sábado, 30 de abril de 2022

A Roda do Tempo. O Olho do Mundo. Robert Jordan. «Tam estalou a língua, incitando Bela a voltar a andar, e eles retomaram sua jornada, o homem mais velho caminhando como se nada fora do normal tivesse acontecido e nada fora do normal pudesse acontecer»

Cortesia de wikipedia e jdact

Uma Estrada Deserta

«(…) Com a testa franzida, ele espiou a floresta ao redor; parecia diferente do que sempre fora. Praticamente desde que aprendera a andar, ele corria solto por ali. As lagoas e riachos da Floresta das Águas, além das últimas fazendas a leste de Campo de Emond, eram onde ele havia aprendido a nadar. Havia explorado as Colinas de Areia, o que muita gente nos Dois Rios dizia que dava azar, e certa vez chegara ao sopé das Montanhas da Névoa, ele e seus amigos mais próximos, Mat Cauthon e Perrin Aybara. Isso era muito mais longe do que a maioria das pessoas de Campo de Emond jamais tinha ido; para eles, uma jornada até a aldeia seguinte, subindo até a Colina da Vigília ou descendo até a Trilha de Deven, era um grande acontecimento. De todos aqueles lugares, não houvera um só que o fizesse sentir medo. Naquele dia, porém, a Floresta do Oeste não era mais o lugar do qual ele se lembrava. Um homem capaz de desaparecer tão de repente podia reaparecer da mesma maneira, talvez até mesmo ao lado deles.

Não, pai, não há necessidade. Quando Tam parou, surpreso, Rand encobriu o rubor puxando o capuz do seu manto. O senhor provavelmente tem razão. Não há necessidade de sair procurando o que não existe, não quando podemos aproveitar esse tempo para seguir até a aldeia e sair deste vento. Um cachimbo não seria nada mau, disse Tam devagar, assim como uma caneca de cerveja num lugar quente. Subitamente ele abriu um sorriso. E imagino que você esteja ansioso para ver Egwene. Rand conseguiu dar um sorriso fraco. De todas as coisas em que ele poderia querer pensar naquele instante, a filha do prefeito estava lá no fim da lista. Ele não precisava de mais confusão. Durante o último ano ela o vinha deixando cada vez mais nervoso sempre que estavam juntos. Pior, ela nem sequer parecia se dar conta disso. Não, ele certamente não queria somar Egwene a seus pensamentos. Estava torcendo para que o pai não tivesse notado que ele estava com medo quando Tam falou: Lembre-se da chama, rapaz, e do vazio. Essa era uma coisa estranha que Tam lhe havia ensinado. Concentrar-se numa única chama e alimentá-la com todas as suas paixões, medo, ódio, raiva, até sua mente ficar vazia. Torne-se um com o vazio, dizia Tam, e poderá fazer qualquer coisa. Ninguém mais em Campo de Emond falava assim. Mas Tam vencia o campeonato de arco e flecha no Bel Tine todo ano com sua chama e seu vazio. Rand achava que esse ano poderia obter uma boa colocação também, se conseguisse se ater ao vazio. O facto de Tam tocar no assunto naquele momento significava que havia notado, mas não disse mais nada a respeito.

Tam estalou a língua, incitando Bela a voltar a andar, e eles retomaram sua jornada, o homem mais velho caminhando como se nada fora do normal tivesse acontecido e nada fora do normal pudesse acontecer. Rand queria poder imitá-lo. Tentou criar o vazio na sua mente, mas ele lhe escapava. A todo o instante, imagens do cavaleiro de manto negro ficavam se formando na sua cabeça. Ele queria acreditar que Tam tinha razão, que o cavaleiro havia sido apenas imaginação, mas lembrava-se do sentimento de ódio muito bem. Alguém tinha estado ali. E esse alguém havia-lhe desejado mal. Ele não parou de olhar para trás até os telhados pontudos e altos de Campo de Emond começarem a cercá-lo. A aldeia ficava perto da Floresta do Oeste, a mata aos poucos rareando até as últimas árvores se erguerem já entre as casas baixas e sólidas. A terra se inclinava suavemente, descendo na direcção do leste. Embora houvesse trechos de mata, fazendas e campos e pastos demarcados por cercas vivas cobriam a terra como uma colcha de retalhos além da aldeia até à Floresta das Águas e seu emaranhado de riachos e lagoas. A terra que se estendia para oeste era igualmente fértil, e os pastos ali vicejavam quase todos os anos, mas havia apenas um punhado de fazendas na Floresta do Oeste». In Robert Jordan, A Roda do Tempo, O Olho do Mundo, 1990, Editora Intrinseca, 2013, ISBN 978-858-057-362-6.

Cortesia de EIntrinseca/JDACT

JDACT, Literatura, Robert Jordan,

A Roda do Tempo. O Olho do Mundo. Robert Jordan. «Tam franziu a testa para ele por cima do dorso de Bela. Tudo bem com você, rapaz? Um cavaleiro, disse Rand sem fôlego, aprumando-se»

Cortesia de wikipedia e jdact

Uma Estrada Deserta

«(…) Dois barris pequenos do conhaque de maçã de Tam seguiam na carroça sacolejante e oito barris maiores de sidra, levemente forte depois de fermentar ao longo do Inverno. Tam entregava a mesma carga todos os anos à Estalagem Fonte de Vinho, para uso durante o Bel Tine, e afirmara que seria preciso mais do que lobos ou um vento frio para impedi-lo nessa Primavera. Mesmo assim, eles haviam passado semanas sem ir à aldeia. Nem Tam viajava muito naqueles dias. Mas dera a palavra a respeito do conhaque e da sidra, apesar de ter esperado até a véspera do Festival para fazer a entrega. Manter a palavra era algo importante para Tam. Rand estava simplesmente contente por sair da fazenda, quase tão contente quanto pela chegada do Bel Tine. Enquanto Rand vigiava seu lado da estrada, crescia nele a sensação de estar sendo observado. Durante algum tempo tentou ignorá-la. Nada se movia nem fazia qualquer ruído entre as árvores, a não ser o vento. Mas a sensação não apenas persistiu; ela aumentou. Os pelos dos braços se arrepiaram; a pele formigou, como se coçasse por dentro. Irritado, ele mudou o arco de posição para coçar os braços e disse a si mesmo que não deixasse se levar por fantasias. Não havia nada na floresta  no seu lado da estrada, e Tam teria avisado se houvesse alguma coisa do outro. Ele olhou por cima do ombro…, e piscou. A menos de vinte braças atrás deles na estrada uma figura a cavalo, coberta por um manto, os seguia, cavalo e cavaleiro negros, escuros e sombrios.

Foi mais o hábito do que qualquer outra coisa que o fez caminhar de costas ao lado da carroça enquanto olhava. O manto do cavaleiro o cobria até a ponta das botas, o capuz bem puxado à frente de modo a não mostrar nenhuma parte do rosto. Rand pensou vagamente que havia algo de estranho no cavaleiro, mas era a abertura ensombreada do capuz que o fascinava. Ele só conseguia ver traços vagos de um rosto, mas tinha a sensação de que estava olhando bem nos olhos do cavaleiro. E não conseguia desviar o olhar. Sentiu o estômago embrulhar. Só podia ver sombras sob o capuz, mas sentia um ódio tão agudo quanto se pudesse ver um rosto enfurecido, um ódio por todas as coisas vivas. Ódio por ele principalmente, por ele acima de todas as coisas. De repente, uma pedra bateu no seu calcanhar e ele tropeçou, os olhos se desviando da figura negra. Seu arco caiu na estrada, e apenas a mão estendida que agarrou os arreios de Bela evitou que ele se estatelasse de costas no chão. Resfolegando de susto, a égua parou, girando a cabeça para ver o que a havia detido.

Tam franziu a testa para ele por cima do dorso de Bela. Tudo bem com você, rapaz? Um cavaleiro, disse Rand sem fôlego, aprumando-se. Um estranho nos seguindo. Onde?, Tam ergueu a lança de lâmina larga e olhou cautelosamente para trás. Ali atrás na… As palavras de Rand morreram quando ele se virou para apontar. A estrada atrás deles estava deserta. Sem acreditar, ele olhou para a floresta que ladeava a estrada. As árvores de galhos nus não ofereciam esconderijos, mas não havia o menor vestígio do cavalo nem do cavaleiro. Ele deu com o olhar questionador de seu pai. Ele estava ali. Um homem de manto preto, num cavalo preto.

Eu não duvidaria de sua palavra, rapaz, mas para onde ele foi? Não sei. Mas estava ali. Ele pegou o arco e a flecha caídos, verificou apressadamente as aletas antes de recolocar a flecha no encaixe e puxou a corda até a metade antes de deixá-la relaxar. Não havia nada em que mirar. Estava, sim. Tam balançou a cabeça grisalha. Se você diz, rapaz. Vamos. Um cavalo deixa marcas de cascos, mesmo num terreno destes. Ele começou a se encaminhar na direcção da traseira da carroça, o manto drapejando ao vento. Se as encontrarmos, vamos saber com certeza que ele esteve ali. Se não…, bem, dias como estes fazem um homem achar que está vendo coisas. Subitamente Rand percebeu o que havia achado estranho no cavaleiro, além do facto de ele simplesmente estar ali. O vento que o fustigava e a Tam não havia deslocado uma dobra sequer daquele manto negro. Rand sentiu a boca ficar seca de repente. Devia mesmo ter imaginado aquilo. O pai estava certo: era uma manhã do tipo que mexia com a imaginação de um homem. Mas ele não acreditava nessas coisas. No entanto, como poderia dizer ao pai que o homem que aparentemente havia desaparecido em pleno ar vestia um manto intocado pelo vento?» In Robert Jordan, A Roda do Tempo, O Olho do Mundo, 1990, Editora Intrinseca, 2013, ISBN 978-858-057-362-6.

Cortesia de EIntrinseca/JDACT

JDACT, Literatura, Robert Jordan, 

quinta-feira, 28 de abril de 2022

A Herança de Rosa-Cruz. Jorge Durão. «Chegou mesmo a deslocar-se propositadamente a Óbidos para perscrutar na biblioteca e em variados registos da vila pela obra e seu autor. Nada. Nem mesmo recorrendo à actual Internet conseguira…»

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Karlruhe. Alemanha, Dezembro de 1649

«(…) Trancado naquela grande sala, com duas grandes janelas que davam para o jardim do Campo Grande, Carlos Nóbrega volta a ser assolado pelos fragmentos de memórias daquele dia, limpando com um lenço o suor da testa. Assim era há vários anos. De forma involuntária, de vez em quando dava por si a ver a sua mulher naquela agonia de moribunda, ouvindo com uma nitidez quase real o seu grito de pânico imediatamente antes do acidente que a vitimara. Via também os máximos do carro com o qual colidiram frontalmente, e uma lancinante culpa o trespassava como uma afiada e fria espada em todos esses momentos. Abanou a cabeça e afastou temporariamente essas vívidas lembranças. Alguns anos depois do acidente, ganhara coragem e voltara a ligar ao mercador Bernardo Faria, mas o número parecia estar desactivado. Após o necessário espaço temporal para um grande luto, o Historiador pesquisa sobre Lendas e factos de Óbidos, assim como sobre o autor da obra, Pedro José Gonzaga Morgado. Nada. Em todos os documentos e registos consultados, nunca vislumbrara qualquer alusão à obra e ao seu autor. Chegou mesmo a deslocar-se propositadamente a Óbidos para perscrutar na biblioteca e em variados registos da vila pela obra e seu autor. Nada. Nem mesmo recorrendo à actual Internet conseguira o que quer que fosse com esses nomes. Sentado a uma mesa frente a uma das grandes janelas, que lhe providenciava a luz necessária a uma boa leitura, o Historiador retira a larga e castanha fita adesiva da caixa de cartão, abre-a e retira-lhe de dentro os exemplares adquiridos, livros de uma antiga e bela encadernação. História de Óbidos é o primeiro exemplar a ser aberto, puxando o homem de uma pequena pasta e retirando-lhe do âmago um velho bloco de apontamentos e uma caneta, começando a ler o volume como se nada mais existisse na vida. A encomenda fora recebida por volta das 10h00. Quando Carlos Nóbrega toma consciência que tem responsabilidades naquela casa e fecha o livro com um marcador na página onde ficara a leitura, eram 14h10. Fora da sala, o abandono pautava os espaços do edifício. A hora de almoço estendia-se até às 14h30, e o bibliotecário aproveitara para trincar qualquer coisa que levara no saco e para adiantar algum serviço, não vendo a hora de fechar as portas e de se pôr a ler fim de dia e noite fora, continuando as suas compilações de apontamentos.

O Historiador tinha lido em várias fontes algo sobre a chegada de uns alemães à vila de Óbidos, nos inícios de 1650, assim como sobre uma lenda que dizia que esses homens se haviam deslocado para Portugal para esconderem debaixo das pedras da vila uma espécie de tesouro. Carlos Nóbrega sabia que a perseguida sociedade secreta Rosacruz fora fundada junto ao Reno, na Alemanha, assim como sabia que os seus integrantes haviam sido perseguidos pela guarda alemã, mas o manifesto de Rosacruz nunca fora encontrado. Na época, os alquimistas eram considerados hereges, sendo vítimas de eficazes perseguições. O Historiador não conseguia deixar de pensar que os alemães chegados a Portugal seriam membros do topo da hierarquia de Rosacruz, que haviam escolhido o extremo ocidental da actual Europa para selarem na escuridão e protecção do solo a razão das perseguições de que eram vítimas. A lenda dizia que numa noite de Lua cheia os grandes alemães saíram à rua e enfeitiçaram toda a urbe de Óbidos, espalhando pelas ruas e ruelas espíritos inquietos, que se alimentavam das picardias que faziam abater em todos aqueles que por lá passassem, ouvindo as pessoas, principalmente nas noites de luar, pesados e sonoros passos nas pedras, assim como gargalhadas de gozo e regozijo. Carlos Nóbrega começara, já há algum tempo atrás, a esboçar um pequeno questionário sobre a lenda, o qual pretendia aplicar a alguns habitantes das muralhas de Óbidos. O Historiador voltara a mais tarde a pegar na ideia e terminara o questionário, que consistia em duas páginas, uma folha frente e verso, estando, mais que nunca, super motivado para querer perceber, através da análise de conteúdo das folhas, o que as pessoas sabem ou pensam dessa lenda, assim como o que sabem da história da vila onde vivem». In Jorge Durão, A Herança de Rosa-Cruz, O Tesouro Perdido de Óbidos, Edição do Autor, 2013, ISBN 978-989-866-401-3.

Cortesia de JDurão/JDACT

JDACT, Jorge Durão, Óbidos, Literatura,

A Herança de Rosa-Cruz. Jorge Durão. «Senhor Carlos, acho que está com sorte. Tenho aqui um livro antiquíssimo, está datado de 1797. Foi um grande amigo que mo arranjou, disse o homem num sussurro, trabalha no Palácio Nacional de Mafra»

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Karlruhe. Alemanha, Dezembro de 1649

«(…) Há cerca de vinte anos atrás, Carlos Nóbrega tinha conseguido comunicar com um nómada vendedor de antiguidades, que ia estar um dia inteiro num pequeno mercado medieval nas Caldas da Rainha. O Historiador tinha conseguido o seu cartão-de-visita através de um amigo, também fascinado por história e literatura em geral, que lhe houvera referido que o homem tinha sempre umas raridades literárias de se lhes tirar o chapéu. Num telefonema que o Historiador fez para o número iniciado por 02, que o cartão dizia pertencer a Bernardo Faria, ficou a saber que o homem detinha algo que lhe poderia interessar. Sim?... Boa tarde... Boa tarde, rosna uma voz dura do outro lado. É o senhor Bernardo Faria, das antiguidades?..., perscruta o Historiador. O próprio. Estou a falar com?... Carlos Nóbrega, Historiador e um fascinado por raridades da literatura... Nacional...

Já entendo a razão da sua chamada. Onde viu o meu número?! Carlos Nóbrega percebeu uma desconfiança na expressão do homem, talvez algum trauma com as autoridades. Não sou Polícia, esteja à vontade comigo. Foi um grande amigo meu que me facultou o seu cartão-de-visita, diz que lhe comprou umas revistas de mil oitocentos e tal, aqui há tempos, estava o senhor a vender antiguidades numa pequena feira nas imediações do Palácio de Queluz... Isso foi há dois anos... Sim, confirmou o homem, impregnado de uma forte pronúncia nortenha. Dessa forma, estou a ligar-lhe porque o meu amigo me referiu que o senhor tinha mesmo muita coisa interessante, em variedade e quantidade... Sim, sim. É verdade. Fruto também de uma paixão por tudo o que é antigo. Procuro exaustivamente coisas de interesse histórico... Cá para nós, diz o homem num sussurro, fotocopio aquilo que acho verdadeiramente interessante e vendo tudo o que compro ou me dão, tenho que comer, certo?... Claro, claro. Não seriam os originais em si que lhe dariam de comer. Negócio é negócio... Mas diga-me uma coisa, dirige-se Carlos Nóbrega à razão da chamada, tem algo relacionado com a vila de Óbidos ou com a sociedade secreta Rosa-Cruz?..., no deixe-me pensar do homem e no barulho do remexer de coisas que o telefone deixava ouvir, o coração do Historiador acelerou, não vendo o momento de lhe voltar a ouvir a voz.

Senhor Carlos, acho que está com sorte. Tenho aqui um livro antiquíssimo, está datado de 1797. Foi um grande amigo que mo arranjou, disse o homem num sussurro, trabalha no Palácio Nacional de Mafra. Quando andaram lá com obras, alguns dos livros da biblioteca andavam para lá aos pontapés. Pensou em mim, pegou no exemplar, guardou-o, telefonou-me naquele dia e encontrámo-nos na semana seguinte na Ericeira... Qual é o título, senhor Bernardo? Lendas e factos de Óbidos... Autor ou autores? O único nome que vislumbro por aqui é Pedro José Gonzaga Morgado... Nunca ouvi falar! Tenho que pesquisar sobre este nome, o Historiador aponta o nome num bloco de notas.

