domingo, 5 de abril de 2020

Serena. Ian McEwan. «Sereníssima. A de olhos cerúleos! Ó, vinde iluminar-nos! Era mais do que claro para os meus professores e colegas que eu não podia ter sucesso ali…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Cambridge estava ansiosa por ser vista abrindo os seus portões para o mundo moderno da igualdade. Com o meu fardo de triplo infortúnio, escolinha local, menina, campo de estudo masculino, era certo que eu ia ser aceite. Se, contudo, eu me matriculasse em letras lá (o que jamais foi a minha intenção; o bispo sempre foi fraco em detalhes), ia ter muito mais dificuldade. Dali a uma semana a minha mãe falou com o director da escola. Eles empregaram na tarefa certos professores escolhidos que usaram todos os argumentos dos meus pais além de alguns próprios, e é claro que eu tive que ceder. Então abandonei a minha ambição de cursar letras em Durham ou Aberystwyth, onde tenho certeza de que teria sido feliz, e acabei indo para o Newnham College, em Cambridge, para aprender na minha primeira aula, que aconteceu no Trinity, o quanto eu era medíocre em matemática. O meu primeiro semestre deixou-me deprimida e quase abandonei o curso. Uns meninos palermas, sem a bênção de um charme pessoal ou de qualquer outro atributo humano como a empatia e a gramática gerativa, primos mais inteligentes dos bobos que eu tinha destruído no xadrez, ficavam me encarando enquanto eu lutava com conceitos que eles achavam óbvios. Ah, a serena senhorita Frome, um professor exclamava sarcasticamente quando entrava na sala dele toda terça de manhã. Sereníssima. A de olhos cerúleos! Ó, vinde iluminar-nos! Era mais do que claro para os meus professores e colegas que eu não podia ter sucesso ali precisamente porque era uma mulher bonita de minissaia, com cabelo louro caindo em cachos pelos ombros. A verdade era que eu não podia ter sucesso ali porque era quase igual ao resto da humanidade, não tão boa assim em matemática, não naquele nível. Fiz o que pude para conseguir uma transferência para letras, inglês ou francês ou até para antropologia, mas ninguém me quis. Naquele tempo as regras eram seguidas à risca. Para encurtar uma história comprida e infeliz, eu baixei a cabeça e no final acabei formando-me sem nenhum louvor.
Se eu passei correndo pela minha infância e adolescência, então certamente vou condensar o meu tempo de aluna de graduação. Eu nunca saí para remar, com ou sem um gramofone à corda, nem visitei o espectáculo de revista das Footlights, teatro me deixa sem jeito, nem fui presa nas manifestações da Garden House. Mas eu perdi a virgindade no primeiro semestre, várias vezes seguidas, parecia, já que na época todo mundo adoptava um estilo caladão e desajeitado, e tive uma agradável sucessão de namorados, seis ou sete ou oito ao longo dos nove semestres, dependendo das definições de carnalidade que considera. Eu fiz um punhado de boas amizades entre as mulheres do Newnham. Joguei ténis e li livros. Totalmente graças à minha mãe, eu estava estudando o assunto errado, mas não parei de ler. Eu nunca tinha lido muita poesia ou peças de teatro na escola, mas acho que os romances davam mais prazer a mim que aos meus amigos da universidade, que eram obrigados a suar para dar conta de ensaios semanais sobre Middlemarch ou Feira das vaidades. Eu passava correndo por esses mesmos livros, jogava conversa fora sobre eles, talvez, se houvesse alguém por ali que conseguisse tolerar o meu nível básico de discurso, e aí seguia em frente. Ler não era o meu jeito de pensar em matemática. Mais que isso (ou será que eu quero dizer menos?), era o meu jeito de não pensar.
Eu disse que eu era rápida. The Way We Live Now em quatro tardes deitada na cama! Eu dava conta de um bloco de texto ou de um parágrafo inteiro num só gole visual. Era questão de deixar os olhos e os pensamentos escorrerem, como cera, para tirar uma impressão fresquinha da página. Para irritação dos que ficavam em torno de mim, eu virava a página de poucos em poucos segundos com um gesto impaciente do pulso. As minhas necessidades eram simples. Eu não prestava muita atenção em temas ou frases especialmente bem resolvidas e pulava belas descrições de clima, paisagens e interiores. Eu queria personagens em que pudesse acreditar, e queria que me deixassem curiosa sobre o que iria acontecer com eles. De maneira geral, eu preferia que as pessoas estivessem ou no começo ou no fim de uma paixão, mas não fazia muita diferença se elas tentavam outras coisas pelo caminho. Era vulgar admitir, mas eu gostava que alguém dissesse Case comigo no fim. Os romances sem personagens femininos eram um deserto sem vida. Conrad eu nem levava em consideração, assim como a maioria dos contos de Kipling e Hemingway. E também não me impressionava com reputações. Eu lia tudo que me caísse na frente. Literatura vagabunda, elevada e tudo que ficasse no meio, tudo era tratado da mesma maneira brusca». In Ian McEwan, Serena, Companhia das Letras, 2012, ISBN 978-853-592-121-2.

Cortesia da CdasLetras/JDACT