sábado, 2 de abril de 2022

Theresa Breslin. Prisioneira da Inquisição. «Escute bem o que lhe vou dizer agora, Ratinho. Precisa tomar cuidado, todas as noites, quando os homens estão fazendo suas refeições e têm permissão para deixar seus postos e irem à privada»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Chegada da Inquisição (maldita) 1490-1491

«(…) O tripulante que era igualmente carpinteiro e cozinheiro havia acendido carvões no braseiro instalado na proa e começara a cozinhar os peixes frescos que o intendente tinha pescado durante o dia com seu arpão. Fiquei surpreso com a fome que eu sentia. Mais cedo, quando tivera as ânsias de vômito, pensei em nunca mais ingerir comida novamente. Lomas me viu esfregando a barriga. Rá! Você me lembra meu filho. Sempre com fome. Tem o cabelo da mesma cor e quase a mesma altura. Quantos anos você tem? Não tenho a certeza, respondi. Dezasseis..., talvez mais. Lomas assoviou entre os dentes. Então não tem sido alimentado regularmente na sua vida, não é mesmo? Eu nada disse. Não foi preciso. Eu sabia que era menor do que o normal e muito magro. Eu podia ver como meus braços e pernas eram finos. Vá até ao cozinheiro. Diga-lhe que eu o mandei e peça-lhe um pedaço de peixe para comer. Levantei-me. Lomas estendeu a mão para me deter. Puxou-me para perto e falou baixinho no meu ouvido.

Escute bem o que lhe vou dizer agora, Ratinho. Precisa tomar cuidado, todas as noites, quando os homens estão fazendo suas refeições e têm permissão para deixar seus postos e irem à privada. Cuide para que, nessa hora, você não fique sozinho em nenhum lugar do barco. Não tome vinho. Não importa o quanto os outros tentem convencê-lo. Alguns desses homens livres cortarão sua garganta só por diversão; são piores criminosos do que aqueles mantidos acorrentados na proa, e com mais chances de machucar você do que qualquer um dos escravos árabes. Alcançou por baixo do banco e afastou para o lado o saco com seus pertences. À noite, pode dormir aí debaixo. Lomas tinha razão. Alguns dos homens tentaram mesmo me encorajar a tomar vinho, e alguns me olharam de um modo que me assustou de verdade. Na hora das refeições nunca me afastava muito do banco de remador de Lomas e, com sua protecção, fiquei seguro, pelo menos por um tempo. Eu sofria de pesadelos recorrentes, observando minha mãe morrer de fome e revivendo cada momento, várias e várias vezes, do fim brutal do meu pai. Eu passava meus dias obedecendo às ordens de Panipat e me protegendo de qualquer perigo que pudesse me atingir. O constante pensamento que me sustentava era de que um dia eu talvez vingasse meus pais.

Enquanto isso, um aspecto dessa nova vida era melhor do que qualquer um da antiga. Eu não vivia mais constantemente com fome. Cada dia eu comia o suficiente para encher o estômago. As semanas se passaram e fomos do Outono para o Inverno. E, mesmo que o tempo se tornasse mais tempestuoso, eu havia adquirido o equilíbrio de um marinheiro, de modo que minhas entranhas não se deslocavam com cada movimento do barco num mar agitado. A exposição ao sol bronzeou a superfície de minha pele, e, por baixo dela, eu podia sentir músculos firmes se formando em meus braços e pernas, e pelo peito. Trabalhar ao ar livre me tornou mais saudável do que eu jamais fora, tanto que o capitão acabou sendo forçado a me arranjar calções maiores para vestir. Sentia-me feliz com tudo isso, embora soubesse que cada dia de desenvolvimento me levava para mais perto do momento em que teria de substituir um dos homens mais velhos e mais fracos e assumir seus remos na proa. Quando esse dia chegasse, Panipat colocaria uma algema metálica no meu tornozelo e juntaria as duas extremidades. A corrente que mantinha os escravos nos seus lugares no banco seria presa à algema, e então eu estaria condenado a remar pelo resto de minha vida. Meu destino estava selado, sem esperanças. Só que... No cós de meus calções eu ainda tinha a faca.

Zarita

Havia cavaleiros no pátio. Quando ouvi o barulho de cascos, levantei-me de onde estávamos terminando a nossa refeição do meio do dia para ir até a janela e olhar. Zarita!, repreendeu-me o paizinho. Você não é mais uma criança. Não deve sair correndo da mesa porque está entediada e ouviu alguma distracção lá fora. Ele estava sentado com a mão sobre a de Lorena. Atormentava-me vê-lo tão envolvido e eu teria usado qualquer desculpa para deixar a mesa onde o paizinho gostava que fizéssemos todo dia pelo menos uma refeição juntos. Dois meses atrás, quando se tornou esposa de meu pai, Lorena não tomara, na mesa, o lugar da minha da mãe, do lado oposto ao dele. Desde minha tenra infância eu me sentara entre meus pais, então conversávamos como um trio e, enquanto comíamos, compartilhávamos nossas histórias e brincadeiras. Após o casamento deles, Lorena se posicionara do lado direito do meu pai e, durante a refeição, frequentemente focinhava-o do modo mais desavergonhado». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Galera Record, 2014-2015, ISBN 978-850-110-256-0.

Cortesia de GRecord/JDACT

JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Espanha,