É um livro grosso, capa dura com incrustações douradas, e está um pouco deteriorado... Quanto é que está a pedir por ele? Seis contos. Parece-me bem, é uma obra do século XVIII, pensa Carlos Nóbrega, não conseguindo conter a excitação que lhe percorria as veias. Onde e quando é que me posso encontrar consigo? O senhor é de onde? Vivo e trabalho em Lisboa. Vou estar amanhã todo o dia numa pequena feira medieval nas Caldas da Rainha, no jardim das termas. Vá até lá. Sim, sim. Estou a pensar nisso. Conto lá estar por volta das dez. Ficou assim marcado o encontro para um sábado do Verão de 93. Carlos Nóbrega foi logo relatar à mulher a conversa que havia tido com o vendedor, dizendo-lhe que iriam no dia seguinte, logo de manhã, até à cidade das Caldas da Rainha, onde já haviam estado uma meia dúzia de vezes. Maria João ficava feliz com a felicidade do marido, não obstante o achar demasiado obcecado com todas aquelas coisas que o moviam, principalmente com aquela ideia de que por baixo dos seus pés se escondiam incontáveis tesouros à espera de serem vislumbrados pela luz. Naquele dia acordaram bem-dispostos, tomaram um bom pequeno-almoço e fizeram-se à estrada. Nada fazia prever que aquela viagem iria terminar de trágica forma pouco depois do Bombarral». In Jorge Durão, A Herança de Rosa-Cruz, O Tesouro Perdido de Óbidos, Edição do Autor, 2013, ISBN 978-989-866-401-3.

Cortesia de JDurão/JDACT

JDACT, Jorge Durão, Óbidos, Literatura, 

O Homem de Constantinopla. José Rodrigues Santos. «É a tua nota. Tiveste dezoito. O petiz venceu o medo do pai e espreitou a classificação. É..., é bom, não é? Com um movimento inesperado, Vahan esbofeteou o rosto do filho»

 

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«(…)

O Homem de Constantinopla

As gotas de chuva desenhavam sucessivos anéis em expansão no espelho sujo das poças de água enlameada, tombando em saraiva sobre as múltiplas crateras que o mau tempo escavara na rua de terra batida. Os habitantes de Trebizonda apressavam-se em busca de refúgio, saltitando de alpendre em alpendre num esconde-esconde aflito para se abrigarem do céu de chumbo que desabava em fúria aterradora. Deixem passar o rapaz mais esperto de Trebizonda!, troou uma voz numa ladainha cantarolada.

Deixem passar o filho do todo-poderoso senhor Sarkisian! O homem que assim trauteava cruzou a rua em passo de corrida, os pés descalços enlodados quase até ao joelho, uma criança minúscula montada sobre os ombros. O pequeno tinha a cabeça envolta num enorme lenço para se proteger da chuva; não se lhe via o rosto, nem tal era preciso. Mesmo que o criado não anunciasse o nome do pai do petiz, todos sabiam bem que aquele era o filho do senhor Vahan Sarkisian, o vendedor de tapetes que, ao que se dizia de ciência certa, fizera amigos na própria corte do sultão. Deixem passar o rapaz mais esperto de Trebizonda!, voltou o criado a gritar, como se aquela fosse a forma mais eficaz de abrir passagem na cortina de chuva e no lamaçal, entre os fiacres, as carroças, as mulas e os transeuntes fugidios que congestionavam a rua. Deixem passar o filho do todo-poderoso senhor Sarkisian!

O mar Negro, habitualmente tranquilo como um lago gigante, agitava-se ao lado da rua, parecia um monstro atormentado. O criado com a criança aos ombros ignorou a enorme massa de água escura que fustigava as rochas em fúria cega e ameaçava invadir a linha de costa e virou à direita, desaguando por fim no destino. Cruzou um portão, entrou a correr num pequeno edifício e só parou no átrio sombrio, no meio de uma pequena multidão de crianças e de alguns adultos que sacudiam ainda a água das roupas. Com um sopro de exaustão, pousou o pequeno corpo no chão; tirou-lhe o lenço da cabeça e inspeccionou-lhe o cabelo. Então, menino?, perguntou ao detectar uma madeixa molhada. Entraram aqui umas gotinhas? O pequerrucho assentiu com a cabeça. Molhei-me. O criado passou os dedos pela madeixa, penteando-a para trás e disfarçando o tufo húmido no meio do cabelo seco. Pronto, já está!, exclamou, como se tivesse miraculosamente resolvido o problema. Agora já pode ir para a aula, menino! Despache-se, porque senão... Uma mão gorda pousou abruptamente sobre o ombro do pequeno, interrompendo as derradeiras recomendações. Ele agora vem comigo, ordenou o vulto que se abeirara deles. E tu, kahveci, também! O kahveci, O homem do café, expressão porque era conhecido o criado, levantou os olhos e, num misto de surpresa e terror, reconheceu o corpo imponente e arredondado do patrão. Senhor!, exclamou, baixando de imediato a cabeça num gesto de submissão. Eu..., sim senhor! Vahan Sarkisian virou as costas e arrastou o filho até à parede onde se encontrava um painel coberto por folhas de papel. As páginas pregadas ao painel apresentavam listas de nomes garatujadas à mão em caracteres arménios com algarismos diante deles. Estás a ver este número aqui?, perguntou Vahan, indicando a linha com o seu indicador anafado. É a tua nota. Tiveste dezoito. O petiz venceu o medo do pai e espreitou a classificação. É..., é bom, não é? Com um movimento inesperado, Vahan esbofeteou o rosto do filho. Não foi a melhor nota!, vociferou, o rosto rubro de fúria súbita. Olha para aqui! Forçou o menino a voltar os olhos humedecidos para o painel com as classificações e apontou para uma outra linha. Estás a ver aqui o filho do Shakhian, o Setrak? Quanto é que ele teve? Dezanove! Dezanove, vês? E o pai dele..., o pai dele não passa de um reles comerciante de fruta! Fitou o pequeno com a expressão severa de um juiz na hora da sentença. Se o Setrak conseguiu, porque não conseguiste tu? Queres humilhar-me perante a cidade toda? Queres cobrir-me de vergonha? Com o rosto incendiado pelo efeito da bofetada e o queixo trémulo como num assomo febril, o menino baixou os olhos, pronto a libertar-se no pranto de quem se sente injustiçado, mas lutou contra as lágrimas que lhe marejavam as pálpebras e ergueu de novo o olhar para fixar teimosamente a atenção embaciada na linha indica da pelo pai. O Setrak tinha de facto conseguido dezanove valores, o que fazia dele o melhor aluno da escola. Era, na verdade, um adversário difícil de bater. Mas, que diabo, o seu dezoito não lhe parecia assim tão mau! Anda cá! Vahan Sarkisian puxou o filho pela orelha, fez sinal ao criado de que o seguisse e cruzou o pátio com passos determinados . Meteu pelo corredor e, chegando diante da porta do director da escola, nem sequer bateu». In José Rodrigues Santos, O Homem de Constantinopla, Edições Gradiva, 2013, ISBN 978-989-616-549-9.

Cortesia de EGradiva/JDACT

JDACT, José Rodrigues dos Santos, Literatura, A Arte,

O Homem de Constantinopla. José Rodrigues Santos. «Cerrei os olhos e, num murmúrio, rezei em arménio. Quando acabei apercebi-me de que madame Duprés havia voltado ao quarto. Tinha os olhos vermelhos…»

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«(…) Pai?, sussurrei com a maior doçura de que fui capaz. Está a ouvir-me? Os olhos negros escorregaram na minha direcção e tive então a certeza de que se encontrava realmente desperto e me entendera. Encorajado, perguntei-lhe se se sentia bem. Tentou falar, ainda pronunciou uma sílaba, kr..., kri... , presumi que quisesse dizer o meu nome, mas tornava-se evidente que o esforço era demasiado penoso e, com um suspiro fatigado, desistiu. Disse-lhe que descansasse e não se preocupasse, ia correr tudo bem. Não sei se acreditou em mim ou se foi do cansaço, mas a verdade é que a seguir cerrou os olhos humedecidos e pareceu serenar. Dei um passo para o lado e deixei madame Duprés soprar-lhe umas palavras de ânimo a que ele voltou a não responder. A francesa ainda tentou persistir, mas de repente virou-se e fugiu dali com um gemido. Não era capaz de o ver naquele estado. Apercebi-me, talvez um minuto depois, de que ele reabrira os olhos e tentava de novo falar. Aproximei-me mais uma vez da cama, peguei-lhe na mão mortiça e fria e inclinei-me sobre ele, encostando o ouvido à boca trémula. Começou outra vez por balbuciar umas sílabas incompreensíveis, sons que não pareciam fazer sentido e que se soltavam nas pausas da respiração leve, mas inesperadamente saiu-lhe uma frase completa, na verdade uma pergunta lançada num só fôlego, como se ela reflectisse a essência da sua vida. O que é a beleza? Estas palavras enigmáticas suscitaram-me o maior dos espantos. O que é a beleza? O que raio quisera ele dizer com aquilo? Porque teria o meu pai gasto a sua escassa energia com uma irrelevância? Só podia ser o resultado de um delírio febril, o produto indesejado das elucubrações demenciais de um moribundo, pelo que ignorei a tão absurda pergunta e decidi questioná-lo sobre o seu estado. Quis saber se se encontrava bem, se desejava alguma coisa ou se podia fazer algo por ele, mas voltou a fechar as pálpebras e a deixar-me entregue à minha perplexidade. Enquanto reflectia naquela pergunta bizarra, senti-o remexer-se na cama. Imaginando que algo o incomodava, levantei prontamente o lençol para verificar se estava tudo bem. Foi nessa altura que ele alçou o braço debilitado e fez um gesto na direcção da cómoda. A seguir ouvi-o suspirar e o braço tombou, pendurado ao abandono na borda da cama. O doutor Fonseca abeirou-se dele e inspeccionou-lhe os olhos e a pulsação. Depois endireitou-se e, respirando fundo, encarou-me. Regressou ao coma, disse. Receio que o fim esteja iminente. Beijei o meu pai na fronte e depois afastei-me um passo.

