quinta-feira, 2 de abril de 2020

Viagem ao Fundo das Consciências. A Escravatura na Época Moderna. Maria do Rosário Pimentel. «Por que é que se intensifica a escravatura? Facilidades da oferta e do circuito de comércio e circulação, decerto, mas também aumento da procura…»

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Os escravos na sociedade portuguesa
«(…) A expansão ultramarina, a ocupação e manutenção das praças marroquinas, a colonização de zonas despovoadas de além-mar, a fixação e exploração comercial de certas zonas do ultramar foram outros motivos responsáveis pela dispersão dos portugueses pelo mundo inteiro e por uma certa diminuição populacional na metrópole, sobretudo a partir do século XVI; a intolerância religiosa foi  outro motivo que levou ao afastamento e fuga de muitos judeus e cristãos-novos. Nestas circunstâncias, compreende-se que certos portugueses vissem nas levas de cativos africanos um suplemento de mão-de-obra de baixo custo, capaz de ser utilizada no amanho das terras incultas e rarefeitas de povoadores. Nesse sentido, Vitorino Magalhães Godinho explica a intensificação do emprego de escravos na Europa a partir do século XIV, acentuando a necessidade de mão-de-obra gerada pela saída de trabalhadores:

Por que é que se intensifica a escravatura? Facilidades da oferta e do circuito de comércio e circulação, decerto, mas também aumento da procura, indispensável. Na realidade, impossível é esquecer a situação do mercado da mão-de-obra que a Peste Negra agravou paroxisticamente. A própria crise agrícola que dela resultou (ou que ela pelo menos agudizou) levava a buscar saídas no incremento das actividades comerciais e industriais e em novas culturas de maior rentabilidade. Não podemos desatender ao alastrar das plantações de cana sacarina e ao aparecimento de novos engenhos de açúcar no Levante hispânico no século XIV. E em Portugal vimos já que o mesmo acontece no caso de Trezentos e primeira metade de Quatrocentos. Mas por outro lado, à primeira vista paradoxalmente, a expansão quatrocentista lança o processus emigratório: a terra expulsa os seus filhos, ao mesmo tempo que reclama braços vindos de fora.[...] Afinal, resultado lógico das condições estruturais que persistem através de todo o Antigo Regime peninsular: obstáculo intransponível à promoção social e económica dos desfavorecidos, empurram-nos para ganhar a vida em terras alheias ou que vão valorizar pela primeira vez, enquanto a estrutura persistente tem que ir buscar ao exterior a mão-de-obra de que carece.

Confronte-se esta explicação de Magalhães Godinho com a opinião de Duarte Nunez Leão que justifica a presença em Portugal de muitos míl escravos de Guiné e de outras partes da Etiophia e da India por haver menos obreiros para a lavoura, e por tanto preço, que os lavradores ficão achando maior a despesa que a colheita. Mas os problemas levantados pela falta de braços nos campos, não foram os únicos responsáveis pela importação e grande utilização do escravo. Opondo-se a Magalhães Godinho, José Ramos Tinhorão, no livro Os negros em Portugal, é de opinião que essa intensificação do emprego do escravo se ficou a dever ao problema da nova divisão do trabalho desencadeado pelo incremento da actividade comercial, ligada à ampliação das possibilidades da navegação e das actividades burguesas. O autor continua a sua explicação, afirmando que a desorganização da vida rural provocada pelo deslocamento do centro de interesses económicos do interior para o litoral, levou à decadência da produção agrícola em Portugal e à consequente diminuição da necessidade de trabalhadores rurais. Mas, em contrapartida, o desenvolvimento da vida urbana e do comércio originaram maior procura do trabalho criando nas cidades uma súbita falta de mão-de-obra no sector dos serviços urbanos, só colmatável com a importação de escravos. José Ramos Tinhorão justifica esta explicação com o facto de se concentrar mais mão-de-obra escrava nas cidades do que nos campos.
A importância do trabalho escravo nas cidades, como se verá adiante, é um facto que deve ser realçado e não esquecido. Parece, no entanto, que esta problemática não deve ser polarizada unicamente à volta da situação que se vivia nas cidades, em particular na cidade de Lisboa, ou nos centros onde o desenvolvimento do comércio era mais intenso». In Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao Fundo das Consciências, A Escravatura na Época Moderna, Faculdade de Letras de Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1995, ISBN 972-8047-75-4.

Cortesia de Colibri/JDACT