quinta-feira, 28 de abril de 2022

O Homem de Constantinopla. José Rodrigues Santos. «É a tua nota. Tiveste dezoito. O petiz venceu o medo do pai e espreitou a classificação. É..., é bom, não é? Com um movimento inesperado, Vahan esbofeteou o rosto do filho»

 

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O Homem de Constantinopla

As gotas de chuva desenhavam sucessivos anéis em expansão no espelho sujo das poças de água enlameada, tombando em saraiva sobre as múltiplas crateras que o mau tempo escavara na rua de terra batida. Os habitantes de Trebizonda apressavam-se em busca de refúgio, saltitando de alpendre em alpendre num esconde-esconde aflito para se abrigarem do céu de chumbo que desabava em fúria aterradora. Deixem passar o rapaz mais esperto de Trebizonda!, troou uma voz numa ladainha cantarolada.

Deixem passar o filho do todo-poderoso senhor Sarkisian! O homem que assim trauteava cruzou a rua em passo de corrida, os pés descalços enlodados quase até ao joelho, uma criança minúscula montada sobre os ombros. O pequeno tinha a cabeça envolta num enorme lenço para se proteger da chuva; não se lhe via o rosto, nem tal era preciso. Mesmo que o criado não anunciasse o nome do pai do petiz, todos sabiam bem que aquele era o filho do senhor Vahan Sarkisian, o vendedor de tapetes que, ao que se dizia de ciência certa, fizera amigos na própria corte do sultão. Deixem passar o rapaz mais esperto de Trebizonda!, voltou o criado a gritar, como se aquela fosse a forma mais eficaz de abrir passagem na cortina de chuva e no lamaçal, entre os fiacres, as carroças, as mulas e os transeuntes fugidios que congestionavam a rua. Deixem passar o filho do todo-poderoso senhor Sarkisian!

O mar Negro, habitualmente tranquilo como um lago gigante, agitava-se ao lado da rua, parecia um monstro atormentado. O criado com a criança aos ombros ignorou a enorme massa de água escura que fustigava as rochas em fúria cega e ameaçava invadir a linha de costa e virou à direita, desaguando por fim no destino. Cruzou um portão, entrou a correr num pequeno edifício e só parou no átrio sombrio, no meio de uma pequena multidão de crianças e de alguns adultos que sacudiam ainda a água das roupas. Com um sopro de exaustão, pousou o pequeno corpo no chão; tirou-lhe o lenço da cabeça e inspeccionou-lhe o cabelo. Então, menino?, perguntou ao detectar uma madeixa molhada. Entraram aqui umas gotinhas? O pequerrucho assentiu com a cabeça. Molhei-me. O criado passou os dedos pela madeixa, penteando-a para trás e disfarçando o tufo húmido no meio do cabelo seco. Pronto, já está!, exclamou, como se tivesse miraculosamente resolvido o problema. Agora já pode ir para a aula, menino! Despache-se, porque senão... Uma mão gorda pousou abruptamente sobre o ombro do pequeno, interrompendo as derradeiras recomendações. Ele agora vem comigo, ordenou o vulto que se abeirara deles. E tu, kahveci, também! O kahveci, O homem do café, expressão porque era conhecido o criado, levantou os olhos e, num misto de surpresa e terror, reconheceu o corpo imponente e arredondado do patrão. Senhor!, exclamou, baixando de imediato a cabeça num gesto de submissão. Eu..., sim senhor! Vahan Sarkisian virou as costas e arrastou o filho até à parede onde se encontrava um painel coberto por folhas de papel. As páginas pregadas ao painel apresentavam listas de nomes garatujadas à mão em caracteres arménios com algarismos diante deles. Estás a ver este número aqui?, perguntou Vahan, indicando a linha com o seu indicador anafado. É a tua nota. Tiveste dezoito. O petiz venceu o medo do pai e espreitou a classificação. É..., é bom, não é? Com um movimento inesperado, Vahan esbofeteou o rosto do filho. Não foi a melhor nota!, vociferou, o rosto rubro de fúria súbita. Olha para aqui! Forçou o menino a voltar os olhos humedecidos para o painel com as classificações e apontou para uma outra linha. Estás a ver aqui o filho do Shakhian, o Setrak? Quanto é que ele teve? Dezanove! Dezanove, vês? E o pai dele..., o pai dele não passa de um reles comerciante de fruta! Fitou o pequeno com a expressão severa de um juiz na hora da sentença. Se o Setrak conseguiu, porque não conseguiste tu? Queres humilhar-me perante a cidade toda? Queres cobrir-me de vergonha? Com o rosto incendiado pelo efeito da bofetada e o queixo trémulo como num assomo febril, o menino baixou os olhos, pronto a libertar-se no pranto de quem se sente injustiçado, mas lutou contra as lágrimas que lhe marejavam as pálpebras e ergueu de novo o olhar para fixar teimosamente a atenção embaciada na linha indica da pelo pai. O Setrak tinha de facto conseguido dezanove valores, o que fazia dele o melhor aluno da escola. Era, na verdade, um adversário difícil de bater. Mas, que diabo, o seu dezoito não lhe parecia assim tão mau! Anda cá! Vahan Sarkisian puxou o filho pela orelha, fez sinal ao criado de que o seguisse e cruzou o pátio com passos determinados . Meteu pelo corredor e, chegando diante da porta do director da escola, nem sequer bateu». In José Rodrigues Santos, O Homem de Constantinopla, Edições Gradiva, 2013, ISBN 978-989-616-549-9.

Cortesia de EGradiva/JDACT

JDACT, José Rodrigues dos Santos, Literatura, A Arte,