Cerrei os olhos e, num murmúrio, rezei em arménio. Quando acabei apercebi-me de que madame Duprés havia voltado ao quarto. Tinha os olhos vermelhos, estivera de novo a morar. E contei-lhe o que se passara e perguntei-lhe o que haveria na cómoda de tão especial para merecer aquele último gesto dele. Os livros, disse ela. Queria decerto os livros. Quais livros? Um sorriso terno aflorou à face enrugada da velha senhora. Ele passou o último ano a escrever dois livros, não sabias? Contam a história dele. E a tua, já agora. A minha? Sim. Escreveu essa parte com base num diário teu que encontrou num baú. Riu-se com doçura. E sabes o que é curioso? Redigiu tudo na terceira pessoa, como se fosse alguém a contar a vossa história. Estava de tal modo entusiasmado que ainda rabiscou as últimas páginas do segundo volume na primeira vez que despertou do coma, vê lá! Desviei a atenção para a cómoda. Havia uma peça antiga de porcelana chinesa, um vaso com tulipas azuis e uma fotografia dele sentado à frente de uma estátua egípcia, provavelmente tirada em Lucsor, decerto no templo de Karnak. Onde estão esses livros? Madame Duprés chegou-se à cómoda e abriu a gaveta superior, de onde extraiu duas resmas de papel; eram, todas somadas, mais de mil folhas, um verdadeiro tijolo. Peguei nelas e folheei-as, impressionado com o volume; estavam dactilografadas e corrigidas a caneta com a letra inconfundível do meu pai. Percebi que teria muito para ler nos dias seguintes. Depois virei os maços compactos de papel e espreitei a primeira página da primeira resma, uma folha branca com uma única frase a cortá-la, evidentemente o título». In José Rodrigues Santos, O Homem de Constantinopla, Edições Gradiva, 2013, ISBN 978-989-616-549-9.

Cortesia de EGradiva/JDACT

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quarta-feira, 27 de abril de 2022

Walter Isaacson. Steve Jobs. «Quando resistiram, eu lhes disse que ia simplesmente parar de ir à escola se tivesse de voltar para a Crittenden. Então, eles pesquisaram onde ficavam as melhores escolas e juntaram cada centavo que tinham para comprar uma casa por 21 mil dólares num distrito melhor»

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«As pessoas que são loucas o suficiente para achar que podem mudar o mundo são aquelas que o mudam». In Pense diferente, Apple, 1997

Infância. Abandonado e escolhido. A adopção

«(…) Jobs foi muitas vezes intimidado e maltratado e no meio do oitavo ano deu um ultimato aos pais. Insisti para que me pusessem numa escola diferente. Financeiramente, essa era uma exigência difícil de satisfazer. Seus pais mal conseguiam fechar as contas do mês. Mas, àquela altura, havia pouca dúvida de que eles acabariam por fazer sua vontade. Quando resistiram, eu lhes disse que ia simplesmente parar de ir à escola se tivesse de voltar para a Crittenden. Então, eles pesquisaram onde ficavam as melhores escolas e juntaram cada centavo que tinham para comprar uma casa por 21 mil dólares num distrito melhor. A mudança foi de apenas cinco quilómetros ao sul, para uma antiga plantação de damascos, em South Los Altos, que havia sido transformada num loteamento de casas pré-fabricadas. A casa deles, na Crist Drive, 2066, era térrea com três quartos e uma importantíssima garagem com uma porta de aço que dava para a rua. Lá Paul Jobs poderia mexer com os carros, e o filho, com eletrónica. Seu outro atributo significativo era que ela ficava bem dentro da linha que definia o que era então o distrito escolar Cupertino-Sunnyvale, um dos mais seguros e melhores no vale. Quando me mudei para cá, essas esquinas ainda eram pomares, Jobs apontou, enquanto caminhávamos na frente de sua antiga casa. O homem que morava ali me ensinou a ser um bom jardineiro orgânico e a fazer compostagem. Ele cultivava tudo com perfeição. Nunca tive comida melhor na minha vida. Foi quando comecei a apreciar frutas e vegetais orgânicos.

Ainda que não fossem crentes fervorosos, os pais de Jobs queriam que ele tivesse uma educação religiosa, então o levavam à igreja luterana quase todos os domingos. Isso chegou ao fim quando ele estava com treze anos. A família assinava a Life e, em Julho de 1968, a revista publicou uma capa chocante que mostrava duas crianças famintas de Biafra. Jobs levou-a para a escola dominical e confrontou o pastor da igreja. Se eu levantar o dedo, Deus saberá qual eu vou levantar antes mesmo de eu fazer isso? O pastor respondeu: Sim, Deus sabe tudo. Jobs pegou então a capa da Life e perguntou: Então, Deus sabe sobre isso e o que vai acontecer com essas crianças? Steve, sei que você não entende, mas, sim, Deus sabe sobre isso. Jobs anunciou que não queria ter nada a ver com a adoração de um Deus assim, e nunca mais voltou à igreja. Porém, passou anos estudando e tentando praticar os princípios do zen-budismo. Anos mais tarde, reflectindo sobre seus sentimentos espirituais, ele disse que achava que a religião era melhor quando enfatizava experiências espirituais, em vez de dogmas aceitos. O cristianismo perde sua essência quando fica baseado demais na fé em vez de viver como Jesus ou ver o mundo como Jesus o viu. Acho que as diferentes religiões são portas diferentes para a mesma casa. Às vezes, acho que a casa existe, e às vezes, não. É o grande mistério.

O pai de Jobs estava então trabalhando na Spectra-Physics, uma empresa de Santa Clara que fazia lasers para produtos eletrónicos e médicos. Como mecânico, ele elaborava os protótipos de produtos que os engenheiros projectavam. Seu filho estava fascinado pela necessidade de perfeição. Lasers exigem alinhamento de precisão. Os realmente sofisticados, para aplicações na aviação ou na medicina, tinham características muito precisas. Eles diziam ao meu pai algo como: Isto é o que queremos, e queremos numa única peça de metal para que os coeficientes de expansão sejam todos os mesmos. E ele tinha de descobrir como fazê-lo. A maioria das peças tinha de ser feita a partir do zero, o que significava que Paul Jobs precisava criar ferramentas e pigmentos personalizados. Seu filho ficava fascinado, mas raramente ia até a oficina. Teria sido divertido se ele me tivesse ensinado a usar um moinho e um torno. Mas, infelizmente, eu nunca ia, porque estava mais interessado em eletrónica». In Walter Isaacson, Steve Jobs (Edição 1), tradução de Berilo Vargas, Denise Bottmann, Pedro Soares, Editora Companhia das Letras, Wikipedia, iOS Books, LegiLibro, 2011, ISBN 978-853-591-971-4.

 Cortesia ECdasLetras/JDACT

JDACT, Walter Isaacson, Steve Jobs, Cultura e Conhecimento,

Steve Jobs. Walter Isaacson. «Aprendi mais com ela do que com qualquer outro professor e, se não fosse por ela, tenho certeza de que eu teria ido parar na cadeia. Isso reforçou, mais uma vez, a ideia de que ele era especial»

Cortesia da wikipedia e jdact

«As pessoas que são loucas o suficiente para achar que podem mudar o mundo são aquelas que o mudam». In Pense diferente, Apple, 1997

Infância. Abandonado e escolhido. A adopção

«(…) Quando chegou a hora de ir para o quinto ano, a escola decidiu que era melhor colocar Jobs e Ferrentino em classes separadas. A professora da classe avançada era uma mulher corajosa e decidida chamada Imogene Hill, conhecida como Teddy, e ela tornou-me, conforme Jobs, uma das santas de minha vida. Depois de observá-lo por duas semanas, ela concluiu que a melhor maneira de lidar com ele era suborná-lo. Um dia, depois da aula, ela me deu um caderno de exercícios com problemas de matemática e disse: Quero que você o leve para casa e faça isso. E eu pensei: Você está louca?. E então ela puxou um desses pirulitos gigantes, que parecia tão grande quanto o mundo. E disse: Quando você terminar, se acertar a maioria, lhe darei isto e cinco dólares. E eu devolvi o caderno em dois dias. E, depois de alguns meses, ele não precisava mais de subornos. Eu só queria aprender e agradar a ela.

