segunda-feira, 27 de abril de 2020

Palavras Cínicas. Albino Forjaz Sampaio. «Relicários, cultos, milagres, o céu, bênçãos, mitras, báculos, tudo isto está em leilão. Quem oferece? Quem dá mais? Às vezes as religiões pregoam…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Carta IV
«(…) A cidade, como a vida, é ignóbil. Ali, tudo se vende.
Quando custa uma virgindade? A glória? A fama? Um beijo? Uma alma? Um jantar? Um enterro? Quem é senhor do mundo, senhor da cidade, senhor da aldeia, senhor do campo? O dinheiro. É ele que faz cantar às almas as óperas da torpeza e do interesse. É essa lama bendita com que se compra o céu. Para o alcançar todos os dias o sol vê crimes inauditos e a humanidade se afadiga e sua e chora. Não há crenças, nem escrúpulos, nem religiões. É aquela luta brutal da tela de Rochegrosse. A honra? A honra é uma fórmula, É pagar uma letra no seu prazo com dinheiro que se ganhou a traficar escravos; é ser torpe sem que ninguém o diga; é roubar sem que o roubado acuse. Há mulheres sem honra que todos cortejam, virgindades imaculadas que todos desprezam. Religiões? A religião é uma comédia cuja representação já dura há séculos. Fez sucesso! É uma coisa fútil e extravagante que se parece com as histórias dos gnomos e das princesas encantadas. Quem a não tem, compra-a. Para que servem os padres senão para venderem Deus por grosso e a retalho (Zola).
Relicários, cultos, milagres, o céu, bênçãos, mitras, báculos, tudo isto está em leilão. Quem oferece? Quem dá mais? Às vezes as religiões pregoam entre os homens o Bem, a Paz e a Igualdade. Mentira, tudo mentira! Olhando bem a vida lá está sempre no fundo a sua face austera e verdadeira, uma Saint-Barthélemy. Que tragédia risível, grotesca, bizzara medonha, sofrida, desesperada e lancinante não é o mundo? A vida? A cidade? Lá em baixo nas vielas sujas ou no boulevard caro, a luz do gás, que baila a dança de S. Vito, pões lívida a carne, lívida a alma, lívido o sentimento. Há lá ruas inteiras de toleradas, ruas de loiras perfumadas de falas tão lânguidas como fúcsias, de morenas de beijos tão doces como medronhos, de ruivas de cabelos tão fulvos como o poente. São as filhas dos operários que espancam as mulheres quando chega à noite a casa, perdidos de bêbados; são as filhas dum ventre que não tinha nome e cujo pai é toda a gente; são aquelas que tendo vendido tudo se vendem afinal; são a legião enorme e interminável das nascidas não se sabe como, paridas não se sabe aonde, as filhas das ervas, filhas da rua.
Nos bancos sombrios do square há vultos enigmáticos, suspeitos, órfãos cujas almas são os íman da desgraça de todo o mundo, e à esquina das ruas pedem esmola velhos patriarcas como castanheiros centenários, filhas que fugiram aos pais pelos amantes que as abandonaram, pais que os filhos expulsaram de casa, mulheres que outrora foram belas e faladas. Embuçada num portal uma criaturinha esguia e franzina como uma santa, silenciosa, estende a quem passa a mão afilada e transparente e todos se afastam com o rancor, enquanto ela lá continua, no olhar a nostalgia das que passam os dias a tossir. Há carnes nuas que o frio corta e a nortada arroxeia a par de equipagens arrogantes mais brunidas que a água cristalina; vestes roçagantes e sumptuosas, arminhos e púrpuras, crachás e andrajos. Passeiam na mesma rua a majestade e o andrógino, a bêbada e a duquesa, e encontram-se muitas vezes no mesmo olhar os olhos que são alvoradas e os que são crateras sempre em perpétuas erupções de lágrimas. E na sombra, há criaturas emagrecidas pelas privações, recantos sinistros de infâmia onde a luz debuxa, às vezes, a traços esguios e esqueléticos, uma caricatura que em lugar de fazer rir faz arrepiar; há gestos de revolta, meio esboçados, repelentes, grotesco, divinos; punhos erguidos, caras crispadas, criaturas capazes de agatanhar os pais e lhes arrancar os olhos para castigo de as ter feito vir ao mundo.
E pensa a gente se foi só para todo este lodo, toda esta amargura, que sofreram todas as mulheres as dores do parto. Bizarramente, ao longe, silenciosa e erma como um túmulo, esgarça-se a brancura duma casita abandonada, e mais distante, na solidão duma encosta verde, umas árvores, com o seu reumatismo eterno, descarnadas, com seus troncos como aranhas monstruosas são tristes como a noite e como a desolação. O sol agoniza e a sombra que desce lentamente amortalha a terra com os seu manto funerário. Depois surge no céu a lua, muito grande, branca como a face duma defunta ou ensanguentada como a cabeça dos guilhotinados. Então por toda a terra se eleva o choro das ribeiras soluçantes, o ciclo longo das folhas que se abraçam, enquanto distante um ou outro galo perdido solta o seu grito de alarme como o das sentinelas à volta das prisões. E eu, debruçado sobre a cidade, escuto o seu respirar e sinto elevar-se da treva densa que abraça o mundo, num surdo formilhar, o arfar de mil opressos peitos que mal respiram e que semelham o ralo estertoroso de mil agonizantes». In Albino Forjaz Sampaio, Palavras Cínicas, 1905, Editora Guerra e Paz, 2011, ISBN 978-989-702-000-1.

Cortesia de EGPaz/JDACT