quarta-feira, 22 de abril de 2020

Poesia. Obra Poética Reunida (1950-1996). Hilda Hilst. «Carminadas e altas, vamos rever as ruas e como dizia o Rosa: os olhos nas nonadas. Como tu dizes sempre: os olhos no absurdo. Vem. Liquidifica o mundo»

Cortesia de wikipedia e jdact

Alcoólicas
[…] VI
«Vem, senhora, estou só, me diz a Vida.
Enquanto te demoras nos textos eloquentes
Aqueles onde meditas a carne, essa coisa
Que geme sofre e morre, ficam vazios os copos
Fica em repouso a bebida, e tu sabes que ela é mais viva
Enquanto escorre. Se te demoras, começas a pensar
Em tudo que se evola, e cantarás: como é triste
O poente. E a casa como é antiga. Já vês
Que te fazes banal na rima e na medida.
Corre. O casaco e o coturno estão em seus lugares.
Carminadas e altas, vamos rever as ruas
E como dizia o Rosa: os olhos nas nonadas.
Como tu dizes sempre: os olhos no absurdo.
Vem. Liquidifica o mundo.

VII
Mandíbulas. Espáduas. Frente e avesso.
A Vida ressoa o coturno na calçada.
Estou mais do que viva: embriagada.
Bêbados e loucos é que repensam a carne o corpo
Vastidão e cinzas. Conceitos e palavras.
Como convém a bêbados grito o inarticulado
A garganta candente, devassada.
Alguns se ofendem. As caras são paredes. Deitam-me.
A noite é um infinito que se afasta. Funil. Galáxia.
Líquida e bem-aventurada, sobrevôo. Eu, e o casaco rosso
Que não tenho, mas que a cada noite recrio
Sobre a espádua.

VIII
O casaco rosso me espia. A lã
Desfazida por maus tratos
É gasta e rugosa nas axilas.
A frente revela nódoas vivas
Irregulares, distintas
Porque quando arranco os coturnos
Na alvorada, ou quando os coloco rápida
Ao crespúsculo, caio sempre de bruços.
A Vida é que me põe em pé. E a sede.
E a saliva. A língua procura aquele gosto
Aquele seco dourado, e acaricia os lábios
Babando impudente no casaco.
É bom e manso o meu casaco rosso.
Às vezes grita: ah, se te lembrasses de mim
Quando prolixa. Lava-me, hilda.

IX
Se um dia te afastares de mim, Vida, o que não creio
Porque algumas intensidades têm a parecença da bebida
Bebe por mim paixão e turbulência, caminha
Onde houver uvas e papoulas negras (inventa-as)
Recorda-me, Vida: passeia meu casaco, deita-te
Com aquele que sem mim há-de sentir um prolongado vazio.
Empresta-lhe meu coturno e meu casaco rosso: compreenderá
O porquê de buscar conhecimento na embriaguês da via manifesta.
Pervaga. Deita-te comigo. Apreende a experiência lésbica:
Estilhaça a tua própria medida».
[…]

Hilda Hilst, Obra Poética Reunida (1950-1996), 1998, organização Costa Duarte, Literatura brasileira século XX, Wikipédia.

Cortesia de Wikipedia/JDACT