quinta-feira, 14 de março de 2019

A Cruz de Esmeraldas. Cristina de Torrão. «Konrad, que vivera três anos em Colónia, estava habituado aos bairros labirínticos e às ruas estreitas das cidades, mas o arrabalde oriental de Lusbuna ainda assim espantava-o»

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«(…) Amir parecia incapaz de a contrariar. Guiou-a pelo adarve da alcáçova fora e passaram a curva na ponta noroeste, onde a couraça, o lanço de escadas fortificadas, fazia a ligação à torre albarrã. Continuaram até à torre na ponta nordeste, onde Amir constatou: os fugitivos aproximam-se do almocavar! E não os podemos ajudar? Na sua fúria, Aischa dirigiu-se aos soldados que estavam de guarda naquela torre: porque não se torna a abrir uma das portas, a fim de deixar entrar os coitados? Seria arriscado demais, respondeu um dos homens. Muitos cruzados poderiam aproveitar a oportunidade para se infiltrarem na al-qasbá. Os perseguidores não são tantos como isso, insistiu ela. A maior parte parece ter ficado no bairro de Alcamim, a fim de saquear as casas e os al-hurí. Além disso, acrescentou Amir, apoiando-a, os moçárabes parecem levar a melhor nos combates junto ao almocavar, põem muitos dos majus em fuga. Bem se podia abrir uma porta, enquanto não surgem mais... Tarde demais, retorquiu o soldado, apontando para a encosta da colina do acampamento português.
Aischa olhou para a sua esquerda e os olhos dilataram-se-lhe ao aperceber-se de que os homens de Ibn Errik vinham em ajuda dos seus aliados. E foi ali, junto ao almocavar, o cemitério islâmico onde estava enterrada a sua mãe, que deram o golpe de misericórdia naquele punhado de fugitivos moçárabes. A moça virou enfim as costas aos acontecimentos e encostou-se ao merlão, respirando às golfadas. O que mais a transtornava era porém a ideia de que a sua mãe teria contribuído para aquela desgraça. Tinha a certeza que Zubaida intercedera junto do seu Deus, para que os cruzados e os homens de Ibn Errik levassem a melhor na refrega.
Não devia ter-te trazido para aqui, murmurou Amir, afagando-lhe os ombros. Ele olhava-a tão preocupado, que ela se arrependeu de o ter convencido a isso. Eu é que fui a culpada. Devia ter-te dado ouvidos e... Mas o que vem a ser isto? Aischa estremeceu, perante o semblante furioso do seu irmão mais velho. Abu agarrou-a por um braço, arrancando-a das mãos de Amir: mas será que nunca aprendes? Os dedos dele apertavam-na tanto, que ela sentiu as lágrimas chegarem-lhe aos olhos. Sempre foste desobediente, sua desgraçada. Nem imaginas o que te faço, assim que chegarmos... A culpa foi minha, interrompeu-o Amir. Convencia de que não corria perigo. Não passas de um miúdo inconsciente! Não te atrevas a ofender-me! Esqueceste de quem sou filho? E de que, se não fossem todos estes contratempos, Aischa e eu já estaríamos casados? Abu resmungou algo incompreensível, mas não continuou a admoestar o filho de um ulama, braço direito do alcaide. Deu mais um puxão a Aischa e bradou: vamos! Em casa veremos o que... Eu acompanho Aischa a casa e falarei com o vosso pai, intrometeu-se novamente Amir. Pedir-lhe-ei desculpa, pois, ao contrário do que pensas, responsabilizo-me pelos meus actos.
Só muito contrariado, Abu largou a irmã. Aischa suspirou de alívio. Sabia que Abu não hesitaria em lhe dar uma sova, mas, com sorte, o pai ficaria por algumas palavras de advertência. Malik Ibn Danaf tinha um fraco por aquela filha e, além disso, Amir arcaria com a culpa. Quando já se encontravam fora do alcance do irmão, sussurrou enternecida: obrigada. Amir beijou-lhe o alto da face, que o véu descaído descobrira. Não me agradeças! Isto não foi nada, comparado com o que eu me prontificaria a fazer por ti. O dia do nosso casamento será o mais feliz da minha vida. Estas palavras deixaram Aischa sem respiração. Causavam-lhe porém mais desconforto do que alegria. Por mais que Amir lhe agradasse, ela acabava de se aperceber de que dificilmente conseguiria retribuir a densidade do amor que ele sentia por ela.

Konrad, que vivera três anos em Colónia, estava habituado aos bairros labirínticos e às ruas estreitas das cidades, mas o arrabalde oriental de Lusbuna ainda assim espantava-o. Com as suas casas implantadas nas rochas, as ruas, além de íngremes, mediam no máximo oito pés de largura. O que se lhe revelava agora uma vantagem, pois não lhe faltavam recantos e esquinas onde se esconder dos besteiros mouros que vigiavam as redondezas, ao abrigo dos merlões. Konrad percorria as ruelas sozinho. Mais uma vez, sentira o desejo irresistível de se aproximar de Lusbuna, como se andasse à procura de algo... Só não sabia o quê! Depois da ocupação do bairro de Alcamim pelos ingleses, os habitantes do arrabalde oriental haviam-no abandonado, receando um ataque por parte dos alemães e flamengos, acampados no monte em frente. Muitos desses pescadores e artesãos tinham-se rendido ao cruzados, alguns até se prontificaram a lutar ao lado deles, contra os mouros, por serem igualmente cristãos. Tratava-se dos tais moçárabes, que praticavam os velhos ritos visigóticos. Vivendo entre os muçulmanos, não tinham adoptado a nova liturgia romana, introduzida na Hispânia há cerca de sessenta anos por Afonso VI de Leão, o avô do rei português». In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT