-Ébano no Reino de Terreille. A única Jóia mais escura que a sua era a Negra, e a única pessoa que usava essa Jóia era Daemon Sadi. A não ser... Não. Não podia ser. Nesse preciso momento, os olhos da menina saltaram de Lucivar para o homem morto no barco e de volta para ele. Preciso ir, murmurou, afastando-se. Não, não precisa. Foi até ela sem fazer barulho, como um caçador no encalço da sua presa. A menina esquivou-se. Em segundos, a tinha apanhado, indiferente ao barulho dos grilhões. Enrolando uma corrente em volta dela, envolveu-lhe a cintura com um braço e levantou-a do chão, soltando um gemido quando ela lhe bateu com o calcanhar no joelho. Ignorou as suas tentativas de arranhá-lo, e os pontapés. Embora o machucassem, não tinham o mesmo efeito de um pontapé dado no lugar certo. Quando começou a gritar, tapou-lhe a boca com uma das mãos. Na mesma hora, ela cravou os dentes no seu dedo.
Lucivar engoliu um grito e praguejou baixinho. Caiu de joelhos, levando a menina com ele. Não faça barulho, murmurou, furioso. Quer que os guardas nos apanhem? Provavelmente era o que ela queria, e Lucivar esperava que a menina lutasse com alento ainda maior sabendo que a ajuda estava por perto. Em vez disso, ficou petrificada. Lucivar encostou a sua face à cabeça da menina e inspirou. É uma menina danada, afirmou com serenidade, lutando para manter o riso longe da voz. Porque o matou? Estaria imaginando coisas ou a voz dela tinha mudado? Continuava parecendo a voz de uma menininha, mas nela havia trovões, cavernas e céus de meia-noite. Estava sofrendo. Não podia tê-lo levado a uma curandeira? As curandeiras não se interessam pelos escravos, vociferou. Além do mais, as ratazanas deixaram pouco para curar. Encostou-a com mais força ao seu peito, na esperança de que, ao aquecê-la com o seu corpo, ela parasse de tremer. Parecia pálida demais contra a pele castanho-clara de Lucivar, e ele sabia que não era simplesmente porque tinha a pele clara. Desculpa. Isso foi cruel.
Quando a menina começou a lutar contra o seu abraço, levantou os braços para que pudesse deslizar sob a corrente entre os seus pulsos. Ela correu atabalhoadamente para longe do alcance de Lucivar, girou sobre si mesma e caiu de joelhos. Analisaram-se. Qual é o seu nome?, perguntou finalmente. Me chamo Yasi. Riu ao vê-la torcer o nariz. Não me culpe por isso. Não fui eu que escolhi. É uma palavra ridícula para alguém como você. Qual é o seu nome verdadeiro? Lucivar hesitou. Os eyrienos eram umas das raças de longevidade prolongada. Ao longo de 1.700 anos, ele tinha adquirido a reputação de ser depravado e violento. Se ela tivesse ouvido alguma das histórias sobre ele... Respirou fundo e deixou sair lentamente: Lucivar Yaslana». In Anne Bishop, A Filha do Sangue, Jóias Negras, 1998, Saída de Emergência, 2009, ISBN 978-972-883-977-2.

Cortesia de SaídadeEmergência/JDACT