sábado, 11 de abril de 2020

À Procura de Sana Richard Zimler. «Os fusos horários sucediam-se. E, através de um desses portais, devo ter perdido alguma da minha resistência em aceitar o acaso. Uma constelação inexistente em qualquer mapa celeste…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Conheci Sana no meu terceiro dia em Perth, na tarde de 9 de Fevereiro de 2000. Tinha-me deslocado aí para participar no Encontro de Escritores de Perth e para fazer uma viagem promocional na Austrália e na Nova Zelândia sobre o meu romance mais recente, The Angelic Darkness (Trevas de Luz). Tivemos uma única vez uma conversa bastante demorada e, olhando para trás, em parte parece-me que a razão por que este encontro casual me iria lançar numa investigação de três anos sobre a vida dela se deve ao facto de eu me sentir nessa altura simultaneamente frágil e entusiasmado. E sentia-me assim vulnerável porque tivera uma premonição de morte quando seguia no metropolitano de Londres em direcção ao aeroporto de Heathrow antes do meu voo para Perth. Com uma dor a abrir-se dentro de mim, sentia-me como que caminhando nas águas de um oceano nocturno, a uma distância desesperante das luzes da costa. Sob mim, léguas de uma água parda e fria puxavam-me para o fundo. No meu pânico de afogado, virei-me para falar com um dos meus vizinhos. Mas o perfil do homem idoso que se sentava a meu lado parecia tão lúgubre como as ramagens invernosas arranhando as vidraças das janelas. Mais do que entabular conversa, no entanto, o que eu queria era mudar de pele. Esse momento de pânico mudou a minha vida. Durante os cerca de dois anos que se seguiram, senti-me como que encerrado dentro de parênteses, sem viver realmente a vida que me estava calhada. Nessa noite, a bordo do avião, encostei o nariz à janela e perscrutei as estrelas, na vã esperança de descobrir algum sinal de uma vida eterna que me esperasse.
Os fusos horários sucediam-se. E, através de um desses portais, devo ter perdido alguma da minha resistência em aceitar o acaso. Uma constelação inexistente em qualquer mapa celeste formou-se por momentos e conduziu-me primeiro a Sana e em seguida a Helena. Mas talvez Sana tivesse já planos que retiravam ao nosso encontro um certo ar de coincidência misteriosa. Sofri dois períodos de depressão na minha vida, o primeiro aos doze anos e o último aos dezanove, e quando cheguei a Perth preocupava-me pensar que estava prestes a ter um terceiro. O resultado é que me foi quase impossível dormir mais do que uma ou duas horas por noite. E assim, quando falei com Sana, estava a cair de sono. A exaustão, combinada com o sentimento de trazer a morte no bolso, fez-me olhar para ela em busca de conforto; aspirava ver nela uma estabilidade que sentisse reflectir-se em mim, e dentro de mim. Tendo depositado nela esta esperança, durante algum tempo considerei como uma traição pessoal o que ela fez. Era tolice, naturalmente, uma vez que não éramos sequer conhecidos, e egoísta, também, dadas as circunstâncias. Mas um espírito trémulo que acha que está prestes a voar em chamas raramente busca as escolhas acertadas. Nas semanas que se seguiram à minha partida da Austrália, perdia-me frequentemente a fantasiar que era a mim que cabia ter mudado o futuro de ambos. Acho que sempre desejei possuir poderes mágicos, como ela, como se veio a verificar.

O meu voo de Londres tocou o solo numa madrugada do Verão australiano, em 7 de Fevereiro de 2000. Ao chegar ao Rydges Hotel, no centro de Perth, disseram-me que o meu quarto ainda não estava pronto. Da recepção, telefonei a Alex, em Portugal, onde vivemos, para lhe dizer que estava tudo bem. Menti e disse-lhe que a viagem tinha corrido sem novidade. Mas há já vinte e um anos que estávamos juntos e, ao perceber um travo na minha voz, disse-me para não me deixar ir abaixo, que daí a nove dias iria ter comigo a Sydney, onde me levava a minha digressão de apresentação do livro, a quase cinco mil quilómetros.
O restaurante ficava logo à saída do hotel, e, enquanto esperava que me preparassem o quarto, fui sentar-me na esplanada numa das mesas junto ao passeio. A rua conduzia a um horizonte poeirento de ambos os lados. Os carros que passavam fremiam já com a frenética energia do sol de Verão. Pedi uma Coca-Cola, que bebi de um trago, e depois um chá com leite. Descendo a rua, começaram a surgir homens de camisa branca e óculos de sol pretos, pálidos e magros, os narizes barrados de creme branco como parte da batalha em curso na Austrália contra o cancro da pele. Traziam pastas e usavam chapéus da selva, como outros tantos Crocodile Dundees que tivessem recorrido a empregos de contabilistas quando as percentagens do filme pararam de pingar». In Richard Zimler, À Procura de Sana, Porto Editora, 2019, ISBN: 978-972-003-178-5.

Cortesia de PortoEditora/JDACT