sexta-feira, 30 de junho de 2023

Assim Começa o Mal. Javier Marías. «E a princípio, quando minha vista não sabia onde pousar, minha atenção dividida entre o olho vivo e marítimo e o tapa-olho morto e magnético, não via inconveniente…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Porém o que mais chamava a atenção de quem o via pela primeira vez ao vivo ou numa foto frontal na imprensa, muito escassas, era o tapa-olho que exibia na sua vista  direita, uma venda de caolho das mais clássicas, teatrais ou até cinematográficas, negra e avultada e bem cingida por um elástico fino da mesma cor que cruzava em diagonal a sua testa, e se ajustava sob o lóbulo da orelha esquerda. Sempre me perguntei por que esses tapa-olhos têm curvatura, não os que se limitam a tapar, de pano, mas os que ficam inamovíveis e como que encaixados e são de não sei que material rígido e compacto. (Parecia baquelite, e dava vontade de tamborilar nele com o rosado das unhas para saber como era o tacto, o que nunca ousei averiguar com o do meu empregador, lógico; soube em compensação, isso sim, como soava, pois às vezes, quando estava nervoso ou se irritava, e também quando parava para pensar antes de soltar uma frase ou uma fala, com o polegar sob a axila como se fosse o diminuto bastão de um militar ou de um cavaleiro passando em revista suas tropas ou suas cavalgaduras, Muriel fazia exactamente isso, tamborilava no tapa-olho duro com o branco ou com o filete das unhas da mão livre, como se invocasse em seu auxílio o globo ocular inexistente ou que não servia, devia gostar do som, e de facto era agradável, cric-cric-cric; no entanto, dava um certo arrepio vê-lo chamar assim por seu olho ausente, até se acostumar com esse gesto). Talvez aquele volume buscasse produzir a impressão de que debaixo há um olho, embora talvez não haja, e sim uma órbita vazia, um oco, uma fundura, um afundamento. Talvez esses tapa-olhos sejam convexos precisamente para desmentir a concavidade horrenda que ocultam em alguns casos; quem sabe não estão recheados com uma esfera acabada de vidro brando ou de mármore, com sua pupila e sua íris pintados com realismo ocioso, perfeitos, que nunca hão-de se ver, envolta em negro, ou que só seu dono verá, terminado o dia, ao destapá-la cansado diante do espelho, e quem sabe tirá-la.

E se isso inevitavelmente chamava a atenção, não atraía menos o olho útil e descoberto, o esquerdo, de um azul escuro e intenso, como de mar vespertino ou quase já anoitecido, e que, por ser somente um, parecia captar tudo e se dar conta de tudo, como se houvessem concentrado nele as capacidades próprias e as do outro, invisível e cego, ou como se a natureza quisesse compensar isso com um suplemento de penetração pela perda do seu par. Tantas eram a força e a rapidez desse olho que eu, gradativa e dissimuladamente, tentava me situar às vezes fora do seu alcance para que não me ferisse com seu olhar agudo, até Muriel me admoestar: Fique um pouco à direita, aí quase sai do meu campo de visão e me obriga a me contorcer, lembre-se que ele é mais limitado que o seu.

E a princípio, quando minha vista não sabia onde pousar, minha atenção dividida entre o olho vivo e marítimo e o tapa-olho morto e magnético, não via inconveniente em me chamar a atenção: Juan, estou te falando com o olho que enxerga, não com o defunto, de modo que faça o favor de me ouvir e não se distraia com o que não solta palavra. Muriel fazia aberta referência à sua visão dividida, ao contrário dos que estendem um incómodo véu de silêncio sobre qualquer defeito ou deficiência que possua, por mais visíveis e grandiosos que sejam: há manetas desde a altura do ombro que nunca reconhecem as dificuldades impostas pela manifesta falta de um membro e quase pretendem jogar malabares; pernetas que empreendem com uma muleta a escalada do Annapurna; cegos que continuamente vão ao cinema e criam alvoroço nos trechos sem diálogos, nos mais visuais, queixando-se de que está fora de foco; inválidos em cadeiras de rodas que fingem desconhecer esse veículo e se empenham em subir degraus desdenhando as numerosas rampas que lhes oferecem hoje em toda parte; carecas sem um fio de cabelo que fazem gestos de estarem se despenteando brutalmente, a imaginária cabeleira se endemoninhando, quando começa uma ventania. (Isso é com eles, são livres, não pretendo criticá-los)». In Javier Marías, Assim Começa o Mal, 2015, Alfaguara, ISBN 978-989-665-008-7.

Cortesia de Alfaguara/JDACT

JDACT, Javier Marías, Literatura,

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Conheces Sancho? Maria Helena Ventura. «Tomai-a vós, antes de qualquer outro... Ainda não estou preparado, dom Abril Peres. E vira-lhe as costas, irritado, com ele e com os outros cortesãos que o pressionam da mesma forma. Ainda não esqueceu o que lhe fizeram, o que lhe fez Abril Peres...»

jdact

Como se Modela um Homem

«Sancho acorda de noite banhado em suor, perseguido por pesadelos constantes. A concórdia com as tias e a indemnização ao arcebispo de Braga foram assinadas três meses depois de assumir o trono, mas a trasladação do corpo do pai para Alcobaça ainda não foi cumprida.

O novo chanceler, mestre Vicente, insiste nas campanhas para sul inscritas no plano de Cruzada peninsular, uma ideia trazida de Roma ainda no tempo em que representava seu pai. A fortaleza de Elvas... a fortaleza de Elvas... e todas as noites ele se vê envolvido num baptismo de guerra, entre gritos estridentes de campos de batalha.

Abril Peres ronda, agora menos agressivo. Dia sim, dia não, vem falar-lhe da vantagem de desposar a filha Urraca, a mais formosa donzela do reino. Fez-lhe a vontade, nomeando-o mordomo logo no segundo ano de reinado. Agora arrepende-se de lhe ter confirmado o cargo no princípio deste ano. Quando percebe que os outros privados enaltecem as donzelas da família, Abril insiste no mesmo assunto como se fosse uma prioridade

Tomai-a vós, antes de qualquer outro...

Ainda não estou preparado, dom Abril Peres. E vira-lhe as costas, irritado, com ele e com os outros cortesãos que o pressionam da mesma forma. Ainda não esqueceu o que lhe fizeram, o que lhe fez Abril Peres... Soube, logo depois do pesadelo, que lhe cabiam as culpas pela introdução de uma manceba no quarto, o quarto que pertencera a sua mãe. jamais lhe perdoará essa falta de respeito. Urraca Abril pode ser de grande formosura e piedade, mas nunca será a escolhida por causa da prepotência do pai. Se já se julga com direito a controlá-lo, então julgar-se-ia um vice-rei…

Mas há outra razão de peso para rejeitar a ideia. Martim Gil de Soverosa, filho maior de Gil Vasques, tornou-se seu amigo pessoal. Passam muito tempo juntos, eles e Gil Martins, filho do alferes-mor, a conversar sobre as coisas do reino, intimidades, segredos antigos. Martim já confessou que sente por Urraca uma paixão avassaladora e ela assume que lhe corresponde. É o primeiro amor de ambos, senhor, comenta Gil à mesa do desjejum, antes de os outros chegarem Vejo que estais emocionado, lembra-vos alguma coisa? Lembra-me que sou da mesma idade, e vós, senhor dom Sancho?

Também penso no assunto, mas o que mais me preocupa é a necessidade de fazer mudanças na cúria. Agora que tenho mestre Vicente como chanceler, queria um varão menos iroso do que Abril Peres, para mordomo. Quereis nivelar a cúpula da cúria pela moderação. Gostaria de recuperar Pêro Anes da Nóvoa. Seria uma boa aposta, senhor, mas vai estando entrado na idade... Já me custa ver Abril Peres por aqui, ouvi-lo a toda a hora a repetir sandices. Sinto um estranho afecto por ele, reconheço-lhe qualidades superiores, mas não me agrada nada o seu carácter

Abril é bem apostado, pode ser brando e violento, tanto infunde afectos como ódios. Já falastes com meu pai e mestre Vicente, sobre o assunto? Vosso pai aconselhou-me a esperar mais algum tempo, para ponderarmos melhor. Lembrou que Abril é vingativo, seria bom que não saísse de costas voltadas; quanto a mestre Vicente, deixou ao meu critério. Segui o conselho de meu pai, pondera sempre o que diz. Estou tentado a fazê-lo, mas quem consegue suportar Abril na corte?

Olha sobre o ombro do amigo para um e outro lado, depois baixa o tom de voz para fazer uma revelação com algum constrangimento. Ontem, depois de lhe ter virado as costas e de vir para a minha sala, fui até à janela para respirar ar puro. Abril estava no pátio, a acenar-me e a fazer gestos obscenos. Que gestos, senhor dom Sancho?» In Maria Helena Ventura, Conheces Sancho?, 2016, Saída de Emergência, 2016, ISBN 978-989-637-951-3.

Cortesia de SaídadeEmergência/JDACT

 JDACT, Maria Helena Ventura, Sancho II, História, Literatura, Conhecimento, 

sábado, 17 de junho de 2023

A Rosa dos Ventos. Gonzalo Torrente Ballester. «… depois de me dar as boas-vindas e um abraço, disse-me, em confiança: Tu não és tonto como dizem, pois não Ferdinando?, mas eu pedi-lhe que guardasse segredo e ele, não só ficou silencioso a esse respeito, como continua a chamar-me tonto quando eu não estou presente»

jdact

«Talvez se tenham consolado com a esperança, não de todo impossível, de virem a almoçar com o meu primo, que se proclamou a si mesmo guarda-mor florestal sem necessidade de trâmites. Não espero que nenhum destes acontecimentos passe à História mas, a definição que deu de mim o tão citado vencedor (a quem, a partir de certa página, chamarei, de preferência, a Águia do Leste), por se ter infiltrado nos meios diplomáticos de toda a Europa e pelo facto de o texto da carta figurar, tanto nos comunicados confidenciais, como nos arquivos da coroa, o cognome de tonto é do domínio comum e não haverá já quem se atreva a arrebatar-mo. Nem destronado o perdi. É certo que, no dia em que me expulsaram da minha casa e me acolheu no seu reino o meu bom vizinho Christian, este último, depois de me dar as boas-vindas e um abraço, disse-me, em confiança: Tu não és tonto como dizem, pois não Ferdinando?, mas eu pedi-lhe que guardasse segredo e ele, não só ficou silencioso a esse respeito, como continua a chamar-me tonto quando eu não estou presente. Christian comporta-se como um amigo leal; devo-lhe o meu pão e a terra que piso, a liberdade com que me movo e a anonímia em que me permite viver: Christian tem a suprema galanteria de não contar comigo para nada, evitando-me, assim, o tão penoso papel dos príncipes destronados nas cortes caritativas. O pobre Ferdinando Luís, tonto como era! Pois, até nem o fazia nada mal, apesar de ser tonto. Como podia ele fazer alguma coisa mal, se não fazia nada...? Não seja injusta, minha senhora. Fez pelo menos duas filhas. Acredita que sim, marquês?

Duvida-se que a segunda seja dele. Ah, sim? Não me diga! Há quem pense que é de Lizst, o músico, mas todos julgam que é de Bismark. Bismark! Mas, sobre isto, ainda não há nada escrito. As crianças das escolas daquele que foi o meu país estudam História em livros onde sou referido (sempre em notas de pé de página) como Ferdinando Luís, O Tonto, sem referências à minha vida privada e, como tal, sou dado como morto. Mas, como o meu país já não é sequer um país, mas sim uma parte esquecida do país do meu primo, os livros de História do ensino obrigatório são elaborados na longínqua Corte Imperial, a mais imperial de todas as cortes do mundo, incluindo a de Tombuctu e, os súbditos dessa extremidade do mundo não têm nada a dizer: por alguma razão não somos mais do que uma Finisterra, isso que, noutros tempos, era ser alguma coisa, pelo facto de ter tão à mão o Mistério mas, hoje, se nos conhecem, é pelo nome de um cabo: o Mistério caiu em desuso. Chamam-me O Tonto? Está bem, e depois? Não fiz outra coisa na vida (não convém exagerar: na minha vida fiz um pouco mais do que isso) a não ser organizar e preparar a difusão, entre os que representam a opinião de todos, desse embuste tão cómodo como é a minha tolice. O facto de ser assim chamado nos livros de História, por muito que os seus textos sejam elaborados com as piores intenções pelos esbirros intelectuais do meu primo, constitui o meu triunfo: secreto, mas de íntimas satisfações.

Não sei porquê, parece-me que vou ter que contar várias vezes a história do meu destronamento, ainda que, espero, de modo diferente de cada uma delas; quero dizer, as mesmas coisas com distintas palavras e a partir de pontos de vista variados; se calhar ainda me engano, porque não tenho muito claro aquilo que vou contar. Na realidade, neste caderno não se encerra senão a recordação, um tanto arrevesada, do meu destronamento, ainda que esse não seja o facto mais importante dentre os que aqui se contam e, sim, o seu pretexto e a sua trama. Mas convém não esquecer que o narrador sou eu, e que conto como me apetece: ainda que isso não tenha importância, às vezes gosto de fazer crer que sou aquilo a que se chama uma personagem histórica ou de me dar ares disso, ainda que das de menor vulto, muito abaixo dos imperadores. Não é possível desempenhar um papel suficientemente digno quando nos encontramos, pelo nascimento, em categorias tão intermédias e estou até persuadido de que semelhante papel não só se pode como se deve fazer: mesmo que isso acarrete consigo o risco de o representar com dignidade idêntica e a mesma solenidade que os verdadeiros protagonistas da História e que, inclusivamente, possa acontecer que o secundário supere o principal nesses matizes de estilo: tenho visto cada príncipe consorte...! O meu primo Carlos Frederico Guilherme passeia pela Europa com todas as plumas que o seu capacete de guerreiro pode suportar para se sentir alto; uma vez fotografámo-nos juntos e eu excedia-o nas plumas e na distinção». In Gonzalo Torrente Ballester, A Rosa dos Ventos, 1995, Difel, ISBN 972-290-326-8.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Gonzalo Torrente Ballester, Literatura, 

A Rosa dos Ventos. Gonzalo Torrente Ballester. «Quanto teria gostado de ver como me marcariam rendez-vous estes animaizinhos debaixo de alguma bétula milenária! Mas, quando o expediente burocrático se encontrava a meio dos seus trâmites…»

jdact

«Há uma carta do meu primo Carlos Frederico Guilherme dirigida ao meu igualmente primo Guilherme Frederico Carlos, na qual, com bastante cautela, ainda que, também, com a rude franqueza dos soldados, se diz de mim que sou o mais tonto dos príncipes reinantes e, inclusive, daqueles que nunca reinaram ou dos que nunca reinarão por não terem onde cair mortos. O meu primo Carlos Frederico Guilherme sempre foi muito amável comigo e, quando me expulsou do exíguo trono que me restava, ainda que por transmissão directa e milenária (e não como ele, bastardo vergonhoso de um embaixador turco), fê-lo observando todos os requisitos legais e sem me humilhar mais do que o necessário: foi assim que não enviou, para invadir o meu território, mais de cem soldados, tendo em conta que o meu exército, desde a passagem memorável de Napoleão pelos meus estados (demasiado rápida, por sorte), nunca excedeu os quarenta e nove, sargentos e oficiais subalternos incluídos: não incluo no cômputo os oficiais superiores porque, no meu grão-ducado, era oficial toda a gente, apesar de ninguém aparecer no quartel, entre outras razões válidas, porque a sua condição honorária quase não lhes dava outro direito além do de usar uniformes espectaculares, que era o que mais lhes interessava: tanto assim que, quando o meu primo me substituiu, as suas primeiras medidas legais foram no sentido de manter o direito dos comerciantes e dos industriais, que o haviam favorecido, a levar pendurada no ombro uma jaqueta profusamente ornamentada e de cores vivas, nos desfiles a cavalo. Que divertida minúcia histórica seria a de observar quanto se fez na Europa e quanto aconteceu no mundo, só para as pessoas poderem andar de uniforme, sobretudo aquelas a quem falta um direito razoável e não meramente imaginário!

