quarta-feira, 28 de setembro de 2022

História e Declínio de Três Povoações na Fronteira. Carlos E. Cruz Luna. «A lenda diz que estando Ouguela cercada durante uma guerra (não se indica qual), e não sendo possível pedir socorro a Campo Maior, uma criança…»

Cortesia de wikipedia e jdact

 Ouguela

«(…) Na memória popular ficou uma mulher, Isabel Pereira, que, segundo rezam documentos da época, se mostrou dotada de grande valentia, quer pelejando nas trincheiras, [quer] repartindo pólvora e balas aos soldados; e retirada ao castelo ficou desacordada por algum espaço com a ferida que lhe deram, até que, tornando a si, e vendo que não era perigosa, prosseguiu a pelejar com maiores brios até ó fim. Em 1662, todavia, Ouguela rendeu-se sem resistência ao exército espanhol de João de Áustria. O capitão Domingos Ataíde Mascarenhas, que deu a ordem de capitulação, foi depois severamente punido. A paz de 1668 permitiu às terras raianas recomeçar a sarar as feridas, tanto do lado português como espanhol. Mas…, novos conflitos se sucederam. Assim, em 1709 houve novas destruições em torno da vila, e em 1762 um rigoroso cerco, durante o qual o capitão Brás Carvalho conseguiu resistir heroicamente. Na obra Corografia Portuguesa, de 1708, de António Carvalho Costa, tomo IF(?), duas páginas são dedicadas à vila de Ouguela; diz-se que a povoação tem mais de 700 habitantes, que o seu orago é Nossa Senhora da Graça, que tem casa da misericórdia na ermida do Espírito Santo. Mais, fala-se em ruínas antigas junto a uma ermida, São Salvador, a quatro quilómetros da vila, citada como tendo sido Casa dos Templários. Diz-se ainda que Ouguela é (…) abundante de pão, vinho, e gados, e [que] tem uma fonte com duas propriedades notáveis: uma, que toda a cousa viva, que se lhe lança dentro, morre logo, excepto rãs; e outra, que de maneira nenhuma coze carnes, nem legumes. Mais, diz-se que a vila tem dois juízes ordinários, vereadores, um procurador do concelho, um escrivão da câmara, um juiz órfãos com o seu escrivão, outro do judicial, e notas, e uma companhia de ordenança. Pedro Cunha, senhor de Tábua, é apontado como senhor de Ouguela. A obra refere a lenda da igreja de Nossa Senhora da Enxara, no caminho de Albuquerque, semelhante a tantas outras, nas quais uma divindade, ou uma estátua da mesma, indica o lugar onde se lhe deverá erguer um templo. Neste caso, é uma garota, e depois a sua mãe, que são escolhidas pela divindade. Descreve-se a imagem da Santa e opina-se que poderá ter origem visigótica. Refere-se que há muita devoção à mesma, e que pessoas de Campo Maior, e até de Castela, lhe pedem protecção, e visitam a Igreja.

É significativo, talvez, que não se refira a lenda do tamborzinho. Com as devidas reservas, tal poderá significar que esta, tão difundida em Ouguela, terá tido origem num facto ocorrido em 1709 ou em 1762. Dificilmente poderá ter tido lugar mais tarde. A lenda diz que estando Ouguela cercada durante uma guerra (não se indica qual), e não sendo possível pedir socorro a Campo Maior, uma criança terá descido pela figueira que ainda hoje se vê junto á muralha, transportando uma bandeira e uma mensagem escrita, e talvez um tamborzinho com que costumava brincar. Não tendo levantado suspeitas no campo espanhol, ultrapassou as linhas inimigas e chegou a Campo Maior, entregando a mensagem no hospital. Diz-se que Ouguela terá tido um brazão inspirado nesta lenda, mas nada consta em documentos. Afinal, esta lenda reflecte a vivência de posto militar raiano das gentes de Ouguela». In Carlos E. Cruz Luna, História e Declínio de Três Povoações na Fronteira, RV000831, dip-badajoz.es, LXII, 2006.

Cortesia de RV000831/dip-badajoz.es/JDACT

JDACT, Carlos E. Cruz Luna, Ouguela, História, Conhecimento, Alentejo,

História e Declínio de Três Povoações na Fronteira. Carlos E. Cruz Luna. «Por volta de 1220 ou 1230, a região de Ouguela, bem como Campo Maior, foi conquistada por leoneses. As duas localidades tornaram-se aldeias de Castela-Leão…»



Cortesia de wikipedia e jdact

Ouguela

«Quem hoje se afasta de Campo Maior para norte, ou nordeste, encontra, a cerca de 10 quilómetros, uma povoação, Ouguela, de pouco mais de 60 habitantes. Um castelo de grandes dimensões, e que desde logo nos surpreende, domina a paisagem. Trata-se de mais um caso de uma povoação que já teve alguma grandeza, e que conheceu um grande declínio, um pouco como sucedeu com Juromenha, e, em menor escala, com Terena, para já não falar de outras. Algumas fontes antigas dizem que ali, existiu uma povoação romana chamada Budua, e que nos tempos visigodos, e até talvez árabes, se chamava Niguella. Não se sabe se há fundamentos para tais afirmações ou se estamos perante lendas.

Até ao Século XVII

Por volta de 1220 ou 1230, a região de Ouguela, bem como Campo Maior, foi conquistada por leoneses. As duas localidades tornaram-se aldeias de Castela-Leão, com algumas situações de conflito sem grande importância, até que, em 1297, pelo tratado de Alcañices, passaram para Portugal, tal como, na região, Olivença (e Táliga). Ouguela (assim se passou a chamar) recebeu foral do mesmo tipo do de Évora, logo em 1298. Todavia, com Campo Maior e Olivença, dependeu do bispado de Badajoz até 1415. O castelo foi mandado reconstruir em 1300 (o que indica que já existia algo de fortificações no local, a não ser que se trate dum erro). Outras fontes indicam 1310, o que parece ser menos provável

A importância de Ouguela, estava na sua posição estratégica, já que defendia um dos caminhos de entrada em Portugal, primeiramente contra Leão e Castela, depois contra a sua sucedânea Espanha. Ouguela quase não é citada na crise de 1383-85, presumindo-se que terá sido anulada por Campo Maior, que se colocou do lado de Castela. Portanto, só terá regressado à coroa portuguesa entre 1348 e 1390. É muito possível que se tenham desenrolado combates na região, e que a população tenha sofrido com isso. O seu castelo é várias vezes reforçado nos séculos XIV e XV, o que significa que mantinha a sua importância estratégica. Em 1475, segundo a lenda e alguns documentos, ter-se-á travado um estranho combate singular entre João Silva, alcaide-mor de Ouguela, e João Fernandes Galindo (Juan Fernández Galindo), alcaide-mor de Albuquerque (Espanha). Parece que um contingente castelhano penetrara na vila. Ambos morreram dos ferimentos sofridos, tendo em 1551 Diogo Silva, neto do alcaide-mor então falecido, a caminho do Concílio de Trento, mandado colocar no local de combate uma cruz comemorativa, hoje no museu de Elvas (Cruz de Galindo). Não se sabe o que haverá de fantasioso em tal episódio. Em 1 de Junho de 1512, Ouguela recebeu uma nova carta de foral (reinado de Manuel I). Claro que Ouguela, ou melhor, as suas gentes, terão participado na gesta dos descobrimentos iniciada no século XV, e terão vivido a decadência portuguesa da segunda metade do século XVI e do século XVII. Em 1527, o numeramento (censo) de Portugal dava a Ouguela 144 fogos (cerca de 600 a 650 habitantes), ao lado de Campo Maior (cerca de 2.900 habitantes), Alegrete (cerce de 1.000 habitantes), Arronches (cerca de 3.300 habitantes), Elvas (8900 habitantes), Olivença (4.900 habitantes), Juromenha (600 habitantes), Terena (600 habitantes também), Vila Viçosa (3.000 habitantes), Borba (3800 habitantes), Estremoz (4.500 habitantes), Marvão (1.700 habitantes), Monforte (2.500 habitantes).

Séculos (XVI e XVII)

A guerra da restauração (1640-1668) levou novas agruras para a sua população. Datam dessa época alguns troços de muralha com os primeiros trabalhos em 1647, mas que se estenderam pelo século XVIII. Logo em 1642, Ouguela fora atacada, mas o exército espanhol não levara a melhor, conseguindo a vila resistir vitoriosamente. Um episódio semelhante ocorreu em 1644, mas aí os combates foram bem mais ferozes. A população resistiu com bravura, tendo várias lendas nascido na época». In Carlos E. Cruz Luna, História e Declínio de Três Povoações na Fronteira, RV000831, dip-badajoz.es, LXII, 2006.

Cortesia de RV000831/dip-badajoz.es/JDACT

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terça-feira, 27 de setembro de 2022

Igreja da Misericórdia de Olivença. Maria do Rosário Cordeiro Carvalho. «Se a cena central do lado do Evangelho ainda pode ser relacionada com a temática superior, constituindo os camponeses uma alusão aqueles a quem se dirigia o profeta Habacuc…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Com a devida vénia à Doutora Rosário Cordeiro Carvalho

Os painéis do sub-coro e nave

«(…) Os rodapés dos dois painéis da nave obedecem à mesma estrutura. As mísulas dividem-nos em três painéis, os dois das extremidades com a figuração de um pelicano a amamentar as suas crias, numa composição assente sobre um mascarão e flanqueada por dois anjos, encostados à base que é uma grinalda de flores e frutos, sobre volutas e acantos. O do centro do lado do Evangelho exibe uma paisagem, um casario, com torre ameada, duas figuras a trabalhar no campo, e outras junto a um rio. Do lado da Epístola, figura um jardim, com edifícios ao fundo, uma fonte à direita e duas figuras nobres à esquerda, a passear.

Se a cena central do lado do Evangelho ainda pode ser relacionada com a temática superior, constituindo os camponeses uma alusão aqueles a quem se dirigia o profeta Habacuc antes de ser desviado para a cova dos leões, do lado oposto essa ligação torna-se muito mais difícil, apesar da representação em causa ser uma fonte, mas monumental e de aparato. Este género de representações da natureza bucólica referem-se à vida civilizada, à acção do Homem de fé, sendo entendidas como um contraponto à vida selvagem daqueles que não cumprem os preceitos religiosos. Neste caso, surgem enquanto símbolos das próprias obras de misericórdia que podem ser entendidas como instrumentos de acção que, através da ajuda ao próximo, transformam o mundo num lugar melhor. Quanto ao pelicano, ele é entendido como símbolo de Cristo e da misericórdia, pois alimenta os seus filhos com o próprio sangue.

Regressando ao sub-coro, cobrir os nus inspira-se no Génesis, quando Adão e Eva, Cobrir os nus depois do pecado original ficam nus e Deus lhes ofereceu túnicas de peles. A cartela indica esta mesma passagem, ainda que com a referência errada, pois trata-se do versículo 21: FECIT QVO QVE DOMINVS DEVS ADAE ET UXORIAJVS TVNICAS PE LLICEAS ET INDVIT EOS Gen. Cap. 3º O Senhor Deus fez a Adão e à sua mulher túnicas de peles e vestiuos. Numa vasta paisagem, com árvores diversas (até uma muito alta palmeira), arbustos, vales e montanhas ao fundo, e curiosamente, um leão, dois elefantes e dois bois (?),surgem Adão e Eva, cobertos por folhas de figueira, a levantar-se do seu esconderijo atrás de um arbusto. De entre uma nuvem, Deus Pai estende as vestes, que não são de pele de animais, e é Adão quem se estica para as alcançar. Apesar da preocupação com a nudez, é notório um dos seios de Eva. Deus é representado como um homem de barbas, com um raio de luz a envolve-lo, e Adão e Eva são dois estranhos personagens, principalmente Adão, com as costelas demasiado vincadas a sugerir uma magreza absoluta. O pintor parece ter respeitado o texto bíblico, caracterizando o paraíso como a savana, com leões e elefantes. Só as túnicas não parecem ser de peles de animais sacrificados». In Maria do Rosário Cordeiro Carvalho, Igreja da Misericórdia de Olivença, Caso de Estudo, Wikipédia.

Cortesia de wikipedia

JDACT, Maria do Rosário Cordeiro Carvalho, Caso de Estudo, Castelo de Vide, Património, Conhecimento, Olivença, 

A Gruta do Escoural e a visita pública. Expectativas e frustrações no cinquentenário da descoberta- António Carlos Silva. «Teve particular sucesso entre os visitantes da época, a exposição naquele Museu de uma grande placa de calcite proveniente da Gruta do Escoural, mostrando dois esqueletos humanos fossilizados, associados a vasos cerâmicos completos»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Estão amplamente registadas as circunstâncias da descoberta há meio século (1963) de uma cavidade natural na Herdade da Sala, que ficaria conhecida como Gruta do Escoural, topónimo que recebeu da localidade vizinha de Santiago do Escoural (Santos 1964). O seu potencial arqueológico, reconhecido quase de imediato, graças à presença superficial de numerosos vestígios de uma necrópole pré-histórica, gerou grandes expectativas locais e regionais que viram neste achado um prometedor foco de futura atracção turística. Com efeito, à época em que estes eventos ocorreram, assistia-se na região de Évora a um surto de interesse pelos monumentos arqueológicos, promovido e apoiado pela própria Junta Distrital, que os reconhecia como factores potenciadores de turismo e desenvolvimento (Paço 1963). Data dessa mesma década, por exemplo, o apoio da Junta Distrital às investigações na Anta Grande do Zambujeiro, no Castelo do Giraldo ou mesmo no Cromeleque dos Almendres, monumentos que hoje fazem parte das rotas turísticas da região. A descoberta da Gruta do Escoural, largamente noticiada na imprensa regional, foi desde logo considerada por muitos, como uma nova atracção turística da maior relevância. Não admira pois que, interrompido o indiscriminado e abusivo acesso público verificado nos primeiros dias, iniciados os trabalhos de arqueologia promovidos pelo Museu Etnológico de Belém (actual Museu Nacional de Arqueologia) e noticiadas as primeiras saídas de materiais arqueológicos para Lisboa, a controvérsia se tenha instalado. Em boa parte decorrente de conflitos pessoais e institucionais que nada tinham a ver com esta nova descoberta, esta situação geraria uma inusitada polémica entre o Diretor do Museu, Manuel Heleno, e as autoridades regionais, que tive já oportunidade de relatar circunstanciadamente. Ainda hoje na vila do Escoural, meio século depois destes eventos, persiste alguma incompreensão ou mesmo frustração face ao contraste entre as elevadas expectativas então geradas e os fracos resultados práticos sentidos pela população. Neste trabalho, em que fazemos o balanço do mais recente programa de valorização da Gruta do Escoural promovido pela Direção Regional de Cultura do Alentejo, procuraremos recordar o passivo deste já longo processo, reflectindo sobre os motivos da frustração das expectativas iniciais, e perspectivar, através de propostas concretas, possíveis vias para finalmente colocar este património ao serviço do desenvolvimento local.

