sexta-feira, 22 de março de 2019

A Traidora do Trono. Alwyn Hamilton. «Era engraçado como ser bem-sucedida e ser capturada despertavam exactamente a mesma sensação. Hossam empurrou-me à sua frente pela abertura estreita dos portões»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Príncipe Estrangeiro
«(…) Fiz uma careta de dor. Não precisava gritar tão alto. Abra os portões agora mesmo, ou juro por Deus que vou obrigar o teu pai a bater-te com mais força do que ele bate nas ferraduras, até entrar um pouco de juízo na sua cabeça. Hossam? Ikar não baixou a arma de imediato. Parecia muito nervoso, um péssimo sinal para alguém com o dedo no gatilho. Quem é essa aí? Ele apontou a arma na minha direcção, o cano balançando loucamente. Virei o corpo por instinto. Ikar não seria capaz de acertar nem um roc se tentasse, mas eu não podia descartar a hipótese de ser atingida por acidente. Se ele atirasse, era melhor que acertasse no meu ombro do que no meu peito. Essa aqui…, uma ponta de orgulho tremulou na voz de Hossam enquanto erguia o meu rosto como se eu fosse um animal, é a Bandida de Olhos Azuis. Aquilo soou mais impressionante do que costumava ser, deixando um rasto de silêncio. Ikar encarou-nos do alto do muro. Mesmo àquela distância, vi a sua boca abrir e pender por um momento, depois fechar. Abram os portões!, ele finalmente gritou, então desceu correndo. Abram os portões! As enormes portas de ferro moveram-se terrivelmente devagar, lutando contra a areia que se havia acumulado durante o dia. Hossam e os homens que nos acompanhavam empurraram-nos com pressa enquanto as antigas dobradiças gemiam. Os portões não se abriram por completo, apenas o suficiente para passar um de cada vez. Mesmo após milhares de anos pareciam tão fortes quanto nos primórdios da humanidade. Eram de ferro sólido, tão espessos quanto o comprimento dos braços de um homem, e funcionavam graças a algum sistema de pesos e engrenagens que nenhuma outra cidade conseguira duplicar. Não havia como derrubá-los. E não havia como escalar a muralha. Todos sabiam disso.
Parecia que a única forma de entrar na cidade era como uma prisioneira, arrastada pelos portões com alguém segurando o seu pescoço. Que sorte a minha. Saramotai ficava a oeste das montanhas centrais. O que significava que era nossa. Ou pelo menos deveria ser. Após a batalha de Fahali, Ahmed declarou o território como seu. A maioria das cidades tinha jurado fidelidade rapidamente, expulsando das suas ruas os invasores gallans que haviam ocupado aquela metade do deserto por tanto tempo. Conquistámos a confiança das outras sem muita dificuldade. Ali era outra história. Saramotai havia criado as suas próprias leis, levando a rebelião um passo além. Ahmed falava bastante sobre igualdade. O povo local havia decidido que o único modo de alcançá-la era derrubar quem estava acima deles. O único jeito de ficar rico era tomar a riqueza alheia. Então os pobres se voltaram contra os ricos usando o discurso da igualdade de Ahmed como justificativa. Mas Ahmed sabia reconhecer um golpe. Sabíamos pouco a respeito de Malik Al-Kizzam, o homem que tomara Saramotai, além do facto de ter sido um servo do emir. Agora, Malik vivia no palácio e o emir estava morto. Então enviámos pessoas para descobrir mais. E fazer algo, se não gostássemos das notícias. Elas não retornaram.
Aquilo era um problema. Outro problema era como entrar lá para procurá-las. Por isso eu estava ali, com as mãos tão fortemente atadas atrás das costas que já perdiam a sensibilidade, e com uma ferida recém-aberta na clavícula, causada por uma faca que errara por pouco o meu pescoço. Era engraçado como ser bem-sucedida e ser capturada despertavam exactamente a mesma sensação. Hossam empurrou-me à sua frente pela abertura estreita dos portões. Cambaleei e estatelei-me de cara na areia, o cotovelo batendo dolorosamente no ferro enquanto eu desabava. Aquilo doía mais do que eu julgara possível. Um gemido de dor escapou enquanto eu rolava para o lado. A areia grudou em minhas mãos onde o suor se havia acumulado sob as cordas. Então Hossam me agarrou, me botou de pé e continuou empurrando. O portão fechou-se rápido atrás de nós. Era quase como se estivessem com medo. Uma pequena multidão já se havia reunido para observar. Metade portava armas. Uma parte considerável delas estava apontada para mim. A minha reputação realmente me precedia». In Alwyn Hamilton, A Traidora do Trono, A Rebelde do Deserto 2, 2016/2017, Editora Seguinte, Companhia das Letras, ISBN 978-855-534-029-1.

Cortesia de ESeguinte/CdasLetras/JDACT