O comandante do meu exército não era desses: tinha estudado nas melhores escolas e, ainda que também não pusesse os pés no quartel, fazia-o pelas mesmas razões pelas quais eu também lá não ia, e que têm que ver com essa definição de tonto, tão amável e tão cómoda, que deu de mim meu primo; mas, como hei-de falar outras vezes desse comandante, limitar-me-ei agora a dizer que perfazia o número cinquenta do exército efectivo e, se se me considerar a mim, também, como militar, enquanto chefe supremo, tal como costumam intitular-se todos os chefes de Estado, o número excede a meia centena, graças a essa mínima, solitária, universal, unidade que era eu, um príncipe um pouco tonto. Aconteceu que também a Polícia Municipal enquanto força armada, considerou que seria vistoso ter-me como chefe superior e vistosamente decorativo e não ao burgomestre, que era então um tal Fritz, com quem se armou um escândalo de ressonância amplamente ultramarina: no meu país, rodeado de mar por quase todos os lados, por pouco que alguém grite, os seus gritos de protesto, de dor ou de espanto chegam às costas do outro lado, que ficam longe; pois um redactor principiante do The Times veio coscuvilhar o que se passava e contou-o em Londres com notória falta de medida no tratamento verbal (já se sabe que os Ingleses têm um sentido de humor muito peculiar, sobretudo quando se trata de países que carecem de marinha de guerra) e, nas chancelarias mais atentas, temeu-se uma contenda civil, ao ponto de o meu primo ter chegado a enviar investigadores secretos. Chegamos a acordo, o burgomestre e eu, que o meu nome deixaria de figurar em ambas as nóminas, a do Exército e a da Polícia, com o que ficou contente, eu tive uma festa a menos a que assistir e os efectivos do Exército recuperaram o número de sempre, essa meia centena que, além de redonda é muito bonita: a minha idade de agora, por exemplo, o que se pode chamar a verdadeira flor da vida quando se é um tonto destronado. Os guardas florestais estiveram quase a alterar esse statu quo tão trabalhosamente acordado, porque se lembraram de me proclamar guarda-mor das pradarias e dos bosques, com jurisdição real sobre ursos, veados e doninhas. Quanto teria gostado de ver como me marcariam rendez-vous estes animaizinhos debaixo de alguma bétula milenária! Mas, quando o expediente burocrático se encontrava a meio dos seus trâmites, Carlos Frederico Guilherme lembrou-se de me destronar e, se eu perdi a ocasião de senhorear uns quantos plantígrados inofensivos, os guardas florestais sentiram-se muito defraudados nos seus desejos de me ter como colega e de almoçar comigo, pelo menos uma vez por ano». In Gonzalo Torrente Ballester, A Rosa dos Ventos, 1995, Difel, ISBN 972-290-326-8.

 Cortesia de Difel/JDACT

 JDACT, Gonzalo Torrente Ballester, Literatura,

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Assim Começa o Mal. Javier Marías. «Fique um pouco à direita, aí você quase sai do meu campo de visão e me obriga a me contorcer, lembre-se que ele é mais limitado que o seu»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Porém o que mais chamava a atenção de quem o via pela primeira vez ao vivo ou numa foto frontal na imprensa, muito escassas, era o tapa-olho que exibia em sua vista direita, uma venda de caolho das mais clássicas, teatrais ou até cinematográficas, negra e avultada e bem cingida por um elástico fino da mesma cor que cruzava em diagonal a sua testa, e se ajustava sob o lóbulo da orelha esquerda. Sempre me perguntei por que esses tapa-olhos têm curvatura, não os que se limitam a tapar, de pano, mas os que ficam inamovíveis e como que encaixados e são de não sei que material rígido e compacto. (Parecia baquelite, e dava vontade de tamborilar nele com o rosado das unhas para saber como era o tacto, o que nunca ousei averiguar com o do meu empregador, lógico; soube em compensação, isso sim, como soava, pois às vezes, quando estava nervoso ou se irritava, e também quando parava para pensar antes de soltar uma frase ou uma fala, com o polegar sob a axila como se fosse o diminuto bastão de um militar ou de um cavaleiro passando em revista suas tropas ou suas cavalgaduras, Muriel fazia exactamente isso, tamborilava no tapa-olho duro com o branco ou com o filete das

unhas da mão livre, como se invocasse em seu auxílio o globo ocular inexistente ou que não servia, devia gostar do som, e de facto era agradável, cric-cric-cric; no entanto, dava um certo arrepio vê-lo chamar assim por seu olho ausente, até você se acostumar com esse gesto)

Talvez aquele volume buscasse produzir a impressão de que debaixo há um olho, embora talvez não haja, e sim uma órbita vazia, um oco, uma fundura, um afundamento. Talvez esses tapa-olhos sejam convexos precisamente para desmentir a concavidade horrenda que ocultam em alguns casos; quem sabe não estão recheados com uma esfera acabada de vidro brando ou de mármore, com sua pupila e sua íris pintados com realismo ocioso, perfeitos, que nunca hão-de se ver, envolta em negro, ou que só seu dono verá, terminado o dia, ao destapá-la cansado diante do espelho, e quem sabe tirá-la.

E se isso inevitavelmente chamava a atenção, não atraía menos o olho útil e descoberto, o esquerdo, de um azul escuro e intenso, como de mar vespertino ou quase já anoitecido, e que, por ser somente um, parecia captar tudo e se dar conta de tudo, como se houvessem concentrado nele as capacidades próprias e as do outro, invisível e cego, ou como se a natureza quisesse compensar isso com um suplemento de penetração pela perda do seu par. Tantas eram a força e a rapidez desse olho que eu, gradativa e dissimuladamente, tentava me situar às vezes fora do seu alcance para que não me ferisse com seu olhar agudo, até Muriel me admoestar: Fique um pouco à direita, aí você quase sai do meu campo de visão e me obriga a me contorcer, lembre-se que ele é mais limitado que o seu». In Javier Marías, Assim Começa o Mal, 2015, Alfaguara, ISBN 978-989-665-008-7.

 Cortesia de Alfaguara/JDACT

 JDACT, Javier Marías, Literatura, 

Coração Tão Branco. Javier Marías. «Ya en el viaje de bodas, cuando este cambio de estado empezó a operarse (y no es muy exacto decir que empezó, es un cambio violento y que no deja respiro), me di cuenta de que me era muy difícil pensar en ella…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Eso fue hace mucho tiempo, cuando yo aún no había nacido ni tenía la menor posibilidad de nacer, es más, sólo a partir de entonces tuve posibilidad de nacer. Ahora mismo yo estoy casado y no hace ni un año que regresé de mi viaje de bodas con Luisa, mi mujer, a la que conozco desde hace sólo veintidós meses, un matrimonio rápido, bastante rápido para lo mucho que siempre se dice que hay que pensárselo, incluso en estos tiempos precitados que no tienen nada que ver con aquellos aunque no estén muy lejanos (los separa, por ejemplo, una sola vida incompleta o quizá ya mediada, mi propia vida, o la de Luís en que todo era reflexivo y pausado y todo tenía peso, hasta las tonterías, no digamos las muertes, y las muertes por la propia mano, como esa muerte de quien debió ser mi tía Teresa y a la vez no podría haberlo sido nunca y fue sólo Teresa Aguilera, sobre la que he ido sabiendo poco a poco, nunca a través de su hermana menor, mi madre, que casi siempre callaba durante mi infancia y mi adolescencia y luego murió también y calló para siempre, sino a través de personas más distantes o accidentales, y por fin a través de Ranz, el marido de ambas y también de otra mujer extranjera con la que yo no guardo parentesco. La verdad es que si en tiempos recientes he querido saber lo que sucedió hace mucho ha sido justamente a causa de mi matrimonio (pero más bien no he querido, y lo he sabido).

Desde que lo contraje (y es un verbo en desuso, pero muy gráfico y útil) empecé a tener toda suerte de presentimientos de desastre, de forma parecida a como cuando se contrae una enfermedad, de las que jamás se sabe con certidumbre cuándo uno podrá curarse. La frase hecha cambiar de estado, que normalmente se emplea a la ligera y por ello quiere decir muy poco, es la que me parece más adecuada y precisa en mi caso, y le confiero gravedad, en contra de la costumbre. Del mismo modo que una enfermedad cambia tanto nuestro estado como para obligarnos a veces a interrumpirlo todo y guardar cama durante días incalculables y a ver el mundo ya sólo desde nuestra almohada, mi matrimonio vino a suspender mis hábitos y aun mis convicciones, y, lo que es más decisivo, también mi apreciación del mundo. Quizá porque fue un matrimonio algo tardío, mi edad era de treinta y cuatro años cuando lo contraje. El problema mayor y más común al comienzo de un matrimonio razonablemente convencional es que, pese a lo frágiles que resultan en nuestro tiempo y a las facilidades que tienen los contrayentes para desvincularse, por tradición es inevitable experimentar una desagradable sensación de llegada, por consiguiente de punto final…

… México, luego a La Habana), tuve dos sensaciones desagradables, y aún me pregunto si la segunda fue y es sólo una fantasía, inventada o hallada para paliar la primera, o para combatirla. Ese primer malestar es el que ya he mencionado, el que, por lo que uno oye, y por el tipo de bromas que se gastan a los que van a casarse, y por los muchos refranes negativistas que al respecto hay en mi lengua, debe de ser común a todos los desposados (sobre todo a los hombres) en ese inicio de algo que incomprensiblemente se ve y se vive como el fin de ese algo. Ese malestar se resume en una frase muy aterradora, e ignoro qué harán los demás para sobreponerse a ella: Y ahora qué?

Ese cambio de estado, como la enfermedad, es incalculable y lo interrumpe todo, o al menos no permite que nada siga como hasta entonces: no permite, por ejemplo, que después de ir a cenar o al cine cada uno se vaya a su propia casa y nos separemos, y yo deje con el coche o un taxi en su portal a Luisa y luego, una vez dejada, yo haga un recorrido a solas por las calles semivacías y siempre regadas, pensando en ella seguramente, y en el futuro, a solas hacia mi casa. Una vez casados, a la salida del cine los pasos se encaminan juntos há lugar (resonando a destiempo porque ya son cuatro los pies que caminan), pero no porque yo haya decidido acompañarla o ni siquiera porque tenga la costumbre de hacerlo y me parezca justo y educado hacerlo, sino porque ahora los pies no vacilan sobre el pavimento mojado, ni deliberan, ni cambian de idea, ni pueden arrepentirse ni elegir tampoco: ahora no hay duda de que vamos al mismo sitio, querámoslo o no esta noche, o quizá fue anoche cuando yo no lo quise.

Ya en el viaje de bodas, cuando este cambio de estado empezó a operarse (y no es muy exacto decir que empezó, es un cambio violento y que no deja respiro), me di cuenta de que me era muy difícil pensar en ella, y totalmente imposible pensar en el futuro, que es uno de los mayores placeres concebibles para cualquier persona, si no la diaria salvación de todos? pensar vagamente, errar con el pensamiento puesto en lo que ha de venir o puede venir, preguntarse sin demasiada concreción ni interés por lo que será de nosotros mañana mismo o dentro de cinco años, por lo que no prevemos. Ya en el viaje de bodas era com si se hubiera perdido y no hubiera futuro abstracto, que es el que importa porque el presente no puede teñirlo ni asimilarlo». In Javier Marías, Coração Tão Branco, 1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN 972-708-247-5, Randon House, 2006, Barcelona, ISBN 10.84-8346-140-4.

Cortesia de Relógio D’Água/Randon House/ JDACT

JDACT, Javier Marías, Literatura, Espanha,  

Quando a China Mandar no Mundo. Martin Jacques. «… the US’s position in the world, Bush’s foreign policy seriously weakened it. The neo-conservative position represented a catastrophic misreading of history»

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The Changing of the Guard. O Render da Guarda

«(…) According to projections by Goldman Sachs, the three largest economies in the world by 2050 will be China, followed by a closely matched America and India some way behind, and then Brazil, Mexico, Russia and Indonesia. Only two European countries feature in the top ten, namely the UK and Germany in ninth and tenth place respectively. Of the present G7, only four appear in the top ten. In similar forecasts, Pricew ater house Coopers suggest that the Brazilian economy could be larger than Japan’s, and that the Russian, Mexican and Indonesian economies could each be bigger than the German, French and UK economies by 2050. If these projections, or something similar, are borne out in practice, then during the next four decades the world will come to look like a very different place indeed.

Such a scenario was far from people’s minds in 2001. Following 9/11, the United States not only saw itself as the sole superpower but attempted to establish a new global role which refl ected that pre-eminence. The neo-conservative think-tank Project for the New American Century, established in 1997 by, amongst others, Dick Cheney, Donald Rumsfeld and Paul Wolfowitz, adopted a statement of principles which articulated the new doctrine and helped prepare the ground for the Bush administration: As the 20th century draws to a close, the United States stands as the world’s preeminent power. Having led the West to victory in the Cold War, America faces na opportunity and a challenge: Does the United States have the vision to build upon the achievements of past decades? Does the United States have the resolve to shape a new century favorable to American principles and interests?

In 2004 the infl uential neo-conservative Charles Krauthammer wrote:

On December 26, 1991, the Soviet Union died and something new was born, something utterly new, a unipolar world dominated by a single superpower unchecked by any rival and with decisive reach in every corner of the globe. This is a staggering development in history, not seen since the fall of Rome.

The new century dawned with the world deeply aware of and preoccupied by the prospect of what appeared to be overwhelming American power. The neo-conservatives chose to interpret the world through the prism of the defeat of the Soviet Union and the overwhelming military superiority enjoyed by the United States, rather than in terms of the underlying trend towards economic multipolarity, which was downplayed. The new doctrine placed a premium on the importance of the United States maintaining a huge militar lead over other countries in order to deter potential rivals, and on the US pursuing its own interests rather than being constrained either by its allies or international agreements.In the post-Cold War era, US military expenditure was almost as great as that of all the other nations of the world combined: never in the history of the human race has the military inequality between one nation and all others been so great. The Bush presidency’s foreign policy marked an important shift compared with that of previous administrations: the war on terror became the new imperative, America’s relations with Western Europe were accorded reduced signifi cance, the principle of national sovereignty was denigrated and that of regime-change affi rmed, culminating in the invasion of Iraq. Far from the United States presiding over a reshaping of global affairs, however, it rapidly found itself beleaguered in Iraq and enjoying less global support than at any time since 1945. The exercise of overwhelming military power proved of little effect in Iraq but served to squander the reserves of soft power, in Joseph S. Nye’s words, the attractiveness of a country’s culture, political ideals and policies, that the United States had accumulated since 1945. Failing to comprehend the signifi cance of deeper economic trends, as well as misreading the situation in Iraq, the Bush administration overestimated American power and thereby overplayed its hand, with the consequence that its policies had exactly the opposite effect to that which had been intended: instead of enhancing the US’s position in the world, Bush’s foreign policy seriously weakened it. The neo-conservative position represented a catastrophic misreading of history». In Martin Jacques, Quando a China Mandar no Mundo, 2009, 2012, Temas e Debates, Círculo de Leitores, ISBN 978-989-644-196-8, Penguin Books, ISBN 978-0-713-992-540.

Cortesia de TeDebates/CdeLeitores/PenguinB/JDACT

JDACT, Martin Jacques, Literatura, Economia, China, Conhecimento,

domingo, 11 de junho de 2023

Assim Começa o Mal. Javier Marías. «Tinha um nariz bem recto, sem sombra de curvatura apesar de seu bom tamanho, e no cabelo denso, penteado com água e repartido, como certamente sua mãe o penteara…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Ou só os trazia a morte de um dos cônjuges, às vezes longamente ansiada em silêncio e menos vezes procurada ou induzida ou buscada, em geral ainda mais em silêncio, ou seria, melhor dizendo, em indizível segredo. Ou a morte dos dois, claro, e então já não havia mais nada, só os ignorantes filhos que tiveram, se havia e sobreviviam, e uma breve recordação. Ou talvez uma história, ocasionalmente. Uma história subtil e quase nunca contada, como não se costuma contar as histórias da vida íntima, tantas mães impávidas até o último alento, e também tantas não mães; ou talvez sim, mas em sussurros, para que não sejam por completo como se não tivessem sido, nem fiquem no mudo travesseiro no qual, em prantos, afundou o rosto, nem tão só à vista do sonolento olho entreaberto da lua sentinela e fria.

Eduardo Muriel tinha um bigode fino, como se o tivesse deixado crescer quando o actor Errol Flynn era uma referência e depois tivesse esquecido de mudá-lo ou espessá-lo, um desses homens de hábitos fixos no que diz respeito a seu aspecto, dos que não se dão conta de que o tempo passa e as modas mudam nem de que estão envelhecendo, é como se isso não lhes dissesse respeito e o descartassem, e se sentissem a salvo do transcurso, e até certo ponto têm razão de não se preocupar nem dar importância: por não condizer com a sua idade, a mantêm sob controle; não cedendo a ela no aspecto externo, acabam por não assumi-la, e assim os anos, temerosos, se avalentoam com quase todo mundo,, os rondam e rodeiam, mas não se atrevem a se apossar deles, não se assentam em seu espírito e tampouco invadem sua aparência, sobre a qual vão apenas lançando um lentíssimo granizo ou penumbra.

Era alto, bem mais que a média de seus companheiros de geração, a seguinte à de meu pai, se é que não a mesma, ainda. Era forte e estilizado por isso ao primeiro olhar, embora sua figura não fosse ortodoxamente viril: era um tanto estreito de ombros para a sua estatura, o que fazia parecer que o abdomem se alargava apesar de não ter nenhuma gordura nessa zona nem inconvenientes cadeiras protuberantes, e dali surgiam umas pernas compridas que ele não sabia onde colocar quando estava sentado: cruzava-as (e era o que preferia fazer com elas, entre tudo), o pé da que ficava em cima alcançava o chão naturalmente, o que algumas mulheres orgulhosas de suas pantufas, não desejam mostrar uma pendente, nem engrossada ou deformada pelo joelho que a sustenta, conseguem mediante artificialidade e escorço, e com ajuda de seus saltos altos. Por essa estreiteza dos ombros, Muriel costumava usar casaco com ombreiras bem disfarçadas, acho, ou então o alfaiate as confeccionava com ligeira forma de trapézio invertido (ainda nos anos 70 e 80 do século passado ia ao alfaiate ou o recebia em sua casa, quando isso já era incomum).

Tinha um nariz bem recto, sem sombra de curvatura apesar de seu bom tamanho, e no cabelo denso, penteado com água e repartido, como certamente sua mãe o penteara desde criança, e ele não via razão para infringir aquele antigo ditame, brilhavam alguns fios brancos dispersos pelo castanho escuro dominante. O bigode fino pouco atenuava o espontâneo e luminoso e juvenil do seu sorriso. Esforçava-se para refreá-lo ou guardá-lo, mas com frequência não conseguia. Havia um fundo de jovialidade em seu carácter, ou um passado que emergia sem que tivesse de lançar a sonda em grandes profundidades. Não obstante, também não o convocava em águas muito superficiais: nelas flutuava certa amargura imposta ou deliberada, da qual não devia se sentir causador, mas, no máximo, vítima». In Javier Marías, Assim Começa o Mal, 2015, Alfaguara, ISBN 978-989-665-008-7.

Cortesia de Alfaguara/JDACT

JDACT, Javier Marías, Literatura,

Assim Começa o Mal. Javier Marías. «Também não foi essa minha circunstância, afinal. Não fui nem um pouco passivo, nem fingi ser uma miragem, não tentei me fazer invisível»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Não faz muito tempo que aquela história aconteceu, menos do que costuma durar uma vida, e quão pouco é uma vida quando ela já está terminada e já se pode contá-la em poucas frases e só ficam na memória cinzas que se soltam à menor sacudida e voam à menor lufada, e no entanto hoje ela seria impossível. Refiro-me sobretudo ao que aconteceu com eles, com Eduardo Muriel e sua mulher, Beatriz Noguera, quando eram jovens, e não tanto ao que aconteceu comigo e com eles quando eu era jovem e o casamento deles uma longa e indissolúvel desdita. Este último, sim, continuaria sendo possível: o que aconteceu comigo, já que também agora acontece, ou talvez seja a mesma coisa que não termina.

E igualmente poderia ser, acredito, o que aconteceu com Van Vechten e outros factos daquela época. Deve ter havido Van Vechtens em todos os tempos e não cessarão e continuarão existindo, a índole dos personagens não muda nunca, ou assim parece, os da realidade e os da ficção, sua gémea, se repetem ao longo dos séculos como se as duas esferas carecessem de imaginação ou não tivessem escapatória (ambas obra dos vivos, afinal de contas, talvez entre os mortos haja mais inventividade), às vezes dá a sensação de desfrutarmos um só espectáculo e um só relato, como as crianças pequeninas. Com suas infinitas variantes, que os disfarçam de antiquados ou novos, mas que são na essência sempre os mesmos. Também deve ter existido, portanto, Eduardos Muriel e Beatrizes Noguera em todos os tempos, para não falarmos nos comparsas; e Juanes de Vere aos montes, assim me chamava e assim me chamo, Juan Vere ou Juan de Vere, conforme quem diga ou pense meu nome. Minha figura não tem nada de original.

Na época ainda não existia divórcio, muito menos se podia esperar que viesse a existir um dia quando Muriel e sua mulher se casaram, uns vinte anos antes de eu me imiscuir em suas vidas, ou melhor, foram eles que atravessaram a minha, apenas a de um principiante, como se diz. Mas desde o momento em que está no mundo começam a lhe acontecer coisas. Sua frágil roda incorpora com cepticismo e tédio e o arrasta sem a menor vontade, pois é velha e triturou muitas vidas sem pressa à luz da sua vigia folgazã; a lua fria que cochila e observa com uma só pálpebra entreaberta conhece as histórias antes mesmo de acontecerem. E basta prestar atenção em alguém, ou lhe lançar um olhar indolente, e esse alguém não poderá mais escapar, mesmo que se esconda e permaneça quieto e calado e não tome iniciativas nem faça nada. Mesmo que ele queira se esconder, já o terão visto, como um vulto distante no oceano, que não se pode ignorar, do qual é preciso se esquivar ou se aproximar; ele conta para os outros, e os outros contam com ele, até que desaparece. Também não foi essa minha circunstância, afinal. Não fui nem um pouco passivo, nem fingi ser uma miragem, não tentei me fazer invisível.

Sempre me perguntei como é que as pessoas se atreviam a contrair matrimónio, e se atreveram séculos a fio, quando isso tinha um carácter definitivo; em especial as mulheres, para as quais era mais difícil encontrar desafogos ou tinham de se esmerar o dobro ou o triplo para ocultá-los, o quíntuplo se voltavam desses desafogos com um novo ser, e então tinham de mascará-lo antes mesmo que se configurasse nele um rosto e pudesse trazê-lo à terra: desde o instante da sua concepção, ou da sua detecção, ou do seu pressentimento, não vamos dizer desde o seu anúncio, e transformado em impostor durante sua existência inteira, muitas vezes sem que ele jamais soubesse da sua impostura ou da sua procedência bastarda, nem mesmo quando era um velho e estava a ponto de não ser mais detectado por ninguém. É incontável o número de criaturas que tomaram por pai quem não era o seu, e por irmãos quem o era pela metade, e foram para a tumba com a crença e o erro intactos, ou é o engano a que as submeteram as impávidas mães desde o nascimento. Ao contrário das doenças e das dívidas, as outras duas coisas que em espanhol mais se contraem, as três compartilham o verbo como se todas fossem mau prognóstico ou mau agouro, ou em todo caso trabalhosas, para o casamento era certo que não havia cura nem remédio nem saldo». In Javier Marías, Assim Começa o Mal, 2015, Alfaguara, ISBN 978-989-665-008-7.

Cortesia de Alfaguara/JDACT

JDACT, Javier Marías, Literatura,

sábado, 10 de junho de 2023

Coração Tão Branco. Javier Marías- «El marido, el cuñado, corría detrás muy pálido, con una mano sobre el hombro del hermano, como si quisiera frenarlo para que no viera lo que podía ver, o bien agarrarse a él. La doncella…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Aquella mañana por haber invitados; y una vez lista y montada la tarta, y cuando hubo calculado que en el comedor habrían terminado el segundo plato, la había llevado hasta allí y la había depositado sobre una mesa en la que, para su desconcierto, aún había restos de carne y cubiertos y servilletas soltados de cualquier manera sobre el mantel y ningún comensal (sólo había un plato totalmente limpio, como si uno de ellos, la hija mayor, hubiera comido más rápido y lo hubiera rebañado además, o bien ni siquiera se hubiera servido carne). Se dio cuenta entonces de que, como solía, había cometido el error de llevar el postre antes de retirar los platos y poner otros nuevos, pero no se atrevió a recoger aquéllos y amontonarlos por si los comensales ausentes no los daban por finalizados y querían reanudar (quizá debía haber traído fruta también). Como tenía ordenado que no anduviera por la casa durante las comidas y se limitara a hacer sus recorridos entre la cocina y el comedor para no importunar ni distraer la atención, tampoco se atrevió a unirse al murmullo del grupo agrupado a la puerta del cuarto de baño por no sabía aún qué motivo, sino que se quedó esperando, las manos a la espalda y la espalda contra el aparador, mirando con aprensión la tarta que acababa de dejar en el centro de la mesa desierta y preguntándose si no debería devolverla a la nevera al instante, dado el calor. Canturreó un poco, levantó un salero caído, sirvió vino a una copa vacía, la de la mujer del médico, que bebía rápido.

Al cabo de unos minutos de contemplar cómo esa tarta empezaba a perder consistencia, y sin verse capaz de tomar una decisión, oyó el timbre de la puerta de entrada, y como una de sus funciones era atenderla, se ajustó la cofia, se puso el delantal más recto, comprobó que sus medias no estaban torcidas y salió al pasillo. Echó un vistazo fugaz a su izquierda, hacia donde estaba el grupo cuyos murmullos y exclamaciones había oído intrigada, pero no se entretuvo ni se acercó y fue hacia la derecha, como era su obligación. Al abrir se encontró con risas que terminaban y con un fuerte olor a colonia (el descansillo a oscuras) procedente del hijo mayor de la familia o del reciente cuñado que había regresado de su viaje de bodas no hacía mucho, pues llegaban los dos a la vez, posiblemente porque habían coincidido en la calle o en el portal (sin duda venían a tomar café, pero nadie había hecho aún el café). La doncella casi rió por contagio, se hizo a un lado y los dejó pasar, y aún tuvo tiempo de ver cómo cambiaba en seguida la expresión de sus rostros y se apresuraban por el pasillo hacia el cuarto de baño de la multitud.

El marido, el cuñado, corría detrás muy pálido, con una mano sobre el hombro del hermano, como si quisiera frenarlo para que no viera lo que podía ver, o bien agarrarse a él. La doncella no regresó ya al comedor, sino que los siguió, apretando también el paso por asimilación, y cuando llegó a la puerta del cuarto de baño volvió a notar, aún más fuerte, el olor a colonia buena de uno de los caballeros o de los dos, como si se hubiera derramado un frasco o lo hubiera acentuado un repentino sudor. Se quedó allí sin entrar, con la cocinera y con los invitados, y vio, de reojo, que el chico de la tienda pasaba ahora silbando de la cocina al comedor, buscándola seguramente; pero estaba demasiado asustada para llamarle o reñirle o hacerle caso. El chico, que había visto bastante con anterioridad, sin duda permaneció un buen rato en el comedor y luego se fue sin decir adiós ni llevarse los cascos de botellas vacíos, ya que cuando horas después la tarta derretida fue por fin retirada y arrojada a la basura envuelta en papel, le faltaba una considerable porción que ninguno de los comensales se había comido y la copa de la mujer del médico volvía a estar sin vino. Todo el mundo dijo que Ranz, el cuñado, el marido, mi padre, había tenido muy mala suerte, ya que enviudaba por segunda vez». In Javier Marías, Coração Tão Branco, 1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN 972-708-247-5, Randon House, 2006, Barcelona, ISBN 10.84-8346-140-4.

Cortesia de Relógio D’Água/Randon House/ JDACT

JDACT, Javier Marías, Literatura, Espanha,

Quando a China Mandar no Mundo. Martin Jacques. «The new century dawned with the world deeply aware of and preoccupied by the prospect of what appeared to be overwhelming American power»

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The Changing of the Guard. O Render da Guarda

«(…) According to projections by Goldman Sachs, the three largest economies in the world by 2050 will be China, followed by a closely matched America and India some way behind, and then Brazil, Mexico, Russia and Indonesia Only two European countries feature in the top ten, namely the UK and Germany in ninth and tenth place respectively. Of the present G7, only four appear in the top ten. In similar forecasts, Price water house Coopers suggest that the Brazilian economy could be larger than Japan’s, and that the Russian, Mexican and Indonesian economies could each be bigger than the German, French and UK economies by 2050. If these projections, or something similar, are borne out in practice, then during the next four decades the world will come to look like a very different place indeed.

Such a scenario was far from people’s minds in 2001. Following, the United States not only saw itself as the sole superpower but attempted to establish a new global role which refl ected that pre-eminence. The neo-conservative think-tank Project for the New American Century, established in 1997 by, amongst others, Dick Cheney, Donald Rumsfeld and Paul Wolfowitz, adopted a statement of principles which articulated the new doctrine and helped prepare the ground for the Bush administration:

As the 20th century draws to a close, the United States stands as the world’s preeminent power. Having led the West to victory in the Cold War, America faces na opportunity and a challenge: Does the United States have the vision to build upon the achievements of past decades? Does the United States have the resolve to shape a new century favorable to American principles and interests?

In 2004 the infl uential neo-conservative Charles Krauthammer wrote:

On December 26, 1991, the Soviet Union died and something new was born, something utterly new, a unipolar world dominated by a single superpower unchecked by any rival and with decisive reach in every corner of the globe. This is a staggering development in history, not seen since the fall of Rome.

The new century dawned with the world deeply aware of and preoccupied by the prospect of what appeared to be overwhelming American power. The neo-conservatives chose to interpret the world through the prism of the defeat of the Soviet Union and the overwhelming military superiority enjoyed by the United States, rather than in terms of the underlying trend towards economic multipolarity, which was downplayed. The new doctrine placed a premium on the importance of the United States maintaining a huge military lead over other countries in order to deter potential rivals, and on the US pursuing its own interests rather than being constrained either by its allies or international agreements.10 In the post-Cold War era, US military expenditure was almost as great as that of all the other nations of the world combined: never in the history of the human race has the military inequality between one nation and all others been so great. The Bush presidency’s foreign policy marked an important shift compared with that of previous administrations: the war on terror became the new imperative, America’s relations with Western Europe were accorded reduced signifi cance, the principle of national sovereignty was denigrated and that of regime-change affirmed, culminating in the invasion of Iraq». In Martin Jacques, Quando a China Mandar no Mundo, 2009, 2012, Temas e Debates, Círculo de Leitores, ISBN 978-989-644-196-8, Penguin Books, ISBN 978-0-713-992-540.

 Cortesia de TeDebates/CdeLeitores/PenguinB/JDACT

JDACT, Martin Jacques, Literatura, Economia, China, Conhecimento,

Quando a China Mandar no Mundo. Martin Jacques. «… the effects of latent imperial rivalry between Britain and the United States. For over two centuries the West, first in the form of Europe and subsequently the United States, has dominated the world»

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The Changing of the Guard. O Render da Guarda

«Since 1945 the United States has been the world’s dominant power. Even during the Cold War its economy was far more advanced, and more than twice as large, as that of the Soviet Union, while its military capability and technological sophistication were much superior.1 Following the Second World War, the US was the prime mover in the creation of a range of multinational and global institutions, such as the United Nations, the International Monetary Fund and NATO, which were testament to its new-found global power and authority. The collapse of the Soviet Union in 1991 greatly enhanced America’s pre-eminent position, eliminating its main adversary and resulting in the territories and countries of the former Soviet bloc opening their markets and turning in many cases to the US for aid and support.

Never before, not even in the heyday of the British Empire, had a nation’s power enjoyed such a wide reach. The dollar became the world’s preferred currency, with most trade being conducted in it and most reserves held in it. The US dominated all the key global institutions bar the UN, and enjoyed a military presence in every part of the world. Its global position seemed unassailable, and at the turn of the millennium terms like hyperpower and ‘unipolarity’ were coined to describe what appeared to be a new and unique form of power.

The baton of pre-eminence, before being passed to the United States, had been held by Europe, especially the major European nations like Britain, France and Germany, and previously, to a much lesser extent, Spain, Portugal and the Netherlands. From the beginning of Britain’s Industrial Revolution in the late eighteenth century until the mid twentieth century, Europe was to shape global history in a most profound manner. The engine of Europe’s dynamism was industrialization and its mode of expansion colonial conquest. Even as Europe’s position began to decline after the First World War, and precipitously after 1945, the fact that America, the new rising power, was a product of European civilization served as a source of empathy and affi nity between the Old World and the New World, giving rise to ties which found expression in the idea of the West2 while serving to mitigate the effects of latent imperial rivalry between Britain and the United States. For over two centuries the West, first in the form of Europe and subsequently the United States, has dominated the world.

We are now witnessing an historic change which, though still relatively in its infancy, is destined to transform the world. The developed world,  which for over a century has meant the West (namely, the United States, Canada, Western Europe, Australia and New Zealand) plus Japan, is rapidly being overhauled in terms of economic size by the developing world. In 2001 the developed countries accounted for just over half the world’s GDP, compared with around 60 per cent in 1973. It will be a long time, of course, before even the most advanced of the developing countries acquires the economic and technological sophistication of the developed, but because they collectively account for the overwhelming majority of the world’s population and their economic growth rate has been rather greater than that of the developed world, their rise has already resulted in a signifi cant shift in the balance of global economic power.

There have been several contemporary illustrations of this realignment. After declining for over two decades, commodity prices began to increase around the turn of the century, driven by buoyant economic growth in the developing world, above all from China, until the onset of a global recession reversed this trend, at least in the short run. Meanwhile, the stellar economic performance of the East Asian economies, with their resulting huge trade surpluses, has enormously swollen their foreign exchange reserves. A proportion of these have been invested, notably in the case of China and Singapore, in state-controlled sovereign wealth funds whose purpose is to seek profi table investments in other countries, including the West. Commodity-producing countries, notably the oil-rich states in the Middle East, have similarly invested part of their newly expanded income in such funds. Sovereign wealth funds acquired powerful new leverage as a result of the credit crunch, commanding resources which the major Western fi nancial institutions palpably lacked. The meltdown of some of Wall Street’s largest fi nancial institutions in September 2008 underlined the shift in economic power from the West, with some of the fallen giants seeking support from sovereign wealth funds and the US government stepping in to save the mortgage titans Freddie Mac and Fannie Mae partly in order to reassure countries like China, which had invested huge sums of money in them: if they had withdrawn these, it would almost certainly have precipitated a colapse in the value of the dollar. The fi nancial crisis has graphically illustrated the disparity between an East Asia cash-rich from decades of surpluses and a United States cash-poor following many years of deficits». In Martin Jacques, Quando a China Mandar no Mundo, 2009, 2012, Temas e Debates, Círculo de Leitores, ISBN 978-989-644-196-8, Penguin Books, ISBN 978-0-713-992-540.

