quinta-feira, 30 de abril de 2020

Os Judeus do Papa. Gordon Thomas. «Naquela desconsolada manhã de Inverno, em 10 de Fevereiro de 1939, Eugénio Maria Giuseppe Pacelli estava parado no vão da porta do quarto observando…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Uma maneira de morrer
«Um livro revelador que demonstra como o Vaticano salvou milhares de judeus durante o Holocausto e elucida por que razão a história deve reabilitar o papa Pio XII. Acusado de não ter condenado Hitler pelo fanatismo e ódio racial com que o ditador-nazi governava a Alemanha, o chefe da Igreja Católica Romana ficou conhecido, durante a Segunda Guerra Mundial, como o Papa que se manteve em silêncio durante o Holocausto. Contudo, T G apresenta neste livro provas que refutam totalmente essas acusações. Uma pesquisa minuciosa revela uma rede encoberta de padres, freiras e cidadãos católicos que diariamente arriscaram as suas vidas para proteger os judeus. Ao investigar assassinatos, conspirações e conversões secretas, o autor dá a conhecer as mais extraordinárias acções levadas a cabo por católicos e pelo Vaticano. Em Os Judeus do Papa encontramos, finalmente, a resposta à grande questão moral do Holocausto: por que razão o papa Pio XII recusou-se a condenar o genocídio dos judeus da Europa? Pio XII não foi o papa de Hitler, mas sim, muito provavelmente, o mais perto que os judeus estiveram de ter uma voz no Vaticano». In Sinopse

Naquela desconsolada manhã de Inverno, em 10 de Fevereiro de 1939, Eugénio Maria Giuseppe Pacelli estava parado no vão da porta do quarto observando o que se sucedia em volta da cama de bronze. Duas freiras de meia-idade realizavam seu trabalho em movimentos harmoniosos, exactamente como se esperava que fosse. Lidar com a morte era algo que os anos de experiência havia lhes dado. Para Pacelli, morrer era uma garantia de vida após a morte. Muito tempo antes havia aprendido isso com a sua mãe, Virginia, uma filha devota da Igreja Católica Apostólica Romana. O filho de Virgínia era Sua Eminência, o cardeal secretário de Estado da Santa Sé, a segunda figura mais poderosa dentro da Igreja. Uma hora atrás, logo após a morte do homem idoso na cama, papa Pio XI, Pacelli se tornara a figura mais importante de todo o mundo católico. Ele era agora o camerlengo, um posto que combinava o papel do tesoureiro do Vaticano com o de chefe de gabinete da Santa Sé. Ele seria o responsável pela organização do funeral do papa Pio XI e pelo conclave para eleger um novo papa.
Pacelli tinha sessenta e quatro anos de idade e estatura média, era magro, com um nariz tipicamente romano, recto com narinas estreitas e uma leve saliência no meio da ponte. Por trás de seus óculos de estilo antiquado, residia o olhar de um homem que imediatamente sabia reconhecer e entender uma situação. Através da janela fechada do andar onde estava o quarto do Palácio Apostólico do Vaticano chegava, de mais de sessenta metros abaixo, o murmúrio da multidão na praça São Pedro que rezava pela alma do papa Pio XI, o 259º sumo pontífice da Igreja. Durante vinte anos, ostentara vários títulos, postos e poder, que haviam afectado directamente a vida de vários milhões de católicos. Pio estava às portas da morte havia dias, a duras penas era mantido vivo pelos remédios que os seus médicos lhe administravam. Eles haviam deixado o quarto, o seu trabalho finalmente estava encerrado. Em breve Pacelli começaria o seu.
Pacelli continuava a observar o corpo, ainda envolto na sua camisola branca. Uma freira havia removido as meias de dormir que o papa usava devido à sua circulação sanguínea insuficiente, um dos muitos problemas médicos por ele enfrentados. Estava com oitenta e um anos, a pele firme no seu crânio, o seu cabelo delicadamente grisalho e as veias saltadas no dorso das suas mãos. Os seus olhos foram fechados; não olhariam mais de maneira afavelmente inquiridora. Poucos dias antes, ainda haviam olhado para Pacelli, quando este estava sentado ao lado da cama e conversavam de um assunto familiar, o destino dos judeus ou, mais precisamente, o de Guido Mendes e sua família. Para o papa e Pacelli, eles representavam o que estava acontecendo com os judeus na Alemanha e na Itália e em todos os países onde o antissemitismo se estava espalhando.
Guido Mendes era filho de uma família judia de Roma, cuja linhagem remetia a Fernando Mendes, médico da corte do rei Carlos II da Inglaterra. Eugénio se sentava próximo a Guido na escola e, mais tarde, na faculdade. Com isso, tornaram-se bons amigos; Eugénio tornara-se convidado regular dos jantares de Shabat dos Mendes, Guido tinha o seu lugar na mesa de Natal dos Pacelli. Na época em que Eugénio começava o seu treinamento para o sacerdócio e Guido havia entrado na escola de medicina, o círculo de amigos judeus de Eugénio já se havia ampliado para mais de uma dezena. Eles foram à sua ordenação e assistiram à celebração da sua primeira missa. Ele caminhara com seus amigos em volta da praça São Pedro, chamando a atenção para as várias estátuas de santos no topo da colunata de Bernini. Os amigos lhe ensinaram o hebraico básico». In Gordon Thomas, Os Judeus do Papa, Casa das Letras, 2012, ISBN 978-972-462-137-1.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

Melo Antunes. Maria Manuela Cruzeiro. «Marx e todos os malditos, digamos assim, para o regime, por meio de livros que eram emprestados, ou então através de livreiros que tinham sempre por baixo do balcão..., uma encomenda...»


jdact

O Sonhador Pragmático
«(…)
Quais eram os autores que, nessa fase dos quinze-dezasseis anos, mais o terão marcado a esses vários níveis?

Bem, repare, eu não os poderei citar todos, mas penso que, no plano literário, foi sobretudo a literatura portuguesa que me começou a entusiasmar. Depois, e penso que mais ou menos nessa época, comecei a ler muitos autores franceses, desde, por exemplo, Voltaire e Rousseau (que já os lia aos dezasseis-dezassete anos), passando depois para uma grande parte dos filósofos do século XIX, etc. Poderia dizer, portanto. que as minhas primeiras influências vêm dos iluministas, incluindo, portanto, uma série de outros pensadores e filósofos. Nessa fase ainda não tinha lido Marx nem Engels, só o fiz um pouco mais tarde. Mas eu misturei um pouco a literatura e a filosofia…, enfim, é um pouco isso quer dizer, são leituras algo anárquicas. Contudo, eu tinha uma ideia muito clara, tinha um fio condutor muito claro na minha cabeça, e, portanto, foi possível não me dispersar excessivamente. O que interessa referir é que quando chego aos dezoito anos há aí um impasse, porque eu queria seguir um curso de letras, de história, de filosofia (naquela altura havia um curso de histórico-filosóficas), mas o meu pai não confiou que isso pudesse corresponder à salvação da minha alma...

E muito menos às expectativas e aos projectos que ele teria para si...

Claro. De modo que achou que a única coisa que me deveria disciplinar seria seguir a carreira militar, e eu acabei por ceder, até porque isso era uma forma de me autonomizar mais rapidamente. E foi assim.

Foi uma negociação?

Sim, houve uma certa negociação, sem dramas excessivos, mas fiquei sempre com essa mágoa dentro de mim e por isso também fiz o meu curso, na Escola do Exército, sem grande empenhamento. É verdade, sem me empenhar excessivamente...

Continuando paralelamente as suas leituras...

...Sim, empenhando-me fortemente nas minhas leituras. Já estava nessa altura em Lisboa e, portanto, tinha um contacto paralelo com a universidade, com muita gente que a frequentava...

Lembra-se de alguém com quem tenha estabelecido um contacto mais íntimo, através de conversas, discussões, debates, que eram muito mais frequentes na altura do que agora?

Dessa altura, dos meus vinte anos, não me recordo de ninguém em especial...

...que o tenha marcado particularmente.

... Estou a lembrar-me agora, de repente, de um, acho que é o Fernando Pernes, que é hoje, suponho eu, presidente da Fundação de Serralves ou pelo menos está nessa fundação, com quem tive contacto estreito. Mas havia muitos outros cujos nomes já foram ficando diluídos, digamos assim.

Sei que também chegou a frequentar algumas aulas na Faculdade de Letras...

Fui a algumas e depois, mais tarde, também em Direito, mas essa proximidade com a universidade, para mim, só tinha uma função: estar a par da bibliografia, de algumas orientações pedagógicas que me interessavam, ter acesso a algumas sebentas. Lembro-me de uma que me encantou na altura e que estudei profundamente (mas isso também tem a ver com os meus vícios intelectuais no que respeita à literatura clássica), a sebenta do padre Manuel Antunes. E tudo isso influiu, há um conjunto muito vasto de coisas que me foram influenciando decisivamente. Também na altura, já começava, aqui em Lisboa, a ser mais fácil absorver outro tipo de literatura. Portanto, já por volta dos meus vinte anos tinha acesso a toda a chamada literatura proibida, Marx e todos os malditos, digamos assim, para o regime, por meio de livros que eram emprestados, ou então através de livreiros que tinham sempre por baixo do balcão..., uma encomenda...» In Maria Manuela Cruzeiro, Melo Antunes, O Sonhador Pragmático, Editorial Notícias, 2004, 2005, ISBN 972-461-563-4.

Cortesia de ENotícias/JDACT

Melo Antunes. Maria Manuela Cruzeiro. «Sim, foi definitiva. E contemporaneamente começou a minha atracção pelos estudos que não eram exactamente aqueles que constituíam o currículo científico ou paracientífico…»

jdact

O Sonhador Pragmático
«(…) Bern, mas, voltando à infância, conservo na memória muitíssimos episódios e lembro-me perfeitamente do que foi a minha vida no interior de Angola, as idas no Verão para a praia, no Lobito ou em Luanda, onde tive perfeita noção do que eram as relações, se quiser, de colonizador/colonizado, naquela época, e até as marcas de racismo que havia nessas relações. E. portanto, acho que isso teve uma importância fundamental na formação da minha consciência.

O ambiente em casa, uma vez que é filho de um oficial do Exército, era de aceitação total dessas regras?

Não..., embora os meus pais fossem conservadores. O meu pai era particularmente adepto do regime vigente, mas tinha uma formação humanista, que o fazia distinguir entre as opções políticas, digamos assim, de apoio ao salazarismo e as relações humanas. Por isso penso que também terei sido influenciado por essa visão humanista dos meus pais, que muito me ajudou. Posso contar um episódio passado em Quibala. terra do interior de Angola, onde o meu pai estava colocado. Uma vez, lembro-me perfeitamente de ter ido buscar-me à escola, como de costume, um dos criados lá de casa, um dos impedidos, um cuanhama altíssimo, fortíssimo, como são os homens do Sul de Angola, e eu entendi que estava suficientemente cansado para ir às costas dele cerca de um quilómetro e tal, fazendo ele de cavalo e eu de cavaleiro. Quando cheguei a casa, o meu pai zangou-se fortemente comigo. Eu fiz aquilo, de facto, mas era criança, não me dava conta de que era uma violência o que estava a cometer. O que significa que, na realidade, como em muitas outras ocasiões, ele defendia uma relação que não era normal entre colonizador e colonizado, quer dizer, tinha uma visão que, repito, chamo de humanista e que, penso, teve influência na minha formação.

Lembra-se de mais algum episódio que recorde particularmente?

Eu poderia falar de tantas coisas..., assisti muitas vezes a actos de violência cometidos sobre negros… Tenho na memória muitas dessas cenas de violência. Sei lá, eram sobretudo comerciantes e camionistas, ou gente mais ou menos ligada ao sector comercial, como os transportes, etc., é essa pelo menos a ideia que tenho mais viva. Cenas de violência, de discriminação... São muitíssimas as coisas de que guardo memória.

Essa experiência de infância, entre os seis e os nove anos, que o marcou profundamente, terá sido posteriormente enquadrada, como diz, política e ideologicamente. Mas não parece que tenha sido decisiva para a escolha da sua profissão futura.

Não, aí não, quer dizer... eu, de certa maneira, fui forçado a seguir a carreira militar. Eu, a partir dos meus catorze, quinze anos, comecei a ter crises graves no interior da família porque...

Desculpe interromper, senhor coronel, quantos irmãos tem?

Mais um, mais novo. Nasceu já depois de eu vir de Angola, faz uma diferença de nove anos de mim.

E seguiu também a carreira militar?

Não, é engenheiro.

Falava então dessas crises no seio familiar.

Sim, crises que começaram na adolescência, como é normal, entre os catorze e os quinze anos. Foi a crise religiosa antes de mais nada. Os meus pais, em especial o meu pai, era um homem profundamente religioso, profundamente devotado à Igreja Católica, e aceitou bastante mal, ou por outra, não aceitou, a minha crise religiosa. De forma que começaram os conflitos, que são frequentes nessa fase da vida, mas que talvez no meu caso fossem bastante críticos em determinado momento, visto que a seguir à crise religiosa vem a perda da fé se assim se pode dizer...

E foi definitiva essa perda?

Sim, foi definitiva. E contemporaneamente começou a minha atracção pelos estudos que não eram exactamente aqueles que constituíam o currículo científico ou paracientífico, se assim se pode chamar, que era o sétimo ano dos liceus de ciências (a alínea f). Eu gastava o meu tempo com as literaturas, com a história, com a filosofia, com a sociologia e, obviamente, também com a política, naquilo que era possível, visto que, como se sabe, naquela altura era muito difícil o acesso a bibliografia que nos pudesse informar de forma completa». In Maria Manuela Cruzeiro, Melo Antunes, O Sonhador Pragmático, Editorial Notícias, 2004, 2005, ISBN 972-461-563-4.

Cortesia de ENotícias/JDACT

Aos Olhos de Deus. José Manuel Saraiva. «Em apenas sete dias, Lisboa regressava ao que sempre fora: uma incomensurável estrumeira. Mas mesmo com a cidade imunda, talvez pouco digna para valer de sede…»

jdact

«(…) A partida da embaixada para Roma, ao fim da manhã de quinze de Dezembro, voltou a ser rodeada de um esplendor quase idêntico ao da chegada das naus a Lisboa, uma semana antes. De novo, milhares de pessoas, incessantemente possuídas por um estado de profunda exultação, acorreram às praias do Tejo para assistir à largada dos navios e aos rituais que a antecederam, vitoriarem o rei e a rainha, loarem o papa e louvarem a Deus. Desde a hora do amanhecer que o céu se encobrira de nuvens cor de chumbo, densas e medonhas como as ondas do mar que, à saída do estuário, rebentavam sem piedade contra as rochas da costa oceânica. Mas nem assim, com o tempo a ameaçar chuva ou tempestade, a população deixou de corresponder aos apelos do município e da Igreja para se associar aos festejos áulicos e se despedir da numerosa comitiva no Cais da Ribeira. O próprio Manuel I, através de cuja corte se fez ouvir como na época dos pregões, pediu ao povo que acudisse às margens do Tejo e lá celebrasse o acontecimento sem pranto nem dor, como sucedia sempre que uma esquadra viajava para longínquas paragens à descoberta de novas terras, de outras gentes, de estranhas culturas, principalmente de cobiçadas riquezas.
Já todos haviam assistido às partidas temerárias de Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Bartolomeu Dias, Afonso Albuquerque e de muitos outros capitães e marinheiros cujo regresso à pátria era sempre mais incerto do que seguro. Já todos haviam chorado pais e filhos; as mulheres, com certeza, maridos e amantes; porventura até aqueles a quem não restava outra coisa na vida que não fosse a desgraça da própria vida. Só que daquela vez, a primeira entre muitas, a viagem para Roma não comportava o risco de tragédia, quase nem sequer o risco do imprevisto. Se o mar em muitos casos era uma ameaça, também noutros era amigo. Além disso, os portugueses sabiam que o Criador nunca se esquecia de proteger o venturoso rei, e por muitas zangas que Ele já tivesse tido com Manuel I pela prática continuada de pecados cometidos na intimidade dos seus aposentos, na Casa da Mina, ora com jovens donzelas de precária conduta, ora com jovens fidalgos de duvidosa decência, jamais o abandonaria. Deus fora sempre generoso e tolerante com o improbo soberano português e não seria agora, decerto, no momento em que o homem se propunha levar a Sua Santidade presentes de inestimável valor para o reforço patrimonial da Igreja, que deixaria de o ser. Por isso todos acreditavam no sucesso da viagem. Por isso todos confiavam na ajuda divina. E como Manuel I entendia que a cada gesto de amor do Altíssimo os homens deviam corresponder com amor idêntico, pediu à população de Lisboa o regresso ao cais, para uma festa de despedida cujo eco pudesse chegar a Roma, e impressionar o Sumo Pontífice.
E a festa começou de madrugada ainda. A cidade, que na semana anterior fora limpa e enfeitada com gigantescos ramos de acácias e oliveiras, de abetos e flores de tonalidades diversas, voltava a recuperar da tradicional desorganização e do putrefacto ambiente: as praças tinham-se enchido outra vez de imundície; as ruas passaram de novo a servir de depósito ao excremento dos animais, dos miseráveis e vagabundos; as tabernas e tavolagens haviam perdido o asseio transitório; as latrinas a céu aberto, dada a extinção de múltiplas fogueiras e a murchidão das pétalas perfumadas, voltou a cobrir a cidade com um véu de odor infecto, pútrido, sinistro. Em apenas sete dias, Lisboa regressava ao que sempre fora: uma incomensurável estrumeira. Mas mesmo com a cidade imunda, talvez pouco digna para valer de sede a um acontecimento tão relevante quanto o que se pretendia celebrar, Manuel I não deixou de exigir aos súbditos por interpostas entidades, profanas e religiosas, uma participação marcadamente efusiva no espectáculo do adeus à embaixada. E os súbditos, sempre dispostos a obedecerem ao rei e a cumprirem as orientações da corte, do município ou da Igreja, compareceram aos milhares junto ao rio, integrando muitos deles fanfarras de trombetas, pífaros, tambores, sacabuxas, flautas, gaitas-defoles, além de vários instrumentos rudimentares, quase todos destinados a produzir ruído e confusão». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.
                                                                                                                 
Cortesia de OdoLivroE/JDACT

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Imprimatur. O Segredo do Papa. Monaldi & Sorti. «No entanto, os homens do Bargello não tinham vontade, nem poder, para estarem com subtilezas. O Magistrado ordenou o encerramento imediato desta estalagem…»

jdact

11 de Setembro de 1683
«(…) Ouvimo-los todos nós, provinham do primeiro andar. Pellegrino, o estalajadeiro, meu patrão, tinha sido o primeiro a tirar as suas longas pernas da cama, acorrendo rapidamente. Mas deteve-se assim que chegou ao quarto grande do primeiro andar que dava para a via dell’Orso. Ali escavam alojados dois pensioneiros: o senhor Mourai, um velho gentil-homem francês, e Pompeo Dulcibeni, o seu acompanhante de viagem, originário da Marca. Na poltrona e com os pés de molho dentro de uma tina de água para o seu habitual pedilúvio, Mourai jazia de través e de braços caídos, enquanto o abade Melani lhe sustentava o peito e procurava reanimá-lo sacudindo-o pela gola. Mourai olhava fixamente para além de quem o socorria e, com grandes olhos atónitos, parecia perscrutar Pellegrino emitindo um indistinto gorgolejo. Só então Pellegrino se apercebeu de que, na realidade, o abade não gritava por socorro, mas estava a interrogar o velho com grande alarido e concitação. Falava-lhe em francês, e o meu patrão não percebeu, mas imaginou que lhe perguntava o que acontecera. No entanto, Pellegrino teve a impressão (como ele próprio mais tarde referiu a todos nós) de que o abade Melani sacudia Mourai com excessivo vigor na tentativa de o reanimar e, por isso, lançou-se rapidamente a libertar o pobre velho daquelas garras excessivamente poderosas. Foi nesse momento que o pobre senhor Mourai, com enorme esforço. balbuciou as suas últimas palavras: ah! Quer dizer então que é verdade, gemeu em italiano. Depois, deixou de agonizar. Continuava a fixar o estalajadeiro enquanto uma baba esverdeada lhe fluía da boca até ao peito. Foi assim que morreu.

O velho, es el viejo, arquejou padre Robleda num sussurro cheio de terror, meio italiano, meio espanhol, assim que ouvimos dois homens de armas a dizerem um para o outro, em voz baixa, as palavras peste e encerrar. Cristofano, médico e cirurgião de Siena!, chamou o oficial que fazia a chamada. Com gestos lentos e comedidos, o nosso pensioneiro toscano fez-se avante com a sua maleta de couro, contendo todos os seus instrumentos dos quais nunca se separava.
Sou eu, respondeu em voz baixa depois de ter aberto a maleta, remexido em papéis e pigarreado com ar composto e distanciado. Era Cristofano, um senhor gorducho e de baixa estatura, de aspecto bastante cuidado e olhar jucundo que inspirava boa disposição. Nessa noite, o seu rosto pálido e a pingar um suor que não se preocupava em enxugar, as pupilas concentradas em algo de invisível à sua frente e o rápido afago da barbicha negra no momento em que se mexeu, desmentiam a sua aparente impassibilidade, revelando um estado de altíssima tensão. Gostaria de precisar que, após um primeiro e atento exame ao corpo do senhor Mourai, não tenho a certeza de que se trate de peste, começou Cristofano, enquanto o médico perito pertencente ao Magistrado da Saúde, que com tanta segurança o afirma, na realidade, deteve-se pouco tempo junto do cadáver. Tenho aqui comigo, e mostrou os papéis, as observações que fiz por escrito. Creio que podem servir para se reflectir mais um pouco e adiar esta Vossa apressada deliberação.
No entanto, os homens do Bargello não tinham vontade, nem poder, para estarem com subtilezas. O Magistrado ordenou o encerramento imediato desta estalagem, interrompeu o oficial que parecia ser o chefe, acrescentando que ainda não tinha sido declarada a quarentena, propriamente falando: os dias de clausura seriam apenas vinte e sem evacuação da rua; isto, claro está, se não se verificassem outras mortes ou doenças suspeitas. Uma vez que também ficarei fechado cá dentro e, para me ajudar no diagnóstico, insistiu o senhor Cristofano um pouco alterado, posso pelo menos saber mais alguma coisa acerca das últimas refeições do defunto senhor Mourai, visto que comia sempre sozinho e no seu quarto? Poderia tratar-se de uma simples congestão. A objecção fez com que os homens de armas hesitassem e procurassem o estalajadeiro com o olhar. Mas este nem sequer ouvira o pedido do médico: sentado numa cadeira, prostrado e abandonado ao desconforto, gemia e imprecava, como era seu hábito, contra os infinitos tormentos que a vida lhe infligia. O último deles tinha-se dado apenas uma semana antes, quando numa das paredes da estalagem se abrira uma racha, coisa que acontece frequentemente nas velhas casas de Roma. A fissura não representava qualquer perigo, tinha-nos sido dito; mas fora o suficiente, já então, para deprimir e enfurecer o meu padrão.
A chamada, entretanto, prosseguia. As sombras da noite avançavam e a patrulha tinha decidido não colocar mais entraves ao encerramento. Domenico Stilone Priàso, de Nápoles! Angiolo Brenozzi, de Veneza! Os dois jovens, poeta o primeiro, vidreiro o segundo, avançaram olhando um para o outro, aliviados por terem sido chamados ao mesmo tempo, como se isso diminuísse os seus receios. Brenozzi, o vidreiro, de olhar amedrontado, com os seus caracóis castanhos a luzir e de nariz empinado e saliente no meio das faces rosadas lembrava um Cristo de porcelana. Só era pena que, como habitualmente, descarregasse a sua tensão de maneira obscena coçando com dois dedos o aipo que trazia entre pernas, quase como se tocasse num instrumento de uma corda só. Era um vício que saltava mais a meus olhos que a qualquer outra pessoa». In Monaldi & Sorti, 2002, Editorial Presença, 2004, ISBN 972-233-286-4.

Cortesia de EPresença/JDACT

A Cruz de Esmeraldas. Cristina de Torrão. «Fazem sempre assim, replicou alguém ao lado dele. Destroem as minas, matam uns quantos dos nossos e tornam a barricar-se na cidade. Pelos vistos, completou Hadwig, o teu adversário…»

jdact

«(…) O mouro era ágil e rápido, Konrad sabia que dificilmente lhe poderia causar ferimentos letais. Além disso, via-se obrigado a usar a sua própria espada mais como arma de defesa do que de ataque. As forças começaram-lhe a faltar, mas entretanto os seus companheiros tinham-se tornado a distanciar. E o túnel haveria de chegar ao fim. Desta vez, revelava-se-lhe difícil arranjar uma oportunidade para virar costas à luta. Arriscou um ataque, descurando a própria defesa. Deu certo: o mouro teve que cobrir a cabeça com o escudo e Konrad aproveitou para lhe virar as costas. Mas pelos vistos não foi suficientemente rápido. O outro avançou de espada em punho e atingiu-lhe o braço. A dor lancinante fez com que as pernas de Konrad lhe fraquejassem. Mas, se ali caísse, era o seu fim. O desespero deu-lhe forças que ele não imaginava ter e viu-se a correr a toda a velocidade. O sangue escorria-lhe do braço direito e a dor roubava-lhe o discernimento. Não fazia ideia seja estava perto dos seus companheiros, nem se o mouro o alcançava. Ficou tonto, sentia-se desmaiar. Já não corria, cambaleava de encontro às paredes da mina... Até que caiu ao chão. Contava a todo o momento que o mouro lhe desse o golpe de misericórdia. Mas, fosse porque milagre fosse, isso não aconteceu. O outro parecia ter-se diluído no ar! Gritou por socorro, a saída do túnel não podia estar longe. Depois, arranjou forças para se levantar. E lá foi cambaleando, à procura da saída e gritando por ajuda. A luz do sol já se fazia notar, quando viu homens a virem ao seu encontro. Ajudaram-no a sair da mina, em cuja entrada uma pequena multidão o esperava. Johann pendurou-se-lhe ao pescoço, de lágrimas nos olhos: Konrad! Estás vivo, graças a Deus! Também Hadwig e Gunther se regozijavam. Konrad balbuciou, entre golfadas de ar: o mouro..., deixou..., de me seguir?
Fazem sempre assim, replicou alguém ao lado dele. Destroem as minas, matam uns quantos dos nossos e tornam a barricar-se na cidade. Pelos vistos, completou Hadwig, o teu adversário contentou-se em infligir-te esse ferimento no braço. Anda, disse Johann. Tratemos disso, antes que te esvaias em sangue. Konrad estava deitado na sua tenda e Ausenda envolvia-lhe a ferida do braço com uma compressa de flores de camomila. As tendas eram pequenas e apertadas, só os fidalgos tinham direito às grandes, redondas, com um mastro no meio, no cimo do qual se içava uma bandeira. Os dois nunca tinham estado tão próximos um do outro. E estavam sozinhos, Johann tido ido apanhar lenha para a ceia.
Ausenda nunca lhe parecera tão bonita. Ajoelhada a seu lado, tinha a saia levantada acima dos joelhos, para melhor se poder mover. Curvava-se sobre o braço dele, dando a ver um pouco dos seios no decote redondo do vestido de linho. Os lábios, que eram um pouco grossos e de um vermelho vivo, estavam entreabertos. Os cabelos negros, amarrados num rabo-de-cavalo, emanavam um leve aroma a alfazema. Ao apertar a compressa, ela fez com que o braço esticado de Konrad se movesse e as costas da mão dele tocaram-lhe na pele bronzeada e quente da coxa. Apesar de ferido e fraco, Konrad excitou-se. Depois de um dia de tantas agruras, ansiava por um pouco de consolo. Deu-se conta que, desde que partira nesta aventura, nunca tinha desejado tanto uma mulher como desejava agora a rapariga meiga dos olhos amendoados. Não resistiu à tentação de, com as costas dos dedos lhe afagar a coxa. Estava expectante quanto à reacção dela. Há mais de três meses que ela se dedicava exclusivamente a Johann, mas tinha sido afinal uma rameira.
Ausenda, porém, se se apercebeu das suas intenções, deu a entender o contrário. Não o encarou uma vez que fosse e, assim que terminou a sua tarefa, deixou a tenda, sem proferir palavra. Sozinho, Konrad deu-se conta do fresco que o fim de tarde trazia e que a sua ferida latejava. Puxou a manta até ao pescoço, invejando o irmão, que tinha uma moça tão bonita a adoçar-lhe as noites. Lembrou-se de Hildrun, a filha do ferreiro Otmar e pela primeira vez arrependeu-se de não ter casado com ela. Sonhara com uma vida gloriosa de cavaleiro, mas as cruzadas revelavam-se bem diferentes daquilo que ele imaginara. Deixara a sua terra natal há quase meio ano e nem sequer pousara ainda os pés na Terra Santa! E a ferraria de Otmar, a melhor de Colónia, bom dinheiro dava... Amargurado, Konrad notou que estava cansado demais para conjecturas dessas. Fechou os olhos e adormeceu.
Acordou ao som de gargalhadas mornas e do crepitar do lume. Sentia-se muito fraco, mas conseguiu sair da tenda. Havia como sempre fogueiras por todo o acampamento. Também Johann, Ausenda, Hadwig e Gunther se encontravam sentados à volta das chamas, onde a ceia era preparada. Assim que o viu, o irmão veio ao seu encontro: não precisas de te levantar. Eu levo-te a comida à tenda. Ora essa! Seria preciso mais do que um arranhão no braço para me pôr de cama». In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT

terça-feira, 28 de abril de 2020

A Solidão dos Números Primos. Paolo Giordano. «Os dois gémeos estavam na primeira carteira. Michela passava o dia inteiro a colorir desenhos, ultrapassando meticulosamente as linhas…»

jdact

O Princípio de Arquimedes (1984)
«(…) Quando os dois gémeos ainda eram pequenos e Michela fazia uma das suas, como lançar-se pelas escadas num andador ou então entalar uma ervilha numa narina, sendo depois necessário levá-la às urgências para lha tirarem com pinças especiais, o pai dirigia-se sempre a Mattia, o primeiro a nascer, e a mãe dizia-lhe que tinha o útero demasiado pequeno para os dois. Sabe-se lá o que é que vocês fizeram dentro daquela barriga, dizia. Acho que à força de dar pontapés à tua irmã lhe provocaste algum dano sério. Depois ria-se, ainda que não houvesse nada que rir. Levantava a Michela pelo ar e mergulhava a barba nas suas faces macias. Mattia, de lá de baixo, olhava. Também se ria e deixava que as palavras do pai fossem absorvidas como que por osmose sem realmente as compreender. Deixava que se depositassem no fundo do estômago, formando uma camada espessa e viscosa, como borras de vinhos envelhecidos durante muito tempo. As gargalhadas do pai transformaram-se num sorriso tenso quando, aos vinte e sete meses de idade, Michela ainda não balbuciava uma só palavra. Nem sequer mãe, cocó, óó ou ão-ão. Os seus gritinhos desarticulados provinham de um sítio tão solitário e deserto que o pai, de todas as vezes, se arrepiava todo.
Aos cinco anos e meio uma terapeuta da fala de óculos espessos pôs à frente de Michela um paralelepípedo de madeira com as incisões de quatro formas diferentes, uma estrela, um círculo, um quadrado e um triângulo, e as respectivas formas coloridas que se inseriam nos buracos. Michela observava-as maravilhada. A estrela para onde vai, Michela?, perguntou a terapeuta da fala. Michela baixou os olhos sobre o jogo e não tocou em nada. A doutora pôs-lhe a estrela na mão. Para onde vai esta Michela?, perguntou.
Michela olhava para todo o lado e para nenhures. Enfiou uma das cinco pontas amarelas na boca e pôs-se a mordê-la. A terapeuta da fala tirou-lhe a mão da boca e repetiu a pergunta pela terceira vez. Michela, faz o que a senhora doutora te diz, caramba, resmungou o pai, que não conseguia mesmo estar sentado no sítio onde lhe haviam dito que devia estar. Senhor Balossino, por favor, disse a doutora, num tom conciliador. Às crianças temos de dar o tempo necessário. Michela levou o tempo necessário. Um minuto completo. Depois emitiu um gritinho dilacerante, que tanto podia ser de alegria como de desespero, e enfiou a estrela no buraco do quadrado.

Para a eventualidade de Mattia ainda não ter percebido sozinho que a irmã tinha algo de errado, os colegas da turma acharam por bem elucidá-lo, por exemplo, a Simona Volterra, a qual, no primeiro ano, quando a professora lhe disse Simona, este mês vais ser colega de carteira da Michela, se revoltou cruzando os braços e dizendo ao colega do lado não quero nada estar ao lado daquela ali.
Mattia havia deixado que Simona e a professora discutissem durante algum tempo e depois dissera à professora, eu posso ficar ao lado de Michela. Ficaram todos aliviados:  aquela ali, Simona, a professora. Todos, menos Mattia. Os dois gémeos estavam na primeira carteira. Michela passava o dia inteiro a colorir desenhos, ultrapassando meticulosamente as linhas e colorindo ao acaso. A pele dos meninos de azul, o céu de vermelho, as árvores todas de amarelo. Empunhava os lápis como um martelo da carne e carregava de tal maneira na folha que chegava a rasgá-la uma em cada três vezes. Ao lado dela, Mattia aprendia a ler e a escrever. Aprendia as quatro operações aritméticas e foi o primeiro da turma a saber fazer contas de dividir com dois algarismos. A sua cabeça parecia uma engrenagem perfeita do mesmo modo misterioso que a da irmã parecia tão defeituosa. Por vezes, Michela começava a mexer-se na cadeira e a esbracejar desafinadamente como uma borboleta apanhada numa armadilha. Os seus olhos embaciavam-se e a professora fitava-a, mais amedrontada do que ela, com a vaga esperança de que aquela atrasada pudesse realmente levantar voo, de uma vez por todas. Nas filas de trás alguns riam-se e outros faziam chhh». In Paolo Giordano, A Solidão dos Números Primos, 2008, tradução de José Serra, Bertrand Editora, Lisboa, 2013, ISBN 978-972-251-834-5.

Cortesia de BertrandE/JDACT

Imprimatur. O Segredo do Papa. Monaldi & Sorti. «Abade Melani, de Pistoia!, chamou o oficial olhando para o livro de registo dos pensioneiros. Os rendilhados à moda francesa que adornavam o pulso…»

jdact

11 de Setembro de 1683
«Os homens do Bargello (responsáveis pela ordem pública e, por extensão, a sede onde residiam, também equipada com prisão) apresentaram-se ao fim da tarde, no preciso momento em que eu acendia a tocha que iluminava a nossa insígnia. Nas mãos traziam tábuas e martelos; e selos, e correntes, e pregos enormes. À medida que avançavam pela via dell’Orso, vociferavam e gesticulavam imperiosos para dar a entender aos transeuntes e aos grupos de pessoas que desimpedissem a rua. Chegados junto a mim, começaram a esbracejar: todos para dentro, todos para dentro, temos de fechar o estabelecimento!, gritou aquele que dava ordens.

Ainda não tivera tempo para descer do banco a que tinha subido e já umas mãos poderosas me empurravam com brutalidade pela entrada, enquanto outros se postavam de maneira ameaçadora a bloquear a porta. Fiquei atordoado. Despertaram-me bruscamente as pessoas que, ao ouvirem os gritos dos oficiais, se tinham ajuntado à entrada como um relâmpago vindo do nada. Eram os pensioneiros da nossa estalagem, conhecida como estalagem do Donzel. Eram apenas nove e estavam todos presentes: esperavam que fosse servido o jantar e, como todas as noites, passeavam no rés-do-chão entre as otomanas do átrio e as mesas das duas salas de refeição contíguas, fingindo-se absorvidos por uma coisa e outra; mas, na realidade, todos gravitam em redor do jovem pensioneiro francês, o músico Roberto Devizé, que com grande habilidade se exercitava à guitarra.
Deixai-me sair! Ah, como ousais? Tirai as mãos de cima de mim! Não posso cá ficar! Estou de excelente saúde, percebestes! De excelente saúde! Deixai-me passar, já vos disse! Quem assim gritava (consegui entrevê-lo por detrás da floresta de lanças com que os homens de armas o vigiavam) era o padre Robleda: o jesuíta espanhol, nosso pensioneiro, que, tomado pelo pânico, começara a bradar ficando com a respiração curta e o pescoço vermelho e inchado. A cena fez-me recordar os gritos dos porcos quando ficam pendurados de cabeça para baixo e são mortos. A barulheira reboava pela rua e, parecia-me, até à praceta, que espontaneamente se tinha esvaziado num abrir e fechar de olhos. Do outro lado da estrada entrevi o peixeiro e os dois criados da vizinha estalagem do Urso que observavam a cena.
Vão fechar-nos, gritei-lhes tentando fazer-me ver, mas os três ficaram impassíveis. Um vinagreiro, um vendedor de neve e um pequeno grupo de rapazitos, cujos gritos animavam a rua até há alguns momentos, esconderam-se amedrontados ao dobrar da esquina. Entretanto, o meu patrão, o senhor Pellegrino de Grandis, dispôs uma banca no limiar da estalagem. Um oficial do Bargello colocou em cima da banca o livro de registo dos pensioneiros, que tinha acabado de exigir, e deu início à chamada. Padre Juan de Robleda, de Granada.
Como nunca tinha assistido a um fecho de estabelecimento por quarentena, e como nunca ninguém me tinha falado a tal respeito, pensei de início que nos quisessem prender. Isto está a ficar feio, isto está ficar feio, sibilou Breoozzi, o veneziano. Apareça, padre Robleda!, gritou impaciente o oficial que fazia a chamada. O jesuíta, estatelado no chão após lutar em vão com os homens armados, levantou-se e depois de ter verificado que todas as saídas estavam bloqueadas por lanças, respondeu à chamada erguendo a mão peluda. Foi de imediato empurrado para junto de mim. Era o padre Robleda. Viera de Espanha há alguns dias e, por causa dos acontecimentos, desde manhã que vinha submetendo a dura prova os nossos ouvidos com os seus gritos de medo.
Abade Melani, de Pistoia!, chamou o oficial olhando para o livro de registo dos pensioneiros. Os rendilhados à moda francesa que adornavam o pulso do nosso pensioneiro mais recente, chegado ao amanhecer, fenderam a sombra. Ergueu a mão diligentemente ao ouvir o seu nome, e os seus pequenos olhos triangulares brilharam como estiletes saindo da sombra. O jesuíta não mexeu um músculo para se afastar quando Melani, num andamento solene, tranquilo e silencioso, se juntou a nós. Tinham sido precisamente os gritos do abade, nessa manhã, a dar o alarme». In Monaldi & Sorti, 2002, Editorial Presença, 2004, ISBN 972-233-286-4.

Cortesia de EPresença/JDACT

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Palavras Cínicas. Albino Forjaz Sampaio. «Relicários, cultos, milagres, o céu, bênçãos, mitras, báculos, tudo isto está em leilão. Quem oferece? Quem dá mais? Às vezes as religiões pregoam…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Carta IV
«(…) A cidade, como a vida, é ignóbil. Ali, tudo se vende.
Quando custa uma virgindade? A glória? A fama? Um beijo? Uma alma? Um jantar? Um enterro? Quem é senhor do mundo, senhor da cidade, senhor da aldeia, senhor do campo? O dinheiro. É ele que faz cantar às almas as óperas da torpeza e do interesse. É essa lama bendita com que se compra o céu. Para o alcançar todos os dias o sol vê crimes inauditos e a humanidade se afadiga e sua e chora. Não há crenças, nem escrúpulos, nem religiões. É aquela luta brutal da tela de Rochegrosse. A honra? A honra é uma fórmula, É pagar uma letra no seu prazo com dinheiro que se ganhou a traficar escravos; é ser torpe sem que ninguém o diga; é roubar sem que o roubado acuse. Há mulheres sem honra que todos cortejam, virgindades imaculadas que todos desprezam. Religiões? A religião é uma comédia cuja representação já dura há séculos. Fez sucesso! É uma coisa fútil e extravagante que se parece com as histórias dos gnomos e das princesas encantadas. Quem a não tem, compra-a. Para que servem os padres senão para venderem Deus por grosso e a retalho (Zola).
Relicários, cultos, milagres, o céu, bênçãos, mitras, báculos, tudo isto está em leilão. Quem oferece? Quem dá mais? Às vezes as religiões pregoam entre os homens o Bem, a Paz e a Igualdade. Mentira, tudo mentira! Olhando bem a vida lá está sempre no fundo a sua face austera e verdadeira, uma Saint-Barthélemy. Que tragédia risível, grotesca, bizzara medonha, sofrida, desesperada e lancinante não é o mundo? A vida? A cidade? Lá em baixo nas vielas sujas ou no boulevard caro, a luz do gás, que baila a dança de S. Vito, pões lívida a carne, lívida a alma, lívido o sentimento. Há lá ruas inteiras de toleradas, ruas de loiras perfumadas de falas tão lânguidas como fúcsias, de morenas de beijos tão doces como medronhos, de ruivas de cabelos tão fulvos como o poente. São as filhas dos operários que espancam as mulheres quando chega à noite a casa, perdidos de bêbados; são as filhas dum ventre que não tinha nome e cujo pai é toda a gente; são aquelas que tendo vendido tudo se vendem afinal; são a legião enorme e interminável das nascidas não se sabe como, paridas não se sabe aonde, as filhas das ervas, filhas da rua.
Nos bancos sombrios do square há vultos enigmáticos, suspeitos, órfãos cujas almas são os íman da desgraça de todo o mundo, e à esquina das ruas pedem esmola velhos patriarcas como castanheiros centenários, filhas que fugiram aos pais pelos amantes que as abandonaram, pais que os filhos expulsaram de casa, mulheres que outrora foram belas e faladas. Embuçada num portal uma criaturinha esguia e franzina como uma santa, silenciosa, estende a quem passa a mão afilada e transparente e todos se afastam com o rancor, enquanto ela lá continua, no olhar a nostalgia das que passam os dias a tossir. Há carnes nuas que o frio corta e a nortada arroxeia a par de equipagens arrogantes mais brunidas que a água cristalina; vestes roçagantes e sumptuosas, arminhos e púrpuras, crachás e andrajos. Passeiam na mesma rua a majestade e o andrógino, a bêbada e a duquesa, e encontram-se muitas vezes no mesmo olhar os olhos que são alvoradas e os que são crateras sempre em perpétuas erupções de lágrimas. E na sombra, há criaturas emagrecidas pelas privações, recantos sinistros de infâmia onde a luz debuxa, às vezes, a traços esguios e esqueléticos, uma caricatura que em lugar de fazer rir faz arrepiar; há gestos de revolta, meio esboçados, repelentes, grotesco, divinos; punhos erguidos, caras crispadas, criaturas capazes de agatanhar os pais e lhes arrancar os olhos para castigo de as ter feito vir ao mundo.
E pensa a gente se foi só para todo este lodo, toda esta amargura, que sofreram todas as mulheres as dores do parto. Bizarramente, ao longe, silenciosa e erma como um túmulo, esgarça-se a brancura duma casita abandonada, e mais distante, na solidão duma encosta verde, umas árvores, com o seu reumatismo eterno, descarnadas, com seus troncos como aranhas monstruosas são tristes como a noite e como a desolação. O sol agoniza e a sombra que desce lentamente amortalha a terra com os seu manto funerário. Depois surge no céu a lua, muito grande, branca como a face duma defunta ou ensanguentada como a cabeça dos guilhotinados. Então por toda a terra se eleva o choro das ribeiras soluçantes, o ciclo longo das folhas que se abraçam, enquanto distante um ou outro galo perdido solta o seu grito de alarme como o das sentinelas à volta das prisões. E eu, debruçado sobre a cidade, escuto o seu respirar e sinto elevar-se da treva densa que abraça o mundo, num surdo formilhar, o arfar de mil opressos peitos que mal respiram e que semelham o ralo estertoroso de mil agonizantes». In Albino Forjaz Sampaio, Palavras Cínicas, 1905, Editora Guerra e Paz, 2011, ISBN 978-989-702-000-1.

Cortesia de EGPaz/JDACT

As Rosas de Atacama. Luis Sepúlveda. «Então, aquele homem vê como tudo muda, como se transforma no preciso instante em que o sol se cansa de ser mil vezes diminuto, multiplicado nas escamas de ouro que os ribeiros arrastam»

Cortesia de wikipedia e jdact

Histórias Marginais
«(…) Ignoro quanto tempo permaneci diante daquela pedra, mas, à medida que a tarde caía, vi outras mãos repetindo a inscrição para evitar que o pó do esquecimento a cobrisse: uma russa, Vlaska, que diante do seco esqueleto do Mar de Aral me contou a sua luta para impedir aquela loucura que culminou com a morte de um mar cheio de vida. Um alemão, Friedrich Niemand, Frederico Ninguém, que foi declarado morto em 1940 e que até 1966 gastou as solas dos sapatos visitando ministérios e templos burocráticos para demonstrar que estava vivo. Um argentino, Lucas, que, farto de discursos hipócritas, se decidiu a salvar as matas da Patagónia andina sem outra ajuda além da das próprias mãos. Um chileno, o professor Gálvez, que, num exílio que nunca compreendeu, sonhava com a sua velha sala de aulas e acordava com os dedos cheios de giz. Um equatoriano, Vidal, que suportava as sovas dos senhores da terra encomendando-se a Greta Garbo. Uma uruguaia, Camila, que aos setenta anos decidiu que todos os rapazes perseguidos eram seus parentes. Um italiano, Giuseppe, que chegou ao Chile por engano, casou por engano, teve os seus melhores amigos por engano, foi feliz por causa de outro engano enorme e reivindicou o direito de se enganar. Um bengali, mister Simpah, que ama os barcos e os leva a desmantelar repetindo-lhes as belezas dos mares que sulcaram. E o meu amigo Fredy Taberna, que enfrentou os seus assassinos cantando... Todos eles e muitos mais estavam ali, repetindo as palavras gravadas numa pedra, e compreendi que tinha de contar as suas histórias.

Noite na Selva Aguaruna
Não conheço aquele homem parado na margem do rio, respirando fundo e sorrindo ao reconhecer os odores que viajam pelo ar. Não o conheço, mas sei que aquele homem é meu irmão. Aquele homem que sabe que o pólen viaja preso à arbitrária vontade do vento, mas confiante e a sonhar com a fértil terra que o espera, aquele homem é meu irmão. E o meu irmão sabe muitas coisas. Sabe, por exemplo, que um grama de pólen é como um grama de si mesmo, docemente predestinado ao lodo germinal, ao mistério daquilo que se erguerá vivo de ramos, de frutos e de filhos, com a bela certeza das transformações, do começo inevitável e do necessário final, porque o que é imutável encerra o perigo do eterno, e só os deuses têm tempo para a eternidade. Aquele homem que empurra a sua canoa sobre a praia de areia fina e se prepara para receber o milagre que em cada entardecer abre na selva as portas do mistério, aquele homem é necessariamente meu irmão. Enquanto a subtil resistência da luz diurna se deixa vencer amorosamente pelo abraço da penumbra, escuto-o a murmurar as palavras exactas que a sua embarcação merece: encontrei-te quando não passavas de um ramo, limpei o terreno que te rodeava, protegi-te do caruncho e da térmita, orientei-te a verticalidade do tronco e, ao deitar-te abaixo para fazer de ti o meu prolongamento na água, a cada machadada marquei também uma cicatriz nos meus braços. Depois, já na água, prometi que havíamos de continuar juntos a viagem começada no teu tempo de semente. E cumpri. Estamos em paz. Então, aquele homem vê como tudo muda, como se transforma no preciso instante em que o sol se cansa de ser mil vezes diminuto, multiplicado nas escamas de ouro que os ribeiros arrastam.
A floresta apaga a sua intensa cor verde. O tucano fecha o brilho das suas penas. As pupilas do quati deixam de reflectir a inocência dos frutos. A infatigável formiga suspende a transferência do mundo para a sua cónica morada. O jacaré decide abrir os olhos para que as sombras lhe mostrem aquilo que evitou ver durante o dia. O correr do rio torna-se tranquilo, ingénuo da sua terrível grandeza». In Luis Sepúlveda, As Rosas de Atacama, 2000, Porto Editora, 2020, ISBN 978-972-0-04091-6.

Cortesia de PEditora/JDACT

As Rosas de Atacama. Luis Sepúlveda. «Visitei há alguns anos o campo de concentração de Bergen Belsen, na Alemanha. Percorri no meio do silêncio atroz as valas comuns onde jazem milhares de vítimas do horror»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Há alguns anos, no campo de concentração de Bergen Belsen, na Alemanha, Luis Sepúlveda encontrou gravada numa pedra uma frase de autor anónimo que dizia: eu estive aqui e ninguém contará a minha história. Essa frase trouxe-lhe à memória toda uma galeria de personagens excepcionais que havia conhecido e cuja histórias mereciam ser contadas. Assim nasceu o presente livro, As Rosas de Atacama. Histórias Marginais (aliás o título da edição original), e também histórias de marginais; os relatos, quase sempre curtos, que compõem esta obra têm os ingredientes a que Luis Sepúlveda recorre desde O Velho Que Lia Romances de Amor: a defesa da vida e da dignidade humana, a luta pela justiça, o elogio dos valores ecológicos, o exotismo como afirmação de que os sonhos são os mesmos em todos os lugares da Terra. Em Sepúlveda a realidade supera sempre a ficção. Daí que este extraordinário contador de histórias continue a servir-se da sua condição de andarilho das cinco partidas do mundo para nos oferecer, em lampejos de génio, o relato insuperável dos homens e das mulheres que, no anonimato ajudaram, ajudam e ajudarão a construir o verdadeiro rosto da história». In Sinopse.

Histórias Marginais
«Visitei há alguns anos o campo de concentração de Bergen Belsen, na Alemanha. Percorri no meio do silêncio atroz as valas comuns onde jazem milhares de vítimas do horror, perguntando a mim mesmo em qual delas estariam os restos de uma certa menina que nos legou o mais comovedor testemunho acerca da barbárie nazista e a certeza de que a palavra escrita é o maior e o mais invulnerável dos refúgios, porque as suas pedras são ligadas pela argamassa da memória. Caminhei, procurei, mas não encontrei qualquer indício que me levasse à sepultura de Anne Frank. À morte física, os verdugos juntaram uma segunda morte, a do esquecimento e do anonimato. Um morto é um escândalo, mil mortos são uma estatística, afirmou Goebbels, e o mesmo repetiram e repetem os militares chilenos ou argentinos e os seus cúmplices disfarçados de democratas. O mesmo repetiram e repetem os Milosevic, Mladic e os seus cúmplices disfarçados de negociadores de paz. O mesmo no-lo cospem os autores de massacres na Argélia, tão perto da Europa.
Bergen Belsen não é certamente um lugar para passear, porque o peso da infâmia oprime, e à angústia do e que posso eu fazer para que isto não volte a repetir-se?, segue-se o desejo de conhecer e contar a história de cada uma das vítimas, de nos agarrarmos à palavra como único esconjuro contra o esquecimento, de contar, de nomear os factos gloriosos ou insignificantes dos nossos pais, amores, filhos, vizinhos, amigos, de fazer da vida um método de resistência contra o olvido, porque, como notou Guimarães Rosa, narrar é resistir. Numa extremidade do campo e muito próximo do lugar onde se erguiam os infames fornos crematórios, na superfície áspera de uma pedra, alguém (quem?) gravou, talvez com o auxílio de uma faca ou de um prego, o mais dramático dos apelos: eu estive aqui e ninguém contará a minha história. Vi a obra de muitos pintores e, desculpem, desconheço até agora o estremeção emocional que, para além de O Grito de Munch, uma pintura pode causar. Estive também diante de inúmeras esculturas e só nas de Agustín Ibarrola encontrei a paixão e a ternura expressas numa linguagem que as palavras nunca atingirão. Suponho que terei lido uns mil livros, mas nunca um texto me pareceu tão duro, tão enigmático, tão belo e ao mesmo tempo tão dilacerante como aquele, escrito sobre uma pedra. Eu estive aqui e ninguém contará a minha história, escreveu alguém (quando?, uma mulher?, um homem?), pensando na sua saga pessoal única e irrepetível, ou talvez em nome de todos aqueles que não aparecem nos noticiários, que não têm biografias, mas apenas uma esquecediça passagem pelas ruas da vida». In Luis Sepúlveda, As Rosas de Atacama, 2000, Porto Editora, 2020, ISBN 978-972-0-04091-6.

Cortesia de PEditora/JDACT

domingo, 26 de abril de 2020

A Solidão dos Números Primos. Paolo Giordano. «Sem aquele nevoeiro talvez alguém a conseguisse ver lá do alto. Uma mancha verde estendida no fundo de um canal, a poucos passos de onde na Primavera…»

jdact

O Anjo da Neve
«(…) Bem que o pai lhe dizia aprende a olhar para onde vais. Se ela se recordasse que na neve fresca o peso não deve ser posto à frente e se, eventualmente, Eric, alguns dias antes, lhe tivesse regulado melhor aquelas juntaras e se o pai tivesse insistido um pouco mais em dizer mas a Alice pesa vinte e oito quilos, não estarão demasiado apertadas assim? O salto não foi assim tão alto. Alguns metros, o tempo suficiente para sentir um pouco de vazio no estômago e nada debaixo dos pés. Logo de seguida Alice já estava de cabeça no chão, de esquis espetados na vertical, que tinham levado a melhor sobre o perónio. Não sentiu muitas dores. Não sentiu quase nada, a dizer a verdade. Apenas a neve que se lhe enfiara por baixo do cachecol e dentro do capacete e que queimava em contacto com a pele.
Os braços foram a primeira coisa que mexeu. Quando era mais pequena e acordava quando tinha nevado, o pai embrulhava-a em roupa e depois levava-a para baixo. Caminhavam até ao meio do pátio, depois, de mãos dadas, contavam um, dois e três e deixavam-se cair para trás, como um peso morto. O pai dizia-lhe, agora faz o anjo, e Alice mexia os braços para cima e para baixo e, quando se levantava e olhava para o seu perfil gravado no manto branco, parecia mesmo a sombra de um anjo de asas abertas. Alice fez o anjo na neve, assim, sem motivo especial, apenas para demonstrar a si própria que ainda estava viva. Conseguiu virar a cabeça para um lado e recomeçar a respirar, ainda que lhe parecesse que o ar que inalava não chegava precisamente lá onde deveria chegar. Tinha a estranha sensação de não saber como é que as suas pernas se tinham virado. A estranhíssima sensação de já não as ter. Tentou levantar-se, mas não conseguiu.
Sem aquele nevoeiro talvez alguém a conseguisse ver lá do alto. Uma mancha verde estendida no fundo de um canal, a poucos passos de onde na Primavera recomeçaria a correr um pequeno rio e o primeiro calor faria brotar morangos silvestres, que se esperares o tempo suficiente ficam doces como rebuçados e num dia és capaz de encher um cesto deles. Alice gritou por ajuda, mas a sua vozinha débil foi logo engolida pelo nevoeiro. Tentou levantar-se de novo, pelo menos virar-se, mas não houve nada a fazer. O pai dissera-lhe que quem morre congelado, instantes antes de esticar o pernil sente grande calor e tem vontade de se despir, de modo que quase todos os que morrem de frio são encontrados de cuecas. E ela ainda por cima tinha as cuecas todas sujas.
Começou a perder sensibilidade também nos dedos. Tirou uma luva, soprou-lhe para dentro e depois voltou a meter o punho fechado para se aquecer. Fez o mesmo também com a outra mão. Repetiu aquele gesto ridículo duas ou três vezes. São as extremidades que te lixam, dizia-lhe sempre o pai. Os dedos dos pés e das mãos, o nariz, as orelhas. O coração faz de tudo para ter o sangue para si e deixa congelar o resto. Alice imaginou os seus dedos a tornarem-se azuis e depois, lentamente, também os braços e as pernas. Pensou no coração que bombeava cada vez com mais força e procurava reter o calor restante. Ficaria de tal maneira rígida que se passasse por ali um lobo partia-lhe um braço simplesmente caminhando por cima dela.

Devem andar à minha procura.
Sabe-se lá se existem mesmo lobos por aqui.
Já não sinto os dedos.
Se não tivesse bebido leite.
Peso à frente, pensou.
Não, os lobos hibernam.
Eric deve estar furioso.
Não me apetece nada entrar naquelas competições.
Não digas tolices, sabes muito bem que os lobos não hibernam.

Os seus pensamentos tornaram-se progressivamente mais ilógicos e circulares. Lentamente, o sol mergulhou por trás do monte Chaberton fingindo que não se passava nada. A sombra das montanhas alongou-se sobre Alice e o nevoeiro tornou-se negro». In Paolo Giordano, A Solidão dos Números Primos, 2008, tradução de José Serra, Bertrand Editora, Lisboa, 2013, ISBN 978-972-251-834-5.

Cortesia de BertrandE/JDACT

Lúcia McCartney. Rubem Fonseca. «É mais camaradagem que outra coisa. A gente brinca, se diverte e pronto. O apartamento é muito bonito. Nós somos quatro garotas e eles são também quatro…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Abro o olho: Isa, bandeja, torrada, banana, café, leite, manteiga. Fico espreguiçando. Isa quer que eu coma. Quer que eu me deite cedo. Pensa que sou criança. Depois que o marido da Isa foi embora ela ficou marcando-me ainda mais. Isa diz que ele volta, mas eu duvido. Primeiro, ela não era casada com o marido dela. Segundo, acho que eles não se gostavam muito: Isa de vez em quando fazia programa, e ele sumia durante dias. Acho que agora sumiu de vez. Isa espera que o marido volte, a qualquer momento. As camisas dele estão todas passadinhas na cómoda e ela mandou consertar o binóculo, o homem era doido por jóquei. Ela não sai mais de casa, nem por um programa barra-limpa, mas até agora, nada. O René me telefona p’ra fazer um programa de noite. Eu digo que está bem. Tomo nota do endereço. Na praia estão todos os amigos. Combinam ir pró Zum-Zum. Eu digo que talvez vá. Se o meu programa acabar cedo eu vou. Mas eu não digo nada do meu programa p’ra eles. Eles estão por fora. Dois já dormiram comigo, mas só dois. A gente vai p’ra a boite, dança, bebe e depois eu venho p’ra casa. É mais camaradagem que outra coisa. A gente brinca, se diverte e pronto.
O apartamento é muito bonito. Nós somos quatro garotas e eles são também quatro. Não conheço nenhuma das outras meninas, mas devem ter sido mandadas também pelo René. Como ninguém conhece ninguém, começa aquela escolha chata, de sempre. Os clientes do René são todos idosos, muito educados mas danados de lentos para se decidir. Bebemos e conversamos. Três são cariocas e um deles é paulista. O paulista é o que fala menos. Eu não gosto muito de paulista, eles são todos ignorantes e brutos e acham que resolvem tudo com dinheiro. Torço para o paulista não me escolher. Ele me olha e quase enfio o dedo no nariz para ele ficar com nojo. Mas não enfio, até rio para ele, um riso de garota tímida que eu sei fazer. Os cariocas estão divertindo o paulista, sem subserviência, devem ser todos do mesmo nível. Cada qual vai para um quarto. René sabe que eu não gosto de promiscuidade. Eu vou para o quarto com o paulista. Sento-me num sofá. Ele também se senta. Depois deita a cabeça no meu colo, diz que não está com vontade de fazer nada, esses amigos cismaram que eu hoje tinha que ir com uma garota p’ra cama, mas vamos só conversar, está OK? Eu digo que está OK. Ele diz que não quer estragar as coisas. Eu digo que está bem. (Quero ir para o Zum-Zum.) Passo a mão nos cabelos dele. Eu não quero fazer isso, diz ele, tirando a roupa. Eu também tiro a roupa e nos deitamos, ele sempre dizendo que não quer, mas me … assim mesmo.
Depois de nos lavarmos, separadamente, ele se veste, põe dinheiro na minha bolsa. Ele fica muito calado, com um jeito meio distraído, meio cansado, meio desinteressado como os mais velhos fazem. Vamos para a sala e os outros todos já estão lá, pois nós perdemos muito tempo com aquela indecisão dele. Estão todos dançando. Ele me olha um pouco e diz pode ir embora. Eu pergunto se ele não quer o meu telefone e ele fica pensando um tempão, me olhando e olhando p’ra sala onde estão os outros, o homem é mesmo indeciso, e depois de nem sei quanto tempo ele diz: qual é? Estou no Zum-Zum com os garotos. De vez em quando penso no homem-velho. O que será que ele faz?

A coisa de que eu mais gosto no mundo é dormir. Acordar ao meio-dia e ir para a praia. Hoje é dia 4 de Dezembro e está um sol bárbaro lá fora. Me espreguiço. Isa chega com uma bandeja. Fiz uma gemada para ti, ela põe o prato fundo na minha frente, agora só chega depois das seis, perdendo tempo com esses garotões. Eu gosto de dançar, ela não gosta; eu gosto dos homens (bonitos, jovens, fortes), ela gosta do marido que nem é casado com ela e ninguém sabe onde anda; eu não gosto de ficar sozinha, eu, Isa, pelo amor de Deus!, não chateia, me levanto, ponho um disco no prato e começo a dançar, eu gosto de ficar o dia inteiro ouvindo música, eu preciso ouvir música, é igual ao ar pra mim. Estou falando para o teu bem. Eu sei que estás falando para o meu bem. Ninguém aguenta essa vida que está levando. Não vejo nada de errado nela. Pense no futuro. O futuro não me interessa e não me chateia mais, senão vou-me embora. O José Roberto telefonou, o sujeito de São Paulo que esteve contigo ontem. Isa gostaria de saber coisas sobre o paulista, mas resolvo fazer mistério para ela deixar de ser chata. Também não sei nada sobre esse José Roberto. Nem sei se ele é mesmo paulista. Nem sabia que ele se chamava José Roberto. José Roberto não é nome de velho. Ele vai telefonar de novo.

Ele tem um cheiro bom e fala muito suavemente comigo. Estamos sós. Ele diz que ontem tinha gente demais, eu queria ficar só contigo. Ele parece meio constrangido, como se nunca tivesse saído com uma garota de programa. Senta-se longe de mim. Nunca saiu com uma garota de programa antes? Já, já saí com uma porção, muitas, nem sei quantas. Então porque fica fingindo? Não estou fingindo coisa alguma. Ele prepara as bebidas. Em cima da mesa da sala vejo um monte de revistas e um papel, José Roberto, estive aqui e não te encontrei, telefona pra mim, beijos, Suely. Pego o bilhete, faço uma bolinha com ele e atiro pela janela. A noite está muito escura, eu não vejo o mar mas sinto o seu cheiro. De noite o mar tem um cheiro diferente, o mar muda de cheiro várias vezes por dia». In Rubem Fonseca, Lúcia McCartney, 1969, Agir Editora, 2009, ISBN 978-852-201-065-3.

Cortesia de AgirE/JDACT