domingo, 12 de abril de 2020

Mistérios de Lisboa. Camilo Castelo Branco. «Quem mais vezes me inquietava nestas ociosas ilusões era o padre. Eu aborrecia o latim e a lógica e os livros e a ciência. A andorinha era o meu modelo…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Era eu um rapaz de catorze anos, e não sabia quem era... Vivia na companhia de um padre e de uma senhora que diziam ser irmã do padre, e de vinte rapazes, que eram meus condiscípulos. Destes, algum mais cultivado em conhecimentos do mundo perguntava-me se eu era filho do padre. E eu não sabia responder-lhe. Ora este padre parecia um homem muito virtuoso; mas nem por isso seria extraordinário eu ser seu filho. Não o ouvira eu nunca salmear na harpa cantares de contrição; mas é rigorosamente lógico que não haja David sem harpa?! Muitas vezes senti o atrevido ímpeto de dizer-lhe: mestre!, perguntam-se se sois meu pai; deverei responder que não, para me deixarem? Nunca, porém, fiz isto, porque entendi que não me era uma das primeiras necessidades da vida saber de quem era filho. Propenso para pensamentos elevados, erguendo os olhos ao céu, via eu, muitas vezes, voar um passarinho. E dizia comigo: perguntem lá àquela criatura de Deus quem é seu pai? Como ela corta por tão alto um espaço que é todo dela! Que liberdade, e que independência! O meu espírito é como aquela andorinha! Eu tenho um mundo tão amplo para voejar como ele! Se eu puder subir, subir, subir até Deus, não terei encontrado meu pai? Isto da terra parece-me uma coisa tão pequena!...
Seria isto uma frioleira de criança: mas eu pensava assim, e não gostava que me acordassem neste meu berço, em que eu próprio me embalava, como se assim quisesse indemnizar-me de carinhos, que nunca recebera ao pé do berço da minha infância. Quem mais vezes me inquietava nestas ociosas ilusões era o padre. Eu aborrecia o latim e a lógica e os livros e a ciência. A andorinha era o meu modelo, e a andorinha não sabia latim. Isto de que serve, dizia eu folheando, aborrecido, o Tito Lívio, será necessário devorar meia existência, consumi-la num luxo de palavrões estéreis, para no fim de tudo ficar o mesmo homem, sem ao menos ter descoberto o sexto sentido do corpo humano? Não afirmo que fosse textualmente assim o meu raciocínio; mas, afora as palavras que a sociedade me ensinou, e que eu lhe não agradeço, a ideia era aquela. Mas a ideia do padre era outra. Constrangia-me a estudar e especializava-me entre os meus condiscípulos. Se o carinho fosse sintoma de paternidade, nunca eu devera inspirar suspeitas de ser filho do mestre. Eu não tinha férias, nem passeios, nem prémios, nem elogios. Era um pária, um bastardo de pai, de mestre, de todo o mundo.
E, contudo, dizia-me a pobre irmã do padre, que eu era o discípulo amado do seu irmão. Explicava, ao seu modo, aquela teoria de amar, e chegava à triunfal conclusão de que, sendo a ciência o meu património, quanto mais cultivado o recebesse das mãos do mestre, mais sagrados títulos recebia para a minha gratidão. Custava-me a perceber isto; mas, sem grande esforço de inteligência, compreendia que era pobre. Não me apaixonava por isso. A andorinha passava nua nas campinas do céu; e adormecia à tarde, sem granjear o alimento da manhã seguinte. Estas razões, dadas assim àquela boa dona Antónia, faziam-na chorar. A sensível mulher chorava com qualquer coisa, e mais não conhecia ainda o mundo..., ou parecia não conhecê-lo. Mas a andorinha não remediava todas as minhas ânsias de curiosidade.
Eu queria saber quem era. Grandezas não me passavam pelo pensamento, nem eu podia fantasiá-las. Sem subsídio, sem adulação, sem uma dádiva misteriosa, que me fizesse cismar num segredo de família, que tinha eu com a grandeza tão eloquente desmentida pela minha jaqueta ordinária!... Um baixo nascimento, com todos os acessórios da indigência, esse sim, lembrava-me muito, e cheguei até a vesti-lo de uma poesia muito triste, mas muito filha da minha índole.
Serei filho de um sapateiro? Serei uma coisa que este padre achou numa esquina como acharia um gato? Serei filho de algum ladrão justiçado, que este padre acompanhou à forca? Estas perguntas começaram a doer-me o coração; mas quisera que me respondessem: és filho de um sapateiro; és um enjeitado, erguido da lama pela mão da caridade; és filho de um ladrão; mas..., cala-te, porque ainda vive o carrasco que enforcou teu pai, e não podes usar de um apelido, que balbuciam os que passam pela praça onde a forca está de pé. Parecia-me que o filho do sapateiro podia ser um primeiro-ministro; que o enjeitado poderia ser um carinhoso pai; que o filho do ladrão poderia ser um juiz implacável para todos os ladrões.
Fatigado em penosas lutas de conjecturas, adormecia, acalentado pela benfazeja ideia de que um filho sem pai conhecido também podia ser um homem conhecido de todo o mundo. Destas altas meditações descia eu muitas vezes a coisas insignificantes. Por exemplo: os meus companheiros tinham, cada um, quatro sobrenomes, cinco sobrenomes, seis, e daí para cima. Ora eu era só João. E os meus companheiros davam uma entonação galhofeira ao meu nome». In Camilo Castelo Branco, Mistérios de Lisboa, 1854, Edições Quidnovi, 2010, ISBN 978-989-628-187-8.

Cortesia de Quidnovi/JDACT