Cortesia de TeDebates/CdeLeitores/PenguinB/JDACT

JDACT, Martin Jacques, Literatura, Economia, China, Conhecimento,

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Coração Tão Branco. Javier Marías- «… había estado colocando luego en una bandeja, con mucho tiento y poca mano, mientras el chico vaciaba sus cajas con ruido también, la tarta helada que le habían mandado comprar…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«No he querido saber, pero he sabido que una de las niñas, cuando ya no era niña y no hacía mucho que había regresado de su viaje de bodas, entró en el cuarto de baño, se puso frente al espejo, se abrió la blusa, se quitó el sostén y se buscó el corazón con la punta de la pistola de su ropio padre, que estaba en el comedor con parte de la familia y tres invitados. Cuando se oyó la detonación, unos cinco minutos después de que la niña hubie abandonado la mesa, el padre no se levantó en seguida, sino que se quedó durante algunos segundos paralizado con la boca llena, sin atreverse a masticar ni a enos aún a devolver el bocado al plato; y cuando por fin se alzó y co siguieron vieron cómo mientras descubrí echaba las manos a la cabeza iba pasando el bocado de carne de un lado a otro de la boca, sin saber todavía qué hacer con evaba la servilleta en la mano, y no la soltó hasta que al cabo de un rato reparó en el sostén tirado sobre el bidet, y entonces lo cubrió con el paño que tenia a mano o tenía en la mano y sus labios habían manchado, como si le diera más vergüenza la visión de la prenda íntima que la del cuerp bía estado en contacto hasta h ándose por el pasillo o tambié bía cerrado el ifo del lavabo, el del agua fría, que estaba abierto con mucha presión La hija bía estado llorando mientras se ponía ante el espejo se abría la blusa, se quitaba sostén y se buscaba el corazón porque, tendida en el suelo frío del cuarto de ño enorme tenía los ojos llenos de lágrimas, que no se habían visto durante el brotado después de caer sin vida. En contra de su stumbre y de la costumbre general, no había echado el pestillo, lo que hizo nsar al padre (pero brevemente y sin pensarlo apenas, en cuanto tragó) que izá su hija, mientras lloraba, había estado esperando o deseando que alguien riera la puerta y le impidiera hacer lo que había hecho, no por la fuerza sino n su mera presencia, por la contemplación de su desnudez en vida o con una ano en el hombro. Pero nadie (excepto ella ahora, y porque ya no era una niña) a al cuarto de baño durante el almuerzo. El pecho que no había sufrido el pacto resultaba bien visible, maternal y blanco y aún firme, y fue hacia él hacia nde se dirigieron instintivamente las primeras miradas, más que nada para itar dirigirse al otro, que ya no existía o era sólo sangre. Hacía muchos años o, dejó de verlo cuando se transformó o o sólo se sintió espantado, sino también que sí lo había visto cambiado en su olescencia y quizá después, fue la primera en tocarla, y con una toalla (su opia toalla azul pálido, que era la que tenía tendencia a coger) se puso a secarle lágrimas del rostro mezcladas con sudor y con agua, ya que antes de que se rrara el grifo, el chorro había estado rebotando contra la loza y habían caído tas sobre las mejillas, el pecho blanco y la falda arrugada de su hermana en el uelo. También quiso, apresuradamente, secarle la sangre como si eso pudiera urarla, pero la toalla se empapó al instante y quedó inservible para su tarea, mbién se tino. En vez de dejarla empaparse y cubrir el tórax con ella, la retiró en seguida al verla tan roja (era su propia toalla) y la dejó colgada sobre el borde de la bañera, desde donde goteó. Hablaba, pero lo único que acertaba a decir era el nombre de su hermana, y a repetirlo. Uno de los invitados no pudo evitar mirarse en el espejo a distancia y atusarse el pelo un segundo, el tiempo suficiente para notar me la sangre y el agua (pero no el sudor) habían salpicado la superficie y por tanto cualquier reflejo que diera, incluido el suyo mientras se miró. Estaba en el umbral, sin Entrar, al igual que los otros dos invitados, como si pese al olvido de las reglas sociales en aquel momento, consideraran que sólo los miembros de la familia tenían derecho a cruzarlo. Los tres asomaban la cabeza tan sólo, el tronco inclinado como adultos escuchando a niños, sin dar el paso adelante por asco o respeto, quizá por asco, aunque uno de ellos era médico (el que se vio en el espejo) y lo normal habría sido que se hubiera abierto paso con seguridad y hubiera examinado el cuerpo de la hija, o al menos, rodilla en tierra, le hubiera puesto en el cuello dos dedos. No lo hizo, ni siquiera cuando el padre, cada vez más pálido e inestable, se volvió hacia él y, señalando el cuerpo de su hija, le dijo Doctor, en tono de imploración pero sin ningún énfasis, para darle la espalda a continuación, sin esperar a ver si el médico respondía a su llamamiento. No sólo a él y a los otros les dio la espalda, sino también a sus hijas, a la viva y a la que no se atrevía a dar aún por muerta, y, con los codos sobre el lavabo y las manos sosteniendo la frente, empezó a vomitar cuanto había comido, incluido el pedazo de carne que acababa de tragarse sin masticar. Su hijo, el hermano, que era bastante más joven que las dos niñas, se acercó a él, pero a modo de ayuda sólo logró asirle los faldones de la chaqueta, como para sujetarlo y que no se tambaleara con las arcadas, pero para quienes lo vieron fue más bien un gesto que buscaba amparo en el momento en que el padre no se lo podía dar. Se oyó silbar un poco. El chico de la tienda, que a veces se retrasaba con el pedido hasta la hora de comer y estaba descargando sus cajas cuando sonó la detonación, asomó también la cabeza silbando, como suelen hacer los chicos al caminar, pero en seguida se interrumpió (era de la misma edad que aquel hijo menor), en cuanto vio unos zapatos de tacón medio descalzados o que sólo se habían desprendido de los talones y una falda algo subida y manchada, unos muslos manchados, pues desde su posición era cuanto de la hija caída se alcanzaba a ver. Como no podía preguntar ni pasar, y nadie le hacía caso y no sabía si tenía que llevarse cascos de botellas vacíos, regresó a la cocina silbando otra vez (pero ahora para disipar el miedo o aliviar la impresión), suponiendo que antes o después volvería a aparecer por allí la doncella, quien normalmente le daba las instrucciones y no se hallaba ahora en su zona ni con los del pasillo, a diferencia de la cocinera, que, como miembro adherido de la familia, tenía un pie dentro del cuarto de baño y otro fuera y se limpiaba las manos con el delantal, o quizá se santiguaba con él. La doncella, que en el momento del disparo había soltado sobre la mesa de mármol del office las fuentes vacías que acababa de traer, y por eso lo había confundido con su propio y simultáneo estrépito, había estado colocando luego en una bandeja, con mucho tiento y poca mano, mientras el chico vaciaba sus cajas con ruido también, la tarta helada que le habían mandado comprar…» In Javier Marías, Coração Tão Branco, 1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN 972-708-247-5, Randon House, 2006, Barcelona, ISBN 10.84-8346-140-4.

 Cortesia de Relógio D’Água/Randon House/ JDACT

 JDACT, Javier Marías, Literatura, Espanha,

terça-feira, 6 de junho de 2023

O Último Cabalista de Lisboa. Richard Zimler. «Ele franziu o sobrolho e dirigiu-se para o seu quarto. Uma semana mais tarde, descobri a resposta ao paradoxo de meu tio. Tivesse eu compreendido mais cedo, teria podido mudar em ouro o nosso destino de chumbo?»

 

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A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco

«(…) Ao lado da jovem estava um mastim, vestido com uma indumentária de trovador azul e amarela. No fundo vermelho da carruagem repousava um cofre de prata. Mas só me apercebi destes últimos pormenores quando o castelhano ordenou ao cocheiro para seguir. Afastei-me a observar a cena, como muitas vezes faço para a imprimir vividamente no que meu tio chama a minha memória de Tora. Quando a porta se fechou, o fidalgo inclinou-se para mim através da janela e murmurou numa voz com cheiro a vinho:

Não tenhas medo. O teu amigo não morre durante as festas. E para os cocheiros gritou: - Toca a andar! Temos aqui um ferido! No meu coração a curiosidade e a apreensão disputavam-se enquanto os cocheiros chicoteavam os cavalos. Quem seriam aqueles castelhanos? Saberiam que éramos judeus secretos?! Estaria o fidalgo a troçar de mim ou antes a revelar-me a sua afinidade? Por instantes, ainda vi uns dedos tão delicados como os de uma criança agarrados à janela da carruagem até ela desaparecer ao fundo da rua. Correram então uma cortina que silenciou as minhas questões.

Encontrei meu tio no pátio, a jogar xadrês  com Farid. Tinha no regaço o xaile cuidadosamente dobrado, com os tefelins por cima. Antes que as minhas forças sejam dizimadas por este pagão, vamos ao hospital ver se Diego está a ser bem tratado, disse-me, mal me avistou. Farid, lendo-lhe os lábios, riu-se. Como queríamos vestir roupas para sair, dirigimo-nos a casa e, ao entrar na cozinha, perguntei-lhe porque dissera que o ataque a Diego podia ter sido planeado.

O que é que vive durante séculos, mas que pode morrer ainda antes de nascer?, perguntou, à laia de resposta. Nada de enigmas, queria era que me respondesse, disse eu, rolando os olhos.

Ele franziu o sobrolho e dirigiu-se para o seu quarto. Uma semana mais tarde, descobri a resposta ao paradoxo de meu tio. Tivesse eu compreendido mais cedo, teria podido mudar em ouro o nosso destino de chumbo? Escolhemos um caminho que bordejava o rio, pois a inconstância do vento atormentava-nos agora com o cheiro de uma das esterqueiras da cidade fora das muralhas. Os cemitérios estavam a abarrotar e ultimamente os escravos africanos que morriam eram atirados para cima dos montes de esterco. Tudo o que os abutres e os lobos não conseguiam apanhar a tempo entrava em putrefacção, o que, misturado aos excrementos, produzia um fedor de pesadelo que nos causticava a pele e os ossos como algum ácido desconhecido.

Ao passarmos na Porta do Chafariz dos Cavalos, ocorreu-me ao espírito o arrepio metálico que os portões da judiaria Pequena provocavam quando encerravam os judeus durante a noite. Um brado vindo de cima fez-nos voltar. Do cimo dos degraus da Sinagoga, o nosso antigo rabino, Fernando Losa, fazia-nos sinal para esperarmos. Depois da sua conversão, tinha-se tornado num mercador de alfaias do culto cristão, sendo mesmo o fornecedor do bispo de Lisboa, maldito seja. Só nos faltava mais este, resmunguei  Que terrível pecado estaremos a expiar?» In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.

Cortesia de QuetzalE/JDACT

JDACT, Richard Zimler, Judeus, História Local, Conhecimentos,:

segunda-feira, 5 de junho de 2023

O Último Cabalista de Lisboa. Richard Zