quarta-feira, 1 de abril de 2020

Animalia. Presença e Representações. Heranças. Maria Isabel Gonçalves. «Quanto ao aracnídeo, Ésquilo mostra compreender a repulsa que por ele habitualmente sente a natureza feminina ao imaginar uma das Danaides a dizer que seria levada pelo Arauto…»

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Heranças. Animais, imagens e símbolos nos poetas greco-latinos
«(…) Outra imagem originalíssima, a da mortandade que os Gregos infligiram aos Persas em Salamina, está ligada ao mar e inspira-se na dureza da pesca do atum: eles batem-lhes com pedaços de remos ou restos de destroços e partem-lhes as espinhas, como a atuns, peixes apanhados na rede. Enchem o mar salgado soluços misturados com queixumes, até que a noite sombria tudo pára (Os Persas). Terminaremos a referência a imagens das tragédias de Ésquilo com o aproveitamento das formigas e da aranha. As primeiras reflectem a triste situação dos homens: viviam escondidos em grutas sem sol, como formigas trabalhadoras (Prometeu), antes de Prometeu lhes dar a conhecer o fogo. Está explícita a diligência do insecto, que acabara por se tornar simbólica. Quanto ao aracnídeo, Ésquilo mostra compreender a repulsa que por ele habitualmente sente a natureza feminina ao imaginar uma das Danaides a dizer que seria levada pelo Arauto, vendo-o como aranha [...], sonho, sono negro (Suplicantes).
No mesmo século V a. C., temos na comédia de Aristófanes outro marco importante do emprego de imagens animais, não apenas pelo número de empregos, mas, como já veremos, pela frequente subversão do processo. Recorde-se que Aristófanes viveu boa parte da sua vida numa época de grande liberdade, na qual, porém, a demagogia se ia despudoradamente instalando. Crítico lúcido e implacável, os animais servem-lhe na perfeição para retratar pessoas e costumes detestados. Para não falarmos dos falsos sonhos proféticos, que utilizam espécies convencionais, recordemos o recurso a animais insólitos. Alguém esperaria ver como padrão de agilidade..., uma pulga? E alguém esperaria ver como figuração de um ser aprisionado um..., escaravelho preso pela pata? Pois bem, é o que faz Aristófanes quando, respectivamente, imagina um bárbaro a apreciar uma bailarina (Tesmofórias); ou o espírito de Estrepsíadas preso a coisas terrenas, segundo Sócrates (Nuvens). Noutros casos, Aristófanes surpreende-nos pela actualidade. Não poderemos deixar de pensar que as suas divertidas imagens continuam a poder aplicar-se... Eis como vê os demagogos: a nossa cidade encheu-se destes subletrados, charlatães, macacos popularuchos, sempre a enganar o povo (Rãs).
Típico do comediógrafo é o uso de nomes de animais como termo carinhoso irónico. Assim, por exemplo, no Pluto (1010-1011), uma avenha diz que o seu jovem amante lhe chamava patinha e pombinha. Referência especial merecem também os animais compósitos imaginados por Aristófanes, quando quer chegar a determinados fins e não há espécie autêntica que o satisfaça. Para caracterizar um cobarde, pensa, na sua metamorfose imaginária, em camelo-cordeiro, sei no qual coexistiria a mansidão e a vontade de fugir (Aves); Filóstrato, dono de casas de passe, parece ao comediógrafo, pela sua astuta falta de vergonha, um cão-raposa (Lisístrata) e Caronte promete a Dioniso ouvir no Hades melodiosas rãs-cisnes (Rãs). Estamos, afinal, perante o processo que os mais velhos se recordarão de ter sido retomado pelo artista brasileiro Jô Soares, num programa humorístico que há anos passou na televisão. E bastará, quanto a Aristófanes». In Maria Isabel Gonçalves, Animais, Imagens e Símbolos nos Poetas Greco-Latinos, Animalia, Presença e Representações, coordenação de Miguel Alarcão e Outros, Lisboa, Edições Colibri, 2002, ISBN 972-772-353-5.

Cortesia de Colibri/JDACT