A Gruta do Escoural e a visita pública, da descoberta até aos recentes trabalhos de requalificação (1963- 2009)

Farinha Santos, o arqueólogo a quem Manuel Heleno confiou a missão de intervir no Escoural em nome do Museu Etnológico, é parco em informações sobre os trabalhos arqueológicos que dirigiu na Gruta e que se prolongaram nesta primeira fase, por diversas campanhas, pelo menos até 1968. Apoiados financeiramente pela Fundação Gulbenkian, nesses trabalhos participaram essencialmente trabalhadores rurais do Escoural, além de um ou outro técnico do Museu. Uma vez realizado o reconhecimento geral e a topografia da nova cavidade, Farinha Santos iniciou a investigação da vasta necrópole neolítica, com remoção sistemática da espessa placa calcítica que embalava a generalidade das deposições funerárias, seguida da escavação e crivagem dos sedimentos subjacentes, quase sempre até à rocha de base. Os numerosos materiais assim recolhidos, osteológicos, cerâmicos e líticos, eram transferidos para o Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia no final de cada campanha, tendo alguns deles sido rapidamente expostos, talvez como resposta às críticas regionais que não viam com bons olhos, a saída daquele espólio para Lisboa. Teve particular sucesso entre os visitantes da época, a exposição naquele Museu de uma grande placa de calcite proveniente da Gruta do Escoural, mostrando dois esqueletos humanos fossilizados, associados a vasos cerâmicos completos.

Apesar de encerrada ao público durante esta fase da investigação, a Gruta foi regularmente visitada, especialmente após a identificação da arte rupestre paleolítica, por arqueólogos ou outros especialistas, alguns dos quais estrangeiros, situação que ocasionando algum movimento na vila, mais aumentaria a expectativa futura. Após a aposentação de Manuel Heleno, vários indícios apontam para uma melhoria na relação entre Farinha Santos e as entidades locais. Em 1967 este arqueólogo profere uma conferência em Évora sobre a Arte Rupestre do Escoural, colaborando também na preparação da nova sala de arqueologia do Museu Regional. Inaugurada em 1970 no dia internacional dos Museus, incluía uma pequena selecção de materiais provenientes das suas escavações e cedidos pelo Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia. Não temos dados concretos sobre as datas e condições da instalação das primeiras estruturas que permitiriam a visita pública à Gruta do Escoural, mas tudo aponta para que tal se tivesse verificado no final da década de 60, com trabalhos promovidos e financiados pela própria Junta Distrital. Nessa altura foi construída uma escada de alvenaria vencendo o desnível entre o exterior e a grande sala de entrada e instalados estrados de madeira assentes em grossos barrotes de pinho tratado com pês, os quais facilitavam a circulação nas principais galerias, tendo ficado ao serviço até 2009, com pequenas reparações». In António Carlos Silva, A Gruta do Escoural e a visita pública. Expectativas e frustrações no cinquentenário da descoberta, Almansor, Revista de Cultura n.º 1, 3.ª série, 2015, Wikipédia.

Cortesia da Revista Almansor/JDACT

JDACT, Gruta do Escoural, Alentejo, Conhecimento, Cultura, Arqueologia,

domingo, 25 de setembro de 2022

Igreja da Misericórdia de Olivença. Maria do Rosário Cordeiro Carvalho. «Duas crianças e um cão fazem a ligação entre este grupo e o que está junto à água. Atrás, uma figura feminina ajoelhada e uma série de homens e mulheres»

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Com a devida vénia à Doutora Rosário Cordeiro Carvalho

 Os painéis do sub-coro e nave

«(…) Em seu redor, e nas mais variadas posições, encontram-se oito leões, o que respeita o número par habitual, mas é mais do que o normal. Ossos, esqueletos e caveiras pretendem acentuar a voracidade dos animais. Do céu, surge um anjo que transporta o profeta pelos cabelos, enquanto este faz tensão de dar a Daniel uma cabaça fechada e segura no outro braço um cesto. Atrás deste primeiro plano, há mais paisagens, que enquadram o púlpito, observando-se pessoas em movimento. Parecem ser os trabalhadores que ceifavam no campo. Do outro lado do púlpito, o painel continua com uma paisagem e árvores que dominam toda a área. É possível que o púlpito já existisse neste mesmo local pois, apesar de interromper a composição, a cena de Daniel está concentrada numa parte do pano murário, o que se justifica pela presença deste elemento arquitectónico.

Para além da obra de misericórdia que representa, este episódio de Daniel pode ser entendido como um testemunho de protecção divina, como uma prefiguração de Cristo que sai do sepulcro ou da Imaculada Conceição de Maria, pois Habacucu entrou sem quebrar os selos. Do lado oposto, Moisés faz brotar água da rocha, numa imagem que é entendida como dar de beber aos que têm sede. A cartela alude ao exacto momento em que Moisés realizou o milagre: EGRESSAE SUNTI AQUAE LARGI SSIMAE ITA VT POPULUS BIBE RET ET IUMENTA Numer. Cap. X, Moisés levantou a mão e bateu com a sua vara duas vezes no rochedo. Jorrou, então, tanta água que a assembleia e seus rebanhos puderam beber.

Uma vez mais, as referências bíblicas foram mal copiadas, pelo que o capítulo é o 20º e não o 10º.

Ao duvidar de Deus, por não ter o que beber, o povo revoltou-se contra Moisés, que se reuniu com Aarão para tentar resolver a questão. Foi quando surgiu o Senhor que os mandou reunir a assembleia e deu a vara a Moisés com a qual ele fez brotar a água. Num nível superior ao plano onde se encontram dois grupos de ovelhas, a composição é dominada pelo rochedo que toma a forma de um arco. Sob este, dois homens encostados a uma pedra observam outros dois a recolher a água numa bilha. É do lado esquerdo que se concentram as figuras, com Moisés em primeiro plano, com a varinha que faz brotar água do rochedo. Duas crianças e um cão fazem a ligação entre este grupo e o que está junto à água. Atrás, uma figura feminina ajoelhada e uma série de homens e mulheres». In Maria do Rosário Cordeiro Carvalho, Igreja da Misericórdia de Olivença, Caso de Estudo, Wikipédia.

Cortesia de wikipedia

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Camilo Pessanha. Poesia. «Que se evola do teu nome vulgar! Enobreceu-o a quietação do olvido, Ó doce, ingénua, inscrição tumular»

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No Claustro de Celas

«(…) Eis quanto resta do idílio acabado,

Primavera que durou um momento...

Como vão longe as manhãs do convento!

Do alegre conventinho abandonado...


Tudo acabou... Anêmonas, hidrângeas,

Silindras, flores tão nossas amigas!

No claustro agora viçam as ortigas,

Rojam-se cobras pelas velhas lájeas.

 

Sobre a inscrição do teu nome delido!

Que os meus olhos mal podem soletrar,

Cansados... E o aroma fenecido


Que se evola do teu nome vulgar!

Enobreceu-o a quietação do olvido,

Ó doce, ingénua, inscrição tumular».

Soneto de Camilo Pessanha, Coimbra

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sábado, 24 de setembro de 2022

Igreja da Misericórdia de Olivença. Maria do Rosário Cordeiro Carvalho. «Se esta zona foi pintada com pinceladas mais ténues, para dar a ilusão de perspectiva, a cena em primeiro plano ganha maior destaque pelo enquadramento do pórtico, que enquadra a figura de Jesus»

Cortesia de wikipedia e jdact

 Com a devida vénia à Doutora Rosário Cordeiro Carvalho

 Os painéis do sub-coro e nave

«(…) À esquerda encontra-se um grupo de figuras, onde se inclui o paralítico, sentado, que olha para Jesus, cuja mão se eleva num gesto de benção, encontrando-se um homem atrás a observar a cena e um outro à frente, em contraponto. O homem parece estar deitado na sua cama, ou seja, a enxerga de que fala São João. Atrás ergue-se uma espécie de pórtico, formado por duas pilastras a que se adoçam duas esculturas, suportando as primeiras o entablamento, onde assentam as urnas laterais e os querubins que se apoiam no brasão central, sem representação de armas e com uma curiosa cabeça de pato a rematá-lo. É um dos cinco pórticos referidos no Evangelho, onde o paralítico jaze há já trinta e oito anos. Na paisagem fundeira, distingue-se uma piscina, e três figuras junto dela, tal como um anjo. Se esta zona foi pintada com pinceladas mais ténues, para dar a ilusão de perspectiva, a cena em primeiro plano ganha maior destaque pelo enquadramento do pórtico, que enquadra a figura de Jesus.

Na nave, o painel de grandes dimensões ilustra Daniel na cova dos leões, e é uma alusão a dar de comer aos famintos. A cartela assim o corrobora, ainda que o algarismo final do versículo não esteja pintado: FER PRANDIUM QUOD HA BES, INBABILONEM DANIELI QI EST IN LACU LEONU Daniel Cap. 14 v: Porém, um anjo do Senhor disse-lhe: Levas esta refeição à Babilónia, a Daniel que se encontra na cova dos leões. Tal como no painel anterior, o pintor parece obedecer rigorosamente ao relato bíblico. Ao recusar-se a venerar outro Deus que não o Senhor (Bel que Daniel destruiu, e um dragão que Daniel matou sem armas), Daniel acabou por ir parar à cova dos leões, para ser devorado por estes. Mas Deus enviou-lhe o profeta Habacuc, da Judeia, com a refeição destinada aos ceifeiros que trabalhavam no campo. Transportado por um anjo, alimentou Daniel que escapou incólume aos sete leões, ganhando assim o respeito do Rei, que uma semana depois esperava encontra-lo morto. Num cenário natural, mas com grutas construídas e cavernas, em arcos de volta perfeita, Daniel, enleado nas suas vestes e numa posição estranha, com a perna muito cruzada sobre a outra, estende as mãos para cima, para aceitar a comida do profeta». In Maria do Rosário Cordeiro Carvalho, Igreja da Misericórdia de Olivença, Caso de Estudo, Wikipédia.

Cortesia de wikipedia

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sexta-feira, 23 de setembro de 2022

O Sem Pavor. António Costa Neves. «Assim de repente e a frio, a ideia parece-me boa. Alguns monges-cavaleiros pediram-me, há algum tempo, o castelo de Soure para aí se instalarem»

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«(…) Mesmo os criminosos, senhor dom João!?, admirou-se o rei. Quando o arrependimento é sincero. Ora, ora, um criminoso é sempre um criminoso, com bom senso sempre haveremos de alcançar algum equilíbrio, senhor dom Afonso. Muito bem, e que mais? Deixei para o fim a bula papal, Omne datum oPtimum, que aprova a ordem dos Pobres cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão, fundada em 1118 por alguns dos mais proeminentes monges de Cister, e que, em toda a cristandade, já é conhecida por Ordem dos Cavaleiros Templários. E essa Ordem, como mui bem sabeis, senhor dom João Peculiar, já está a ser formada em Portugal, atalhou o cavaleiro Gualdim Pais, que, como os demais, em silêncio, se mantinha atento a tudo o que se dizia. Pois era minha intenção convidar os cavaleiros presentes, a começar por Sua Alteza Real, a aderirem a essa irmandade quanto antes. Até porque, para além da defesa do Santo Sepulcro, também a guerra contra os infiéis, na Hispânia, passa a estar equiparada, para todos os efeitos, a uma cruzada.

Sendo assim, não vejo como não nos poderemos associar nessa santa iniciativa, interveio, de novo, Gualdim Pais, para logo se dirigir ao rei. Se Vossa Majestade não vir inconveniente. Assim de repente e a frio, a ideia parece-me boa. Alguns monges-cavaleiros pediram-me, há algum tempo, o castelo de Soure para aí se instalarem. Pretextavam que minha mãe já lho teria prometido antes. Terei de ver a bula primeiro e discutir a questão com o senhor arcebispo João Peculiar. Pois estas foram as principais decisões religiosas que trago de Latrão. Quanto à questão principal que me fez voltar à Santa Sé, que é o reconhecimento de Vossa Alteza como rei, tudo estava bem encaminhado. Infelizmente, quando cheguei ao Vaticano, depois de terdes assinado o Tratado de Zamora, o papa Inocêncio II tinha acabado de falecer. Mas que infortúnio, senhor dom João!, exclamou, claramente desapontado, o rei.

Ainda por cima, o bispo dom Pedro Helías, de Santiago de Compostela, continua a sua campanha contra nós. Por isso lá fiquei durante todo este tempo, procurando, junto da nova cúria, os apoios necessários. Porém, o pontificado do papa Lúcio II nem durou um ano, o pobre de Deus logo se finou, com uma pedrada, quando combatia o patrício Giordano Pierleone, irmão do antipapa Anacleto II, já em Fevereiro deste ano. E agora, senhor dom João, que papa temos em Roma e que esperanças nos trazeis?, interrogou o rei, profundamente agastado com tantas contrariedades. Pois agora temos o papa Eugénio III, um antigo monge de Cister. Dessa Ordem fundadora dos Templários, a quem autorizámos o Convento de São João de Tarouca!? Parece-me bom augúrio esse tal papa Eugénio III. E vós o que achais, senhor dom João?» In António Costa Neves, O Sem Pavor, Saída de Emergência, 2022, ISBN 978-989-773-439-7.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT

JDACT, António Costa Neves, Literatura, História, Geraldo Sem Pavor,

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

O Sem Pavor. António Costa Neves. «Por mim, só me dou satisfeito quando estivermos instalados no castelo de Silves!, exclamou Lourenço Viegas, conhecido por o Espadeiro…»

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«(…) Sim, como se fosse possível, agora que já estamos em Coimbra, voltarmos de novo a Guimarães. O nosso caminho só pode ser para a frente: Santarém, Lisboa, Alcácer e, quiçá, Évora, e todas aquelas praças que, ao longo do Odiana, defendem Badalhouce!, entusiasmou-se Afonso Henriques, como que antecipando as campanhas que, com os mais próximos, vinha, desde há algum tempo, congeminando. Por mim, só me dou satisfeito quando estivermos instalados no castelo de Silves!, exclamou Lourenço Viegas, conhecido por o Espadeiro, pela sua habilidade no manejo da espada contra a moirama.

Subitamente, todos começaram a falar ao mesmo tempo, alimentados pelo entusiasmo gerado pela lembrança dos últimos sucessos alcançados contra os sarracenos. Bradaram-se hurras, bravos e vivas, gritou-se por Santiago e por Santa Maria, até que o rei resolveu pôr cobro à algazarra. De novo com uma valente punhada na mesa, que a todos fez estremecer. Sempre quero ver-vos, bravos cavaleiros, na hora da verdade. Agora, porém, deixai falar o senhor dom João Peculiar, que desde Zamora não o oiço com a atenção devida. E, mesmo aí, a nossa conversa versou apenas as questões relacionadas com o tratado que Vossa Alteza firmou com vosso primo Afonso VII. Por sinal um passo importante na concretização das nossas pretensões. Mas, se me permitis, disso falaremos mais à frente.

Dom João Peculiar olhou propositadamente o rei, que prontamente lhe correspondeu com um gesto de concordância, e logo prosseguiu: Depois de todos aqueles leigos feitos prelados à força, sem vocação, concubinários e debochados, cujos comportamentos mundanos e licenciosos tanto feriram a Santa Madre Igreja, terem sido despojados das suas investiduras, procedeu-se à aprovação dos trinta cânones propostos, a começar pela homologação da concordata de Vórmia, em que o imperador renunciou à capacidade de investir, pelo báculo e pelo anel, bispos de sua livre escolha. Pecado que aqui não cometemos; quer dizer, todos os bispos que escolhemos foram nomeados de comum acordo. Infelizmente não é isso que consta, Majestade. Não acrediteis em tudo o que ouvis, senhor dom João. Olhai que de Leão sempre me lançam as piores atoardas. E até em Roma e Pisa muitos adversários de peso tenho.

A quem o dizeis, Vossa Alteza. Que desacreditar essa gente tem sido o meu principal trabalho. Mas como eu ia contando, os cânones aprovados foram trinta. Muitos dízem respeito a questões internas como as vestes dos sacerdotes e o casamento dos padres. Dois ou três, porém, reputo da maior importância. E o primeiro dos quais é sobre a usura, o qual convinha ser posto em prática sem demora, porque muitos judeus, valendo-se das suas fortunas, põem e dispõem, a seu bel-prazer, da imposição de juros demasiado altos aos necessitados que deles se socorrem.

E mesmo alguns príncipes e reis, e, até nalguns casos, a própria Igreja se têm visto enredados nessa maldita trama. Na verdade, senhor dom João Peculiar, eu próprio, para fazer face aos custos da guerra aos infiéis, já tinha pensado em utilizar esse recurso. Só não o fiz, ainda, porque as razias que vamos fazendo têm dado para as despesas. Porém, uma empreitada como a tomada de Santarém ou de Lisboa... Deus há de ajudar-nos, como sempre nos ajudou, quando for o momento azado, Majestade. Mas dizia eu, um outro cânone igualmente importante trata da Paz de Deus. Paz de Deus, senhor arcebispo João, o que é isso da Paz de Deus? Doravante fica determinado que os lugares de culto, os conventos e as abadias são locais sagrados, onde os príncipes e os reis não têm jurisdição. Nem sequer para prender os perseguidos que neles busquem protecção». In António Costa Neves, O Sem Pavor, Saída de Emergência, 2022, ISBN 978-989-773-439-7.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT

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O Sem Pavor. António Costa Neves. «E depois, senhor dom João?, impacientou-se, mais uma vez, Afonso Henriques, dando com o punho direito na mesa, e, com isso, fazendo saltar algumas lascas de pão»

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«(…) Agora que já temos as barrigas mais aconchegadas, contai-me, dom João Peculiar, meu bom amigo, que novas trazeis de Latrão, que tanto tempo por lá vos demorastes? Muitas e boas, senhor meu rei. E não só da Santa Madre Igreja, mas também da nossa missão de vos saberdes reconhecido pelo Santo Padre. Pois, começai por estas, que são mais interessantes, e deixai as outras para a ceia, que vem já a seguir. Basta que vos diga, por ora, que o nosso serviço ficou bem encaminhado, mas é forçoso que vos fale, primeiro, das outras para que melhor percebais a delicadeza da nossa missão e os ganhos que já alcançámos.

Por momentos, o rei pareceu enfadar-se. O seu interesse mais premente residia na desejada bula com que o papa haveria de lhe reconhecer o reino e o reinado. Há cinco anos que dom João Peculiar vinha fazendo todos os esforços, em longas e trabalhosas viagens a Pisa, para lhe conseguir a malfadada bula. Afonso Henriques reconhecia-lhe a persistência; por isso susteve a respiração, passou o punho da camisa pela boca, lustrosa da gordura do reco, e assentiu: Pois sim, dom João, falai então, primeiro, do concílio e do que lá se passou. Ora, este II Concílio de Latrão, o décimo da história da igreja... O décimo ou o décimo primeiro, senhor dom João?, interrompeu bruscamente, depois de um prolongado arroto e entre duas dentadas, dom Teodoro. Décimo, dom Teodoro. Sabeis bem que aquele Latrocínio de Efeso, convocado pelo imperador Teodósio II de Constantinopla, não é reconhecido pela verdadeira Igreja de Roma.

Sim, sim, mas prossegui, senhor dom João, logo atalhou o rei, pondo ordem nas prioridades. Como sabeis, estava em causa o grande diferendo que opunha o nosso papa Inocêncio II ao cardeal Pierleone, que, à socapa, se tinha feito eleger como Anacleto II. E sendo este filho de um banqueiro pontifício e apoiado pelas principais famílias da nobreza, com excepção dos Frangipani, desde logo ocupou o Vaticano, enquanto o nosso venerando papa Inocêncio teve de ficar em Pisa. Aprouve Deus que Pierleone, que a terra lhe seja leve, se finou a 25 de Janeiro de 1138. Então, o nosso querido papa Inocêncio II resolveu convocar, para Abril de 1139, o maior concílio ecuménico que a cristandade já presenciou. Olhai que mais de mil prelados de todas as partes do mundo cristão a ele acorreram, numa clara demonstração da vitalidade da nossa Igreja e de incontestável apoio ao múnus do nosso supremo bispo.

E depois, senhor dom João?, impacientou-se, mais uma vez, Afonso Henriques, dando com o punho direito na mesa, e, com isso, fazendo saltar algumas lascas de pão. Pois, foi uma vitória concludente, porque todos os que tinham sido nomeados pelo usurpador, bispos, arcebispos e abades, foram obrigados a depor o pálio, o anel e o báculo. Depois o concílio ocupou-se daqueles heréticos, como Arnaldo de Bréscia, e todos os espirituais que advogam os ideais de pobreza, de ascetismo e de despojamento. Enfim, o regresso à pureza original, como se fosse possível o mundo andar para trás. Gente lerda, senhor dom João, interrompeu o senhor Gonçalo Mendes Maia, que permanecera atento e, até então, calado». In António Costa Neves, O Sem Pavor, Saída de Emergência, 2022, ISBN 978-989-773-439-7.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT

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terça-feira, 20 de setembro de 2022

O Sem Pavor. António Costa Neves. «Dom Afonso Henriques, a quem o povo começava a habituar-se a tratar por rei, tinha sido coroado, dois anos antes, na velha Sé de Coimbra, ainda em obras»

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«A grande mesa de carvalho, que o Espadeiro tinha trazido de Tarouca, estendia-se ao longo da nave. Nela cabiam, com largueza, vinte convivas. Porém, no paço da Almedina, naquele fim de tarde de Agosto de 1145, não eram mais de dez, entre prelados e cavaleiros. Leitões da Bairrada, enchidos de Lafões e queijos de Seia enfeitavam a mesa, a que os canjirões de vinho do Dão e o pão quente, acabado de cozer, emprestavam um colorido e um aroma que casavam bem com aquelas iguarias próprias da mesa de um rei. O salão de armas da alcáçova do paço real era robusto e arejado. A nave alta, que a colunata de cantaria sustentava, abria-se, do lado norte, em duas amplas janelas para o pátio interior, onde, no meio de um delicado jardim, um fontanário de granito borbulhava uma torrente contínua para um tanque onde nadavam alguns peixes coloridos. Era, porém, no lado sul, onde a colunata se projectava em forma de ferradura, que a vista era mais bela, alongando-se pelo arrabalde até ao Mondego, aos férteis campos de semeadura e aos montes fronteiros pejados de um arvoredo denso e refrescante.

Dom Afonso Henriques, a quem o povo começava a habituar-se a tratar por rei, tinha sido coroado, dois anos antes, na velha Sé de Coimbra, ainda em obras. Coroação sem presença do povo, mas afiançada pela clerezia que o rodeava e apoiava, assente nas Cortes de Lamego, onde cavaleiros e prelados de todo o território portucalense se tinham reunido, em data que ninguém sabia. Falava-se no grito do Almacave como se todos o tivessem ouvido, mas era duvidoso que algum vilão de Coimbra conhecesse Lamego e, muito menos, a Igreja de Santa Maria do Almacave, onde os mais informados juravam, a pés juntos, que as Cortes se tinham reunido, em data incerta e variada, entre 1139 e 1143, autenticadas pelo ouvir dizer e segundo a criatividade e a boa-fé de cada um.

No topo da mesa, numa cadeira de espaldas, o rei, de barbas e cabelos longos, como então se usava, na plenitude dos seus recentes 36 anos, dominava a assembleia. Os olhos eram profundos e as sobrancelhas abundantes, o riso e os gestos, com que amiúde pontuava a conversa, eram troantes e vigorosos. À sua direita, dom João Peculiar, desde há sete anos arcebispo de Braga e primaz das Espanhas, a tudo correspondia com acenos brandos e sorrisos seráficos. Do lado esquerdo, o bispo de Coimbra, dom Teodoro, calado e beatificado, vermelhusco do vinho que não largava, comia como um alarve, de boca aberta e pingo seboso a cair-lhe do canto da boca. Sete cavaleiros compunham o resto da mesa: Gonçalo Mendes Maia, de cabelos já a encanecer, um pouco recuados na testa, esfarripados e ralos; Lourenço Viegas, o Espadeiro, garboso e vivaz, um dos filhos mais velhos de Egas Moniz; seu irmão Mem Moniz, bem mais moço; o alferes-mor Pero Pais Maia, filho de Gonçalo Mendes; Gualdim Pais e Martim Moniz, cavaleiros da hoste real; e Gonçalo Sousa, o Bom, um cavaleiro de Ribadouro, de quem o rei muito se agradava. Completavam o quadro, junto às janelas viradas a Sul, dois enormes cães de pelo negro e farto, como os da serra da Estrela, que comiam, em silêncio, os ossos de leitão que lhes iam atirando». In António Costa Neves, O Sem Pavor, Saída de Emergência, 2022, ISBN 978-989-773-439-7.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT

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domingo, 18 de setembro de 2022

Cruzadas na Idade Média. Fátima Regina Fernandes. «Em 1054, havia ocorrido o Cisma entre a Cristandade latina e a Cristandade grega. Uma divisão quase formal entre os ritos praticados no Ocidente e aqueles praticados nos limites do Império Bizantino»

Cortesia de wikipedia e jdact

Contexto gerador

«(…) O papa Gregório VII, por exemplo, em 1075, propõe uma reforma interna da Igreja, começando por combater os desvios éticos do clero e as intervenções dos laicos nos assumas da Igreja. Tais propostas confrontam directamente com as pretensões de supremacia do Sacro Império Romano Germânico, onde cabia ao imperador investir os bispos, e reflectia uma questão maior, a indefinição de esferas de competência dos poderes temporais e espirituais. O papa Gelásio, em fins do século V, usa uma metáfora para ilustrar essa disputa, a doutrina dos dois gládios ou espadas, o espiritual e o temporal, que por essência representariam as duas naturezas de poder. Os teóricos medievais patrocinados por cada um dos gládios buscariam, durame toda a Idade Média, estabelecer a preeminência de um sobre o outro. Os teóricos que defendem a supremacia do pontífice construirão uma supremacia teórica da Igreja sobre as outras autoridades laicas e os papas, por meio de acções concretas, tentariam tornar essas ideias realidade. A forma mais acabada dessa proposta é a Teocracia Papal, que seria a prerrogativa dos papas em assumas espirituais e também nos terrenos, pois eles seriam os tutores da Cristandade. Princípios de subordinação dos poderes temporais àqueles que presidem a Cristandade, que se justificam à época devido à inquestionável supremacia intelectual do alto clero.

Em 1054, havia ocorrido o Cisma entre a Cristandade latina e a Cristandade grega. Uma divisão quase formal entre os ritos praticados no Ocidente e aqueles praticados nos limites do Império Bizantino. O pedido de auxílio de Bizâncio contra os turcos invasores seria, mais tarde, uma oportunidade de impor a supremacia ocidental ao imperador bizantino e ao patriarca de Constantinopla. O imperador bizantino praticava em seus territórios o césar-papismo, ou seja, a subordinação à sua autoridade das prerrogativas dos patriarcas. Assim, o papa de Roma, ao desempenhar o papel daquele que iria convocar, em 1095, a Cristandade latina para socorrer a Cristandade grega, deflagrando o início das Cruzadas, estaria arrogando-se como senhor de toda a Cristandade e inclusive do Império Bizantino.

A Expansão da Cristandade

Esse é o contexto em que se desenvolve o processo de surgimento das Cruzadas. Um dos tantos motivos desse movimento tem a ver com uma necessidade imensa de expansão das fronteiras da Cristandade, movimento que se faria em várias frentes. Ao norte a expansão teria o carácter de um movimento de colonização e cristianização das regiões correspondentes à Polónia, Hungria e às regiões eslavas, chamado de Drang Nach Osten, que se inicia no século X, entre 966 e o ano 1000. Com a cruz levava-se o arado, e esses férteis territórios ampliariam as possibilidades de alimentar uma população em crescimento. Os reinos do Báltico seriam igualmente cristianizados através de acordos, ampliando o campo de hegemonia pontifícia. É interessante observarmos que os normandos, povos invasores da Europa Ocidental, vindos do norte, no século X, participam como colaboradores activos desse processo. Eles se estabelecem na região da Normandia em 911 de onde se expandem em duas frentes, uma para a Inglaterra e outra para o sul da Itália. Em 1066, o duque da Normandia, Guilherme, o Conquistador, ao derrotar os saxões na Batalha de Hastings, funda o reino da Inglaterra. Enquanto isso, partindo da mesma Normandia, os Hauteville, outra dinastia normanda, em 1038, estabelecem-se no sul da Itália, região dominada em parte pelos bizantinos e em parte pelos muçulmanos. A presença normanda na Itália incomoda igualmente o papa Leão IX, que conclama o imperador bizantino para ajudá-lo a combatê-los». In Fátima Regina Fernandes, Cruzadas na Idade Média, 2006, Histórias das Guerras, Editora Contexto, 2006, ISBN 857-244-317-7.

Cortesia de EContexto/JDACT

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sábado, 17 de setembro de 2022

Cruzadas na Idade Média. Fátima Regina Fernandes. «O Mediterrâneo foi o berço da civilização clássica e, durante a Idade Média, palco de constantes influências culturais, germânicas, nórdicas, judaicas, bizantinas e árabes…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«As Cruzadas foram um movimento gerado no Ocidente que resultou num longo enfrentamento militar desenrolado nos limites da Cristandade, especialmente nas regiões da Síria e Palestina, entre os séculos XI e XIII, e na Península Ibérica, entre os séculos VIII e XV. As guerras ocorridas nas regiões da actual Palestina e Israel foram chamadas de Cruzadas do Oriente e justificavam-se pela necessidade de os cristãos reconquistarem a Terra Santa. Os conflitos na Península Ibérica, onde os territórios anteriormente em posse dos cristãos e conquistados pelos muçulmanos, resultaram no que ficou conhecido como Reconquista cristã. Quais as razões que moveram milhares de pessoas de várias escalões sociais até essas regiões distantes? O que de facto buscavam? Em busca de respostas, vamos observar as Cruzadas dentro do seu contexto original. Trataremos também de seu legado para as regiões em que se desenrolaram os conflitos e para o Ocidente como um todo, ou seja, verificaremos como as Cruzadas mudaram a História.

Contexto gerador

O Mediterrâneo foi o berço da civilização clássica e, durante a Idade Média, palco de constantes influências culturais, germânicas, nórdicas, judaicas, bizantinas e árabes que gerariam novas realidades institucionais. A sociedade que se desenvolveu na região era, portanto, fruto de uma encruzilhada de influências culturais e religiosas que, apesar dos conflitos e desencontros que obviamente também existiam, acabaram por gerar expectativas e iniciativas comuns, que se reflectiram com densidade nas Cruzadas. A pacificação das migrações germânicas no século VI sucede a chegada de nórdicos, húngaros e sarracenos nos séculos IX e X, o que constitui outra fonte de agitação. Segue-se um contexto de pacificação relativa e expansão demográfica, económica e social potencializada por uma estabilidade climática que proporciona estações do ano melhor definidas e consequente aumento da produtividade das colheitas. Processo que se generaliza pelo Ocidente europeu promovendo um aumento demográfico, mais braços para o cultivo e mais homens para alimentar e disponíveis para lutar.

Nesse século XI, vigoram, ainda, esquemas teóricos explicativos da ordenação da sociedade como o esquema tri-funcional, no qual o clero, a nobreza e o povo dividiam funções sociais complementares: o clero rezaria, o povo trabalharia e os nobres lutariam por todos. Nesse esquema, o que justificava a nobreza era sua função militar e defensiva, a qual só poderia ser colocada em prática num contexto de guerra. Ora, vivia-se um período de relativa estabilidade após o estabelecimento dos povos da última vaga de invasões, e essa ociosidade dos nobres era prejudicial aos poderes políticos que os sustentavam, as monarquias nascentes: os nobres cobravam dos reis acções militares que justificassem contínuas doações de bens e cargos, causavam agitação interna e criavam uma pressão insustentável dentro dos limites da Cristandade.

É dessa época também a cristalização da ideia de Cristandade, um espaço amplo que envolvia as margens do Mediterrâneo e incluía povos de várias etnias, dialectos, ritos e traços culturais distintos. No mundo clássico, o critério que unificava os povos submetidos ao Império Romano era ser cidadão; depois do século IV, esse critério foi substituído pelo ser cristão. Esse continha um princípio de unidade mais amplo, pois ultrapassava os limites étnicos; qualquer pessoa, desde que baptizada e convertida, era incluída nessa mesma categoria. A Cristandade seria, portanto, o espaço onde viviam os cristãos. Essa é, em princípio, apenas uma ideia aceita e reproduzida nos esquemas teóricos dos pensadores medievais, mas que vai fortalecer-se a partir do século XI, devido às acções dos pontífices que vão afirmar-se perante os poderes temporais já constituídos, imperadores e reis». In Fátima Regina Fernandes, Cruzadas na Idade Média, 2006, Histórias das Guerras, Editora Contexto, 2006, ISBN 857-244-317-7.

Cortesia de EContexto/JDACT

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quarta-feira, 14 de setembro de 2022

O Sebastianismo. História Sumária. José Van Den Besselaar. « Os sebastianistas ortodoxos, interpretando (erradamente) a palavra ápice no sentido de sílaba, viam na profecia uma clara alusão ao nome de dom Sebastião…»

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O messianismo cristão

«(…) António Vieira gaba-se diversas vezes de possuir um livro joaquimista a que dava o nome de Rusticano e que foi publicado em Veneza no ano de 1516, mas também este livro não passa de uma compilação de profecias tardias e, apesar de tantas vezes referido por Vieira, pouco lhe influenciou o pensamento. Há três profecias da escola joaquimista que se encontram em muitos cartapácios portugueses e foram frequentemente comentados pelos tratadistas. A primeira é a frase: cujus nomen quinque apicibus scriptum est, isto é: cujo nome se escreve com cinco ápices». Foi tirada de uma profecia atribuída à Sibila Eritreia, mas, na realidade, data dos meados do século XIII, e, no seu contexto original, o passo aplicava-se à pessoa do imperador Isaac Angelos de Bizâncio (m. 1204). Os sebastianistas ortodoxos, interpretando (erradamente) a palavra ápice no sentido de sílaba, viam na profecia uma clara alusão ao nome de dom Sebastião, cujo nome em Latim se compõe de cinco sílabas: Se-bas-ti-a-nus. Mas Vieira, que em dada altura defendia a tese de ser João IV o Encoberto, explicava o termo ápice como pontinho que se põe sobre o i e via a profecia cumprida na grafia ioannes iiii.

A segunda profecia é o opúsculo apócrifo Vaticínios sobre os Papas, uma parte do qual data da primeira década do século XIV, e outra de cerca de 1355. Apesar de muito heterogéneas, as duas partes aparecem unidas desde o fim do século XIV. Fragmentos destas profecias entraram no Jardim Ameno, e o texto integral, com a tradução portuguesa, no Catálogo das Profecias. E, finalmente, é muitas vezes citada uma frase tirada do chamado Oráculo Angélico, composto no fim do século XIII. Este oráculo teria sido oferecido por um anjo a São Cirilo, um dos primeiros padres-gerais o Carmo, que enviou o texto obscuro ao abade Joaquim, com o pedido de o esclarecer com algumas glosas. Em diversos cartapácios a frase em questão apresenta a forma seguinte:

No tempo de 1554 nascerá o Sol, e estará eclipsado e escondido por algum tempo, e será lastimado com o aguilhão de desprezo numa pequena cova de três ou quatro repartimentos, cercado de grandes grades. Guardá-lo-ão escorpiões, e depois senhoreará o Mundo.

O texto é um arranjo feito de alguns grupos de palavras que se acham espalhadas pelos capítulos I e II do Oráculo Angélico e se referem à luta por Nápoles entre a Casa de Anjou e a de Hohenstaufen. O arranjo mostra como os sebastianistas pouco se incomodavam com a origem e o contexto das suas profecias: perfilhavam-nas e modificavam-nas mudaram em: no tempo de 1554, apropriando-as à sua causa. Mas temos razões para acreditar que eles não foram os primeiros violentadores de textos proféticos. Quem estiver a par deste género literário deve saber que essas deturpações já tinham sido praticadas em outros países da Europa, muito tempo antes de nascer o sebastianismo.

As Trovas do Bandarra

A vida do Bandarra

Quase tudo o que se sabe seguramente da vida de Gonçalo Anes Bandarra consta do seu processo inquisitorial, publicado por Teófilo Braga na segunda metade do século passado. Deve ter nascido por volta de 1500 na vila de Trancoso, onde viveu toda a sua vida, exercendo o ofício de sapateiro. Antes da publicação do seu processo, julgava-se que Bandarra foi sempre pobre e de origem muito modesta. Mas na sua declaração ao Tribunal lemos que fora rico e abastado, mas que queria mais sua pobreza em dizer a verdade e o que cumpria à sua consciência, que não dizer outra cousa. Também se julgava que o sapateiro não sabia ler nem escrever, mas que costumava ditar as suas profecias ao padre Gabriel João, o qual seria seu amanuense, tal como o fora Baruch do profeta Jeremias. Hoje sabe-se que ele não era analfabeto. Mantinha correspondência com várias pessoas do Reino, entre as quais se contavam figuras de destaque, tal como o Doutor Francisco Mendes, médico do cardeal-infante Afonso. Lia e relia a Brívia em linguagem, a Bíblia em vernáculo, sem dúvida um texto escrito à mão, que tomara emprestado a um certo João Gomes Gião e guardara uns oito anos em casa». In José Van den Besselaar, O Sebastianismo História Sumária, Instituto Camões, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Biblioteca Breve /Volume 110, Livraria Bertrand, 1987.

Cortesia de CV Camões/JDACT

D. Sebastião, JDACT, José Basselaar, Cultura, História, José Blanc Portugal, José Augusto França,

domingo, 11 de setembro de 2022

A Geração de 70. Uma Revolução Cultural e Literária. Álvaro Manuel Machado. «A Geração de 70 veio arrancar dessa modorra de degenerescência romântica não só a literatura portuguesa mas sobretudo, de uma maneira geral, a cultura portuguesa»

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Tragédia. Ironia. Sátira

«(…) Ora, a chamada Geração de 70, a de Antero, que foi também a de Eça de Queirós, a de Oliveira Martins e, a um nível culturalmente e esteticamente inferior, a de Ramalho Ortigão e alguns outros, sentiu-se atraída por essa pretensa aceleração, essa vertigem, esse totalitarismo da história de que fala Octávio Paz. Só que, como é óbvio, essa vertigem e esse totalitarismo se manifestaram de diferentes maneiras, consoante a formação cultural e o próprio temperamento criador de cada um.

Assim, em Antero de Quental tudo é tragédia. Tragédia estritamente pessoal (apesar das suas implicações colectivas) que o conduziu ao suicídio como a um fim inevitável, tornado inevitável pela própria lógica do mecanismo das ideias. Da mesma maneira, em Oliveira Martins o trágico predomina, um trágico inseparável da sua ideia da decadência histórica de Portugal. Inseparável, paralelamente, do que no essencial é a sua teoria da história, resumida na frase, extremamente ambígua: um homem é um momento. Em Eça de Queirós, pelo contrário, tudo tomou a forma de jonglerie irónica. Lâmina de dois gumes, a ironia não deixa, porém, em Eça como noutros (raros na literatura portuguesa), de ser comédia e tragédia ao mesmo tempo: ela desencadeia o riso para logo fazer dele um esgar. É que, como diz Vladimir Jankelevitch, l’ironie regarde ailleurs, ela pertence ao domínio da consciência inquieta e multiforme. Já em Ramalho Ortigão, destituído de grande capacidade criadora e com igualmente menor capacidade de percepção do que no homem e do que do homem perante a história é mais complexo, tudo se tornou sátira, mera caricatura. Tudo descambou nesse gargalhar a que muito frequentemente se reduz o pretenso espírito hiper-crítico do português. Mas o riso ramalhal não deixa de ter o seu lugar importante no conjunto da cultura portuguesa oitocentista. Como diz o próprio Eça, que a bem dizer nunca ria mas, como já vimos, sorria ironicamente, fazendo-o com funda e finíssima amargura, nessa Lisboa fin-de-siècle o que ainda tornava a vida tolerável era de vez em quando uma boa risada. (...) Só nós aqui, neste canto do mundo bárbaro, conservamos ainda esse dom supremo, essa coisa bendita e consoladora, a barrigada de riso!

Romantismo e revolução cultural

Seja como for, seja qual for o nível da capacidade crítica e da capacidade inventiva pessoais, o certo é que a chamada Geração de 70 representa, em Portugal, uma profunda revolução cultural. Até então, tinham-se criado hábitos de um romantismo demasiadamente limitado aos problemas (e também às obsessões) nacionais. Se, apesar das suas limitações, que são justamente as que se ligam a um certo nacionalismo cultural excessivo, o nosso primeiro romantismo, o da Geração de 1830, trouxe com Garret e Herculano qualquer coisa de novo e de perdurável, a verdade é que, por meados do século XIX, o que restava desse romantismo pouco era. À parte o vulto tutelar de Camilo, que no entanto se fica por um balzaquismo regionalista lusitano, um balzaquismo sem Balzac, o período que sucede ao primeiro romantismo português e que vai de cerca de 1850 a cerca de 1870, não é fértil em criações verdadeiramente originais. Sobretudo, rareiam os contactos com o estrangeiro a nível das grandes criações de ideias.

A Regeneração do marechal Saldanha (1851) é um período de modorra confortável para esses escritores que sucedem a Garrett e a Herculano, esses escritores que, querendo escapar à monótona ordem burguesa conservadora que impera na Europa após o fracasso das insurreições de 1848, se refugiam no mais fácil sentimentalismo bucólico ou fatalista ou então no mais provinciano culto, quer da literatura filosófica de importação, quer do panfleto literário. Para evocar alguns exemplos, citem-se os dramalhões históricos ou os chamados dramas da actualidade de um José Silva Mendes Leal (1818-1886), o lirismo vagamente à la manière de Lamartine de um Bulhão Pato (1829-1912) ou de um António Augusto Soares Passos (1826-1860).

A Geração de 70 veio arrancar dessa modorra de degenerescência romântica não só a literatura portuguesa mas sobretudo, de uma maneira geral, a cultura portuguesa». In Álvaro Manuel Machado, A Geração de 70 - Uma Revolução Cultural e Literária, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, Instituto Camões, Livraria Bertrand, 1986.

Cortesia do Instituto Camões/JDACT

JDACT, Instituto Camões, Antero de Quental, Álvaro Manuel Machado, Conhecimento,

A Geração de 70. Uma Revolução Cultural e Literária. Álvaro Manuel Machado. «… Octávio Paz apresenta o exemplo da revolução mexicana, que nos leva igualmente a duvidar da pretensa aceleração da história, pois no México actual estamos mais próximos da época do Vice-Rei…»

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Revolução e Memória

«(…) Assim, no que diz respeito à nossa história, em especial à nossa história cultural e política, a posição dos intelectuais portugueses da geração de 1830, a de Alexandre Herculano, e a da geração de 1870, a de Antero de Quental, relativamente à teoria e à prática da revolução difere, mantendo no entanto pontos comuns essenciais em que, para lá da formação filosófica e política universalista que caracterizou ambas, se denotam elementos específicos da história de Portugal. De facto, para citar apenas Herculano e Antero, ambos participam activamente em movimentos revolucionários com ideias e com acções e ambos acabam por se retirar totalmente do palco da história, profundamente decepcionados. Ambos recorrem ao esquecimento, Herculano através do seu exílio voluntário de Vale de Lobos, Antero através do exílio igualmente voluntário e definitivo do suicídio. Ambos, embora a níveis muito diferentes de psiquismo pessoal, se recusam a aceitar a, digamos, memória artificial, mecânica, de uma revolução que nunca chegou a sê-lo inteiramente, a memória tornada praxis falsamente revolucionária. Ao Antero apolíneo e hegeliano do Hino à Razão opõe-se o Antero nocturno e, afinal, sobretudo baudelairiano (apesar da influência aparentemente predominante de Heine) das Primaveras românticas e em especial destes versos:

Este coração cansado!

O que ele quer é dormir

...O que ele quer é deitar-se

No leito do esquecimento.

(Ao luar)

No fundo, o que esquece Antero? Esquece a própria memória e a sua função historicamente mediadora. Esquece a própria memória, e nisto o seu esquecimento difere essencialmente do de Herculano, o qual, tentando esquecer a decepcionante realidade da evolução política, social e económica da Revolução Liberal de 1820, que acabou no Fontismo, nem por isso renega o valor do movimento revolucionário em si como recuperação de uma memória histórica que sucedesse ao esquecimento momentâneo do passado e à visão utópica do futuro. Daí a sua idealização propriamente romântica do Portugal pré-constitucional até 1385. Antero, pelo contrário, como autêntico revolucionário que foi da Geração de 70 e, portanto, mentor de uma utopia revolucionária mais próxima do século XX, intimamente ligada ao niilismo, esquece a própria memória, nega-a na medida em que nega o Estado como memória da nação, a Igreja como memória da alma, o partido como memória de classe.

Este esquecimento, anarquista no sentido mais absoluto do termo, que é no caso de Antero o de uma anarquia hegeliana do espírito, envolvido momentaneamente na aceleração da história, não pode conduzir senão à morte. Essa morte que está na raíz de uma ilusória aceleração da história. Como diz Octávio Paz:

A aceleração do tempo histórico não passa de uma ilusão. As mudanças e as convulsões que, ora nos angustiam ora nos deslumbram, são talvez muito menos profundas e decisivas do que nós supomos.

E, depois de citar a União Soviética como exemplo típico de uma apenas aparente ruptura entre passado e futuro, verificando-se actualmente a predominância nítida de elementos tradicionais da antiga Rússia (um mundo burocrático e um terror policial semelhantes ao do czarismo), Octávio Paz apresenta o exemplo da revolução mexicana, que nos leva igualmente a duvidar da pretensa aceleração da história, pois no México actual estamos mais próximos da época do Vice-Rei e mesmo do mundo pré-hispânico do que da época da Revolução. In Álvaro Manuel Machado, A Geração de 70 - Uma Revolução Cultural e Literária, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, Instituto Camões, Livraria Bertrand, 1986.

Cortesia do Instituto Camões/JDACT

JDACT, Instituto Camões, Antero de Quental, Álvaro Manuel Machado, Conhecimento,