segunda-feira, 27 de abril de 2020

As Rosas de Atacama. Luis Sepúlveda. «Visitei há alguns anos o campo de concentração de Bergen Belsen, na Alemanha. Percorri no meio do silêncio atroz as valas comuns onde jazem milhares de vítimas do horror»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Há alguns anos, no campo de concentração de Bergen Belsen, na Alemanha, Luis Sepúlveda encontrou gravada numa pedra uma frase de autor anónimo que dizia: eu estive aqui e ninguém contará a minha história. Essa frase trouxe-lhe à memória toda uma galeria de personagens excepcionais que havia conhecido e cuja histórias mereciam ser contadas. Assim nasceu o presente livro, As Rosas de Atacama. Histórias Marginais (aliás o título da edição original), e também histórias de marginais; os relatos, quase sempre curtos, que compõem esta obra têm os ingredientes a que Luis Sepúlveda recorre desde O Velho Que Lia Romances de Amor: a defesa da vida e da dignidade humana, a luta pela justiça, o elogio dos valores ecológicos, o exotismo como afirmação de que os sonhos são os mesmos em todos os lugares da Terra. Em Sepúlveda a realidade supera sempre a ficção. Daí que este extraordinário contador de histórias continue a servir-se da sua condição de andarilho das cinco partidas do mundo para nos oferecer, em lampejos de génio, o relato insuperável dos homens e das mulheres que, no anonimato ajudaram, ajudam e ajudarão a construir o verdadeiro rosto da história». In Sinopse.

Histórias Marginais
«Visitei há alguns anos o campo de concentração de Bergen Belsen, na Alemanha. Percorri no meio do silêncio atroz as valas comuns onde jazem milhares de vítimas do horror, perguntando a mim mesmo em qual delas estariam os restos de uma certa menina que nos legou o mais comovedor testemunho acerca da barbárie nazista e a certeza de que a palavra escrita é o maior e o mais invulnerável dos refúgios, porque as suas pedras são ligadas pela argamassa da memória. Caminhei, procurei, mas não encontrei qualquer indício que me levasse à sepultura de Anne Frank. À morte física, os verdugos juntaram uma segunda morte, a do esquecimento e do anonimato. Um morto é um escândalo, mil mortos são uma estatística, afirmou Goebbels, e o mesmo repetiram e repetem os militares chilenos ou argentinos e os seus cúmplices disfarçados de democratas. O mesmo repetiram e repetem os Milosevic, Mladic e os seus cúmplices disfarçados de negociadores de paz. O mesmo no-lo cospem os autores de massacres na Argélia, tão perto da Europa.
Bergen Belsen não é certamente um lugar para passear, porque o peso da infâmia oprime, e à angústia do e que posso eu fazer para que isto não volte a repetir-se?, segue-se o desejo de conhecer e contar a história de cada uma das vítimas, de nos agarrarmos à palavra como único esconjuro contra o esquecimento, de contar, de nomear os factos gloriosos ou insignificantes dos nossos pais, amores, filhos, vizinhos, amigos, de fazer da vida um método de resistência contra o olvido, porque, como notou Guimarães Rosa, narrar é resistir. Numa extremidade do campo e muito próximo do lugar onde se erguiam os infames fornos crematórios, na superfície áspera de uma pedra, alguém (quem?) gravou, talvez com o auxílio de uma faca ou de um prego, o mais dramático dos apelos: eu estive aqui e ninguém contará a minha história. Vi a obra de muitos pintores e, desculpem, desconheço até agora o estremeção emocional que, para além de O Grito de Munch, uma pintura pode causar. Estive também diante de inúmeras esculturas e só nas de Agustín Ibarrola encontrei a paixão e a ternura expressas numa linguagem que as palavras nunca atingirão. Suponho que terei lido uns mil livros, mas nunca um texto me pareceu tão duro, tão enigmático, tão belo e ao mesmo tempo tão dilacerante como aquele, escrito sobre uma pedra. Eu estive aqui e ninguém contará a minha história, escreveu alguém (quando?, uma mulher?, um homem?), pensando na sua saga pessoal única e irrepetível, ou talvez em nome de todos aqueles que não aparecem nos noticiários, que não têm biografias, mas apenas uma esquecediça passagem pelas ruas da vida». In Luis Sepúlveda, As Rosas de Atacama, 2000, Porto Editora, 2020, ISBN 978-972-0-04091-6.

Cortesia de PEditora/JDACT