A sra. Hill retribuiu conseguindo para ele coisas como um kit para polir lentes e fazer uma câmera. Aprendi mais com ela do que com qualquer outro professor e, se não fosse por ela, tenho certeza de que eu teria ido parar na cadeia. Isso reforçou, mais uma vez, a ideia de que ele era especial. Na minha turma, ela só se preocupava comigo. Ela viu algo em mim. Não era apenas a inteligência que a professora via. Anos depois, ela gostava de exibir uma foto de classe daquele ano no Dia do Havaí. Jobs tinha aparecido sem a camisa havaiana sugerida, mas na foto ele está na frente e no centro vestindo uma. Ele conseguira convencer outro menino a lhe dar a camisa.

Perto do fim do quinto ano, a sra. Hill submeteu Jobs às provas. Eu conseguia acompanhar a segunda série do ensino médio, lembrou ele. Agora que estava claro, não somente para ele e seus pais, mas também para seus professores, que Jobs era intelectualmente especial, a escola fez a proposta notável de que ele tivesse autorização para saltar dois anos e fosse directo do fim do quinto ano para o início do oitavo. Seria a maneira mais fácil de mantê-lo desafiado e estimulado. Seus pais decidiram, mais sensatamente, fazê-lo pular apenas um ano. A transição foi dolorosa. Ele era um solitário socialmente desajeitado que se viu com garotos um ano mais velhos. Pior ainda, fez o sétimo ano numa escola diferente: a Crittenden Middle. Ficava a apenas oito quadras (8x132m) da Monta Loma Elementary, mas sob muitos aspectos era um mundo à parte, localizado num bairro cheio de gangues étnicas. As brigas eram diárias, assim como as extorsões nos banheiros, escreveu o jornalista do Vale do Silício Michael S. Malone. Era comum os alunos levarem facas para a escola como demonstração de macheza. Na época em que Jobs chegou, um grupo de alunos foi preso por estupro colectivo, e o autocarro de uma escola vizinha foi destruído depois que a sua equipa venceu a Crittenden numa disputa de luta livre». In Walter Isaacson, Steve Jobs (Edição 1), tradução de Berilo Vargas, Denise Bottmann, Pedro Soares, Editora Companhia das Letras, Wikipedia, iOS Books, LegiLibro, 2011, ISBN 978-853-591-971-4.

Cortesia ECdasLetras/JDACT

JDACT, Walter Isaacson, Steve Jobs, Cultura e Conhecimento,  

terça-feira, 26 de abril de 2022

Steve Jobs. Walter Isaacson. «Ele já começava a mostrar a mistura de sensibilidade e insensibilidade, irritabilidade e indiferença que o marcaria pelo resto da vida»

Cortesia da wikipedia e jdact

«As pessoas que são loucas o suficiente para achar que podem mudar o mundo são aquelas que o mudam». In Pense diferente, Apple, 1997

Infância. Abandonado e escolhido. A adopção

«(…) Não, precisa de um amplificador, o pai lhe assegurou. E, quando Steve protestou, o pai disse que ele estava maluco. Não pode funcionar sem um amplificador. Tem algum truque nisso. Eu continuava dizendo que não ao meu pai, dizendo que ele tinha de ver a coisa, e por fim ele desceu a rua comigo e viu. E disse: Está bem, o diabo que me carregue!. Jobs lembrou-se do incidente vividamente porque foi a primeira vez que percebeu que seu pai não sabia tudo. Então, começou a se dar conta de uma coisa mais desconcertante: era mais inteligente do que os pais. Jobs sempre havia admirado a competência e a esperteza de seu pai. Ele não era um homem instruído, mas sempre achei que era bem inteligente. Não lia muito, mas era capaz de fazer muita coisa. Era capaz de entender quase tudo que fosse mecânico. No entanto, o incidente do microfone de carbono deu início a um processo dissonante de perceber que ele era de facto mais inteligente e perspicaz do que seus pais. Foi um momento muito importante, que está gravado na minha mente. Quando me dei conta de que era mais inteligente do que meus pais, senti uma vergonha tremenda por ter pensado isso. Nunca vou esquecer aquele momento. Essa descoberta, disse ele mais tarde a amigos, além do facto de que era adoptado, o fez-se sentir um pouco à parte, distante e separado, tanto de sua família como do mundo.

Outra camada de consciência se acrescentou a essa logo depois. Ele não só percebeu que era mais brilhante do que os pais como descobriu que eles sabiam disso. Paul e Clara Jobs eram pais amorosos e estavam dispostos a adaptar suas vidas à situação de ter um filho que era muito inteligente, e também teimoso. Eles se esforçariam muito para servi-lo, tratá-lo como alguém especial. E, em breve, Steve também descobriu esse facto. Meus pais me entenderam. Eles sentiram que tinham muita responsabilidade, depois que perceberam que eu era especial. Descobriam maneiras de me dar coisas e me pôr em escolas melhores. Estavam dispostos a se submeter às minhas necessidades. Desse modo, ele cresceu não só com o sentimento de ter sido abandonado, mas também de que era especial. Em sua opinião, isso foi mais importante na formação de sua personalidade.

Antes mesmo de entrar na escola, sua mãe o havia ensinado a ler. Isso, no entanto, criou alguns problemas. Eu andava meio entediado nos primeiros anos, então ocupava-me em encrencas. Também ficou logo claro que Jobs, por natureza e criação, não estava disposto a aceitar a autoridade. Me vi diante de uma autoridade de um tipo diferente da que eu conhecia, e não gostei. E eles realmente quase me pegaram. Chegaram perto de tirar qualquer curiosidade minha. Sua escola, a Monta Loma Elementary, uma série de prédios baixos dos anos 1950, ficava a quatro quadras (132 m) de sua casa. Ele combatia o tédio pregando peças. Eu tinha um amigo chamado Rick Ferrentino, e nós arranjávamos todo tipo de encrenca. Como quando fizemos pequenos cartazes anunciando Traga seu animal de estimação para a escola. Foi uma loucura, com cães perseguindo gatos por toda a parte, e os professores ficaram malucos. Noutra ocasião, eles convenceram as outras crianças a lhes dizer os números da combinação dos cadeados de suas bicicletas. Depois fomos para o pátio e trocamos todos os cadeados, e ninguém conseguiu sair com as bicicletas. Demoraram até tarde da noite para acertar as coisas. Quando ele estava no terceiro ano, as brincadeiras se tornaram um pouco mais perigosas. Uma vez detonamos um explosivo debaixo da cadeira da nossa professora, a senhora Thurman. Ela ficou com um tique nervoso. Não surpreende que ele tenha sido mandado para casa duas ou três vezes antes de terminar o quarto ano. Seu pai, no entanto, já havia começado a tratá-lo como especial, e na sua maneira calma, mas firme, deixou claro que esperava que a escola fizesse o mesmo. Olhe, não é culpa dele, disse Paul Jobs aos professores, conforme lembrou o filho. Se não conseguem mantê-lo interessado, a culpa é de vocês. Jobs não se lembrou de que seus pais alguma vez o tivessem punido pelas transgressões na escola. O pai do meu pai era alcoólatra e o chicoteava com um cinto, mas acho que eu nunca fui espancado. Seu pai e sua mãe, acrescentou, sabiam que a culpa era da escola por tentar me fazer memorizar coisas estúpidas em vez de me estimular. Ele já começava a mostrar a mistura de sensibilidade e insensibilidade, irritabilidade e indiferença que o marcaria pelo resto da vida». In Walter Isaacson, Steve Jobs (Edição 1), tradução de Berilo Vargas, Denise Bottmann, Pedro Soares, Editora Companhia das Letras, Wikipedia, iOS Books, LegiLibro, 2011, ISBN 978-853-591-971-4.

 Cortesia ECdasLetras/JDACT

JDACT, Walter Isaacson, Steve Jobs, Cultura e Conhecimento, 

Os Meus Amores. Contos e Baladas. Trindade Coelho. «… deixou de chegar á praia, é que o pobre abandonou o areal e se foi, sempre a chorar, tiritando ao frio da sua desgraça, como a um vento agudissimo do Polo, na direcção do horto silencioso...»

Cortesia de wikipedia e jdact

De acordo com o original

«(…) Do barco responderam que era só marchar, de mais a mais ia romper a lua. Chegaram emfim. N'um leve silencio d'acaso ouviam-se os soluços dos dois, parece que prolongados infinitamente, na sua expressão de angustia, pelo deslisar monotono das aguas... Aquillo confrangia o barqueiro, elle tambem era pae... Por isso, mal chegaram á beira do rio, apressou-se a dizer para o pequeno: Ora bem, Joaquimsinho, beija a mão a teu pae e dize-lhe adeus. Ouviu-se um chorar lancinante, a voz do pobre José Cosme a querer animar o filho: Então, meu filho?... Deus te abençoe, meu amor... Nossa Senhora te veja ir. E fez-lhe prometter que havia de resar sempre a Nossa Senhora, elle tambem lhe resaria, pois era ella quem dava saude, quem fazia a gente feliz. Não te esqueças d'ella mais da alminha de tua mãe e de tua irmã... Mas o pequeno chorava cada vez mais, agarrado ao pescoço do pae, beijando-o sofregamente, acarinhando-o, sem forças para dizer palavra. Então o José Cosme, perdida a esperança de animar o filho, só exclamava desvairado: Valha-me Deus! O Senhor me valha pela sua infinita misericordia!

E o Joaquim sempre agarrado a elle, beijava-o na cara, na cabeça, nas mãos. Até que o Thomaz teve de intervir, era preciso despegar d'ali por uma vez. Com'assim, sr. José, isto tem de ser... E segurando o pequeno com força puxou-o para elle. Quando já o tinha nos braços, ouviu-se o José Cosme que supplicava de mãos postas: Só um instante, só um quasinadinha, Thomaz! E o pobre pae caia de joelhos na areia, n'uma attitude de supplica. Mas n'esse momento, o barqueiro saltou de um pulo para o barco, levando ao colo a creança. Rema!, intimou em voz rapida. O barco recuou então subitamente, ao mesmo tempo que os remos fizeram plhau!, sobre a agua. Então o choro do José Cosme tornou-se de uma violencia desesperada, ao ouvir a voz lacrimosa do pequeno dizendo-lhe adeus lá do barco. Adeus, Joaquim, adeus! Adeus, pae! Adeus! Mas repentinamente, com voz resoluta e firme, o José Cosme gritou na direcção do barco: Thomaz! ó Thomaz! por alma de teu pae faz lá alto um instante. Acabou-se! custara-lhe tomar aquella resolução, mas já agora era melhor ficar sósinho de todo. E segurando nos dentes um pequeno objecto, arremessou a jaqueta ao areal e d'um lance deitou-se a nado. O Thomaz que ouvira o mergulho do corpo, fez recuar o barco; mas o José Cosme, velho nadador destemido, com meia duzia de braçadas ganhou-lhe de prompto a quilha. O filho tinha-se debruçado, na ancia de esperar o pae, de o ver ainda outra vez. N'um movimento rapido, o José Cosme entregou ao pequeno o que levava entre os dentes, dizendo-lhe a chorar: É a medalha, Joaquim; é a medalhinha de tua mãe, meu filho!... Reza-lhe, sim?!

E chorando cada vez mais, o pobre José Cosme pediu ao barqueiro que lhe chegasse o pequeno para o ultimo beijo... Dado o ultimo beijo, o barco poz-se de novo em marcha. Vinha a romper a lua, enorme, torva, afogueada, como se viesse de algum banho de sangue em região mysteriosa de lagrimas... E no silencio agoireiro da noite, apenas cortado pelo bater monotono dos remos e pelo bracejar desalentado do triste nadador, á voz do filho que chamava respondia cada vez de mais longe-longe como se fôra do Infinito! a voz lacrimosa do pae, com o seu fúnebre, adeus!, que elle bem sabia ser eterno...

Só quando o echo do ultimo adeus do Joaquim, perdido na distancia, diluido no luar que surgia, desfeito no lugente murmurio das aguas, fundido no derradeiro suspiro da brisa matinal, deixou de chegar á praia, é que o pobre abandonou o areal e se foi, sempre a chorar, tiritando ao frio da sua desgraça, como a um vento agudissimo do Polo, na direcção do horto silencioso...» In Trindade Coelho, Os Meus Amores, Contos e Baladas, Projecto Gutenberg, ISSO 88589-1, 2006, produção de Carla Ramos e Ricardo Diogo e edição de Rita Farinha, Os Meus Amores, 2ª edição, Lisboa, Livraria de António Pereira, 1894.

Cortesia de PGutenberg/JDACT

Trindade Coelho, JDACT, Literatura, Leituras, Romancista, 

Os Meus Amores. Contos e Baladas. Trindade Coelho. «A esta palavra, o pae retrahiu os braços e tomando o filho no collo seguiu. Atraz, o barqueiro levava ao hombro a misera arca de pinho: toda a bagagem do Joaquim»

Cortesia de wikipedia e jdact

De acordo com o original

«(…) Não tarda que comece a amanhecer. E como estavam á porta de casa: Será bom acordar já o pequeno: veste, não veste, é tempo que se vae. Iam á vela se o tempo não mudasse. Era bom aviar, por isso. Mas á ideia de ter de acordar o pequeno, o José Cosme deixou-se cair sobre o banco que estava debaixo do alpendre, e desatou a chorar violentamente. O barqueiro tentou animal-o, constrangido. Então, sr. José?... O chorar é lá para as mulheres. Olhem agora que homem! E tentava levantal-o, pol-o de pé. Limpe lá essas lagrimas, que vae affligir o pequeno! Ou quer que elle vá a chorar todo o caminho? O Cosme fez que não com a cabeça, violentamente, e poz-se a enxugar os olhos com a manga da camisa. Pois então levante-se lá. E segurou-o com força por baixo dos braços. Assim! Lá porque o pequeno vae para o Brazil não fique vossemecê a pensar que o não torna a ver. Mas era isso mesmo o que elle pensava... Porque não sei que me adivinha que não torno a ver o pequeno, concluiu a chorar o José Cosme.

Scismas! lembranças que veem á gente quando está afflicta. Mas ha-de vel-o que o não ha-de conhecer, digo-lh'o eu. Mais anno menos anno, apparece-lhe ahi rico... Rico! bem lhe importava a elle que o pequeno viesse rico. O que desejava era que voltasse e que elle ainda fosse vivo só para o abraçar. Pois sim, mas era preciso aviar, que tivesse paciencia: o José Cosme que se animasse para animar o pequeno, recommendava o barqueiro. Sim..., sim..., tartamudeava o Cosme. Vamos lá com Deus! Com'assim… E n'um profundo ai dolorosissimo, foi-se direito á porta para chamar a pequeno. Não havia remedio, tinha nascido em má hora, havia de ser desgraçado até que o levassem para a cova... Sobre a estreita e humilde cama o filho dormia profundamente. Que dôr, ter do o acordar! Vieram-lhe tentações de mandar embora o Thomaz e deixar dormir a creança. Quem sabe se a sua sorte futura, se toda a sua vida, valeria a boa tranquilidade d'aquelle somno! Não tinha coragem para o acordar, fazel-o vestir: era quasi um peccado quebrar aquelle ultimo somno dormido sob o tecto paterno... O ultimo somno! o ultimo somno! Ainda se o deixassemos acordar..., aventurou-se a dizer o triste. Mas o Thomaz que estava com pressa, lembrou seccamente que eram horas de pôr o barco a andar.

O José Cosme accendeu então a candeia, reccioso de que a luz o acordasse, e achegando-se do filho poz-se a escutar-lhe a respiração. Dormia!... Mas brandamente pousou-lhe a mão sobre a cabeça e chamou baixinho, quasi ao ouvido, beijando-o, sobresaltado como se fosse praticar um grande crime: Filho, olha que são horas, meu filho... Quando o pequeno se sentou na cama, estremunhado, ainda sob o estonteamento do somno, cerrando os olhos áquella hostilidade viva da luz, o pae agarrou-se a elle n'um abraço, e ambos romperam a chorar. Adeus, pae! Adeus, filho!

Confrangido, o Thomaz que se deixara ficar á porta, avançou para desatar aquelle abraço. Olhe que é tarde, sr. José. Perdoe, mas olhe que é tarde! O pae vestiu o pequeno, beijou-o ainda muito, e sairam. Debaixo do alpendre, o Joaquimsito ficou-se um instante a olhar o tecto. A andorinha, filho?, perguntou o José Cosme. Deixa que eu hei-de olhar por ella, mais pelos filhos quando os tiver. Vae socegado. Mas o pequeno quiz vel-a, pediu ao pae que o erguesse, era só um instante. Lá estava ella, coitadinha! sentiu-a estremecer quando lhe tocou com as pontas dos dedos... Adeus!, disse-lhe o pequeno afagando-a.

A esta palavra, o pae retrahiu os braços e tomando o filho no collo seguiu. Atraz, o barqueiro levava ao hombro a misera arca de pinho: toda a bagagem do Joaquim. Ao transpor o cancello o José Cosme deteve-se um pouco e perguntou soluçando: Quando voltarás ao horto, meu filho? O pequeno não respondeu. Chorava constantemente de ver que o separavam de tudo o que adorava, a andorinha, depois da andorinha o horto, as arvores, a velha nora, o cancello, tudo emfim. Atravessaram então a estrada e tomaram para a banda do rio. Quando o sentiram murmurar, aperraram mais o abraço, deram-se um longo beijo, humido das lagrimas que ambos derramavam. Ah, como o triste pae desejava que o rio ficasse ainda longe, mui longe, que fugisse deante d'elles, de modo que nunca o alcançassem! Mas eis que a areia principiava, divisava-se já perto o vulto escuro do barco onde os da tripulação fallavam alto. Prompto?, perguntou ainda de longe o Thomaz». In Trindade Coelho, Os Meus Amores, Contos e Baladas, Projecto Gutenberg, ISSO 88589-1, 2006, produção de Carla Ramos e Ricardo Diogo e edição de Rita Farinha, Os Meus Amores, 2ª edição, Lisboa, Livraria de António Pereira, 1894.

Cortesia de PGutenberg/JDACT

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segunda-feira, 25 de abril de 2022

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Como pode a um rei jovem suceder um rei velho?... Mas não. O dia deste meu nascimento é o dia da minha morte. Ninguém saberá que estou vivo...»

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O Sapateiro…

«(…) Não choreis, que tais tendes vossos filhos. Deixai-os estar, que assim vós o quisestes... Cala-te, pregador. Tem pena desta gente. A mim não me atingirás. Já ouvi tudo. Já sei tudo. A dimensão da minha culpa e da minha desculpa. Sei o que vais dizer a seguir e a seguir e depois do a seguir e como perorarás... Pobre tio-avô, filho de meu bisavô Emanuel! Que rosto pálido o teu aí sentado no cadeirão real em que te colocou a minha loucura! As palavras do orador ferem-te fundo, a ti que não tens culpa. Escuta-as..., desonra para vós, ó grande rei dom Manuel, a cujos pés tantos reis do Oriente, com as mãos cruzadas, vinham dar obediência... E que direi de vós, rei dom João terceiro, em cujo tempo houve este reino muitas e mui grandes vitórias, quando vejo vosso neto jazer despido entre outros mortos no campo de Arzila, sem sepultura... Que vergonha esta! Que desonra!...

Vamos embora daqui dizia Telo em soluços ao ouvido de Savachão. Vamos daqui. Ao Senhor Deus nosso, justiça; a nós nenhuma outra coisa mais compete que afronta, desonra e vergonha de nosso rosto... Com quanta maior razão pudera dizer de si hoje estas palavras o desventurado reino de Portugal... Que triste, que lamentável, que desonrada história se contará agora deste reino?, reino outrora tão glorioso que, sendo tão pequeno em gente, era tão grande em esforço e ânimo, que lá na índia, tantas mil léguas daqui, fazia tremer a barba a nossos inimigos, quando se escrever que seu rei, com toda a flor do reino, em menos de três horas se consumiu de todo, à vista e faro da nossa terra? Que desonra esta de nossos rostos, de nossos reis, de nossos príncipes, de nossos bispos, de nossos pregadores, de nossos pais... Que desonra para vós, rei dom Afonso Henriques... Montes de Gelboé, nec ros nec pluvia veniat super vos... Campos desastrados de Larache, de hoje em diante mais não deis fruto, malditos sejais para sempre, pois em vós perdeu Portugal sua nobreza, em vós se acabou seu esforço, em vós perdeu sua honra, onde ficaram nossos filhos, nossos irmãos, nossos maridos, o nosso rei tão formoso... quasi non esset unctus oleo... como se não fora ungido... Vamos embora, vamos embora!, puxava Telo, aflito, a manga de Savachão, por entre o vendaval de suspiros e ais que varria aquela seara de gente. Mas Savachão não o sentia. Murmurava como alucinado: quasi non esset unctus..., como se não fosse ungido com o óleo... Não, não, pregador! Por aí, não, que me feres no mais fundo de mim... Depois de morto Saul, não faltaram varões esforçados que arriscaram suas vidas para descobrir o corpo de seu rei e tanto andaram até que o acharam e o levaram e lhe deram honrosa sepultura...

Que desonra esta de portugueses! Morrer-vos vosso rei em parte onde nem privado nem senhor nem grande nem pequeno soube dar conta dele!... Cuidar nisto parece sonho... cuidar em um rei que lágrimas pediram, lágrimas pariram, lágrimas conceberam, lágrimas criaram, lágrimas sustentaram, acabar assim da maneira que vedes... Morte e nascimento andam comigo. Meu pai morreu, eu nasci. O dia da minha morte foi o do meu nascimento. Posso dizer que só agora me nasço, depois que desci a ser igual ao mais pobre dos pobres. Que importa o que me ensinava o meu preceptor Luís Gonçalves, que a realeza é dignidade que não morre? Pobre Fénix minha! Sei que se, neste preciso momento, eu avançasse aí ao meio da capela-mor e me descobrisse, me desse a conhecer, haveria espanto, surpresa, júbilo... e o pregador teria de emendar o seu sermão. Como pode a um rei jovem suceder um rei velho?... Mas não. O dia deste meu nascimento é o dia da minha morte. Ninguém saberá que estou vivo...» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Ao Senhor nosso Deus a justiça, a nós porém a confusão dos nossos rostos, como este dia a todo Judá, aos que moram em Jerusalém, aos nossos reis, aos nossos príncipes…»

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O Sapateiro…

«(…) Haviam baixado os capuzes, sem receio de serem reconhecidos, Telo porque Acabava a leitura, o celebrante beijava o missal e, ajudado pelos acólitos, tornava a sentar-se, voltavam-se os olhos para o púlpito onde surgia o padre Luís Álvares com a sua estola preta, aquietava-se a assembleia na contenção do mexer e do arfar. O pregador ajoelhara breves segundos a concentrar-se na oração e logo, levantando-se, chicoteou em voz poderosa o ar e as almas com o latim do mote: Domino Deo nostro justitia, nobis autem confusio faciei nostrae... Escolhia versículos da Baruch referentes à provação de Judá aquando da conquista de Jerusalém por Nabucodonosor e do cativeiro de Babilónia... Ao Senhor nosso Deus a justiça, a nós porém a confusão dos nossos rostos, como este dia a todo Judá, aos que moram em Jerusalém, aos nossos reis, aos nossos príncipes, aos nossos sacerdotes, aos nossos profetas, aos nossos pais... e, colocando teatralmente o antebraço esquerdo no bordo do balcão e olhando a baixo aos olhos para ele erguidos, falou de que, assim como Deus deve ser o fim último e principal de nossas esperanças, é maldito o homem que põe esperança no homem... e bem o vedes nesta miséria e desaventura presente..., como tão em breve acabaram tantas esperanças de tantos senhores, de tantos morgados, de tantos ofícios, de tantas privanças, de tantas valias e, perdoai-me que isto é acabado, de tantas loucuras, de tantas meninices, de tão grandes brios, soberbas, mentiras, de tantos nadas..., que tudo ao fim nisso se resolveu...

Esperanças certas só em Deus e na medianeira a Virgem sua mãe... E, olhos e mãos erguidos ao Céu das abóbadas, invocou a Senhora, refúgio, alívio, consolação dos males que afligiam o reino e exortou o povo de Deus a saudá-la rezando Ave, Maria... Quando o sussurro da prece por todo o templo se extinguiu, repetiu o orador o mote latino do exórdio... Aí está o osso do discurso, pensou Savachão. Ah! Negra alma minha, que no momento em que devia cobrir a cara de vergonha, no orgulho da chamada serenidade real não se me abre o coração, não geme esta rocha e se rasga a fonte dos olhos! Como mestre-escola, ponho-me a discretear sobre a fábrica do sermão..., friamente, enquanto à minha volta... Não vês, não ouves como esta pobre gente chora as vidas espedaçadas por ti?... E eis-me a reconhecer, passo a passo, os caminhos retóricos do orador. Não está ele falando das adversidades de Judá? Não se adivinha o propósito? ..., permitiu Deus que aquela sua mimosa cidade de Jerusalém e o templo tanto seu amado que lhe chamava o querido das meninas dos seus olhos..., puderam tanto os pecados que deu licença às nações bárbaras entrassem a cidade, profanassem o santuário, não deixassem pedra sobre pedra e levassem consigo para Babilónia, manietados com desonra, nobres fidalgos do reino, cativos, em servidão dura e espantosa, e depois que lá se viram na terra dos inimigos, com braga e adobes nos pés, sem camisa nem capote, com almofaça nas estrebarias dos bárbaros... Mero tópico. Logo cotejará com o que está vivendo este reino. O próprio auditório já o adivinhou, que se lhe marejam de lágrimas os olhos. E tu, pregador, notaste-o..., para vós, rei dom João primeiro, de gloriosa memória... Tem piedade! Não!...». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Vai ser difícil entrar disse Telo. O povo já engrossa cá fora. Avançaram por entre as gentes que cada vez mais se apinhavam. Vinha de dentro o cantochão dos frades: deixara crescer uma barba…»

 

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O Sapateiro…

«(…) O trono..., pois eu tenho nesse meu coração um trono para ti. Savachão beijou-a. Não te disse o meu nome nem to vou dizer, que tenho vergonha. Mas gostava que tu me pusesses um especial, só para ti..., o nome de uma flor... Violeta, o perfume mais simples e mais fino... Está aí à porta o Outono disse João. Seria melhor aviarmo-nos a evitar as invernadas, se vamos de longada pelas partes do Setentrião. Caminhavam em direcção aos Jerónimos, na peugada da multidão de mulheres enlutadas com crianças pelas mãos e velhos ossudos de semblantes carregados. Savachão falou Jorge, poupa-nos à tortura a que te vais sujeitar. Falo por mim e pelos outros. Não por mim. Eu acompanhar-te-ei disse Telo ao rei. Não quereis assistir às minhas exéquias, não é? Podíamos entretanto ir adiantando preparativos de viagem... Se assim quereis... Ainda pensas sair pelo Norte, para Santiago? Está aí, no Restelo, fundeada uma nau prestes a partir... Para as índias? Para a Flandres. Para as índias as armadas já partiram. Agora, só daqui a não sei quantos meses. E qual a vantagem de irmos para a Flandres? Menos trabalhos para a tua perna... Interrompeu-se a um gesto de desapego de Savachão e logo emendou: ... nós podemos arranjar cavalos..., mas com mais rapidez, por aquela via, atingiríamos o coração da Europa, haveria menos perigos de assaltos de ladrões formigueiros..., menos despesas e canseiras de albergues... ajudava Luís.

E mudas de cavalgaduras..., e depois..., e depois...? se subíssemos para norte, em busca da raia da Galiza, que mais verias tu do reino que não tivesses visto já? Terras maninhas, penúria de pão por míngua de braços..., desertos os paços dos senhores, as choupanas dos lavradores, as oficinas dos mesteirais... Paravam por momentos a escutar Cristóvão que lhes chamava a atenção: Na vicissitude, é sabido, vemos mais claro. O reino é um ermo. A muitos dizimou-os a peste, a não poucos o mar e à multidão a guerra. Que mais havemos de esperar senão que a fome se estenda aos que restam? Não te esqueça disse Luís, de que a fuga ao trabalho do campo e aos mesteres mecânicos vem de muito longe, a maioria dos adolescentes a buscarem servir nos paços dos fidalgos ou na corte..., ou no ócio da religião..., acrescentava João. Também havia por aí dizia Jorge, muito madraço a fingir-se criado de el-rei e de senhores, para se darem a andar de terra em terra a praticar malfeitorias. Savachão escutava, o ar grave e contristado. De qualquer modo disse, não é boa medida roubar sesmeiros e coureleiros às suas terras, para lhes meter nas mãos uma lança, uma acha-de-armas... Erro meu. Tudo isto me dói, lavrar o mar, lavrar a guerra, lavrar a ilusão..., e perder o reino..., e pôs-se a caminhar, o mais lesto que pôde, arrimado ao bordão que lhe agora era apoio. Um pouco adiante, estacou: Seja virou-se para Jorge e os outros. Preparai a nossa partida por mar. Separaram-se. Jorge e os três companheiros dirigiram-se para a praia velha, perto da qual, no meio das águas, se erguia o castelo de São Vicente a par de Belém, ondulava ao largo uma nau com as velas ferradas. Savachão e Telo continuaram caminho do mosteiro. Pararam a beber da água de um fontanário pouco afastado do pórtico lateral do templo.

Vai ser difícil entrar disse Telo. O povo já engrossa cá fora. Avançaram por entre as gentes que cada vez mais se apinhavam. Vinha de dentro o cantochão dos frades: deixara crescer uma barba de um negro cerrado, Savachão por mor das ataduras de pano que lhe escondiam os cabelos loiros. Apertados entre o povo, era-lhes impossível ajoelharem-se. Corriam-lhes os olhos à capela-mor. Ali está meu tio..., o rei meu tio... Aquele é o duque de Bragança..., e os outros nobres..., o celebrante dom Jorge Almeida, o bispo do Algarve..., aquele é Jerónimo Osório..., e demais prelados... Olhavam aos lados e ao fundo as naves pejadas de fiéis..., o cantochão ia no fim... Huic ergo parce, Deus, pie Jesu Domine, dona ei requiem. Amen. Dies irae, dies illa...» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,

domingo, 24 de abril de 2022

Ambas as Mãos sobre o Corpo. Maria Teresa Horta. «Recuo até ao aparador baixo, castanho, com embutidos, onde me encosto a sentir através da saia o frio quase tépido e áspero da madeira, e ela pausa o prato vazio na borda da mesa oval…»

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«(…)

A Irmã

Ligeiramente loura (às vezes só nos olhos se nota esse louro ténuo, diluído), tem a pele daquele tom preciso que exige o verde, o negro; um fato negro exageradamente e os cabelos um pouco erguidos, tombados sobre a nuca. Olho-a: com um prato esquecido nas mãos magras e os cortinados por detrás a acentuarem-lhe o início dos ombros nus. Recuo até ao aparador baixo, castanho, com embutidos, onde me encosto a sentir através da saia o frio quase tépido e áspero da madeira, e ela pausa o prato vazio na borda da mesa oval, sobre a toalha branca bordada a branco e torna a ouvir o que lhe dizem, as mãos magras ao de leve nos cabelos, a roçarem os brincos enormes (duas argolas douradas a dançarem perto da cara), para logo pegarem num copo de vidro como que ligeiramente suado, embaciado, que leva à boca sem nada beber, distraída, talvez já sem nada ouvir, mas atenta, exteriormente atenta, o olhar vago agora mais preciso quando ao mover a cabeça me olha de raspão e sorri, não para mim, mas sorri exageradamente como quando era criança: toda ela posta nesse sorriso, entregue a esse sorriso, e eu tão diferente a olhá-la através de toda uma distância construída por nós próprias, mais por ela, quem sabe, uma mulher a empregar todos os seus esforços para encontrar qualquer coisa em que acreditar, à custa de tudo, sequiosa de si própria, e eu tão diferente, sequiosa, de outra maneira tão terrivelmente sequiosa, a olhar-lhe o sorriso nesse momento tão louro, muito mais louro do que os cabelos, um sorriso a condizer com os brincos, com o fato, a condizer com os outros a quem momentaneamente aderia toda ela já solta noutra direcção, naquela constante procura instável, teimosa, indecisa, sem sentido, praticamente sem sentido definido, obstinada mesmo. E move-se passando de umas pessoas para as outras, distribuindo aquela simpatia superficial de aparência calorosa, espontânea, o fato negro escorrido nas ancas estreitas, os braços colados ao corpo: com um copo esquecido nas mãos magras. Olho-a: as mãos longas a roçarem os cabelos erguidos tombados sobre a nuca. Corro os dedos pela blusa vermelha, de seda vermelha, intensa, e encosto a pele fria do copo aos cabelos lisos sobre os ombros. Tão naturalmente diferentes desde crianças.

A Infância

Olho-a enquanto se arranja para ir jantar fora. Vejo-a através do espelho a abotoar a blusa verde de seda natural às ramagens posta com a saia cor de pérola e não consigo penetrar na aridez fechada dos seus olhos. Uma maquilhagem esquiva acentua-lhe o olhar, dissipa-lhe a boca. Sentada na sua cama, balouço as pernas sem meias, umas pernas de Verão. Os brincos, dois pequenos cachos de pérolas, aguardam na mesa baixa defronte do espelho, sobre o napperon verde-musgo, ao lado do pente de cabo comprido e estreito. Puxo os cabelos para trás das orelhas e no espelho vejo-me quase a seu lado: as madeixas lisas sobre a testa, o resto do cabelo preso atrás das orelhas, liso e comprido, ainda mais escuro em contraste com o seu, a certas horas do dia tão louro como quando era pequena e eu a penteava arrepelando-a e ela gritava. E todo este silêncio é um peso que tento evitar dizendo ou cantando baixo qualquer coisa às vezes mesmo sem nexo; um peso difícil de suportar, um silêncio visceral que sai de nós próprias e nos envolve. Que temos para dizer uma à outra?

Olho-a atenta, a cara perto do espelho, as mãos ambas perto dos olhos que acentua e que poderiam ser os meus olhos (somente um pouco mais claros), se eu os pintasse. Alguma vez saberei se a invejo ou se me faço deliberadamente assim, exactamente como sou? Puxo os cabelos para trás das orelhas..., tudo o que nela é natural seria em mim fictício e o que ainda é fictício nela em breve será natural e fresco, exactamente como o enviar a alguém um malmequer tem para si a construção exacta, natural, de uma incerteza sedenta, sendo porém um gesto tão sincero como o é também premeditado. Sei que me fita sempre que desvio os olhos, aquilo que lhe desagrada em mim é o que nela ainda não conseguiu encontrar e que provavelmente logo destruiria. Em todo o caso foge e o silêncio tem o peso insuportável do vazio. Balouço as pernas. Umas pernas de Verão que não me importo de mostrar talvez pela certeza que adquiri de serem bonitas. Acabo por rir e isso é tão despropositado que tenho de arranjar um motivo a todo o custo perante mim própria e para ela que pergunta sem vontade: porque se está a rir?, exactamente como eu. Não sei. Mas invento qualquer coisa tendo consciência no entanto de que soa a falso e de que ela igualmente o sente no contorno incerto da minha voz, o que ainda a afasta mais; por isso mesmo e também pela maneira natural como balanço as pernas. Há sempre em mim uma oferta tão espontânea, uma maneira tão natural de fazer as coisas naturais, que elas logo se tornam diferentes, logo estranhas e ofensivas; praticamente ofensivas e ostensivas». In Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, Publicações Europa-América, Colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.

Cortesia de PEuropaAmérica/JDACT

 JDACT, Maria Teresa Horta, Literatura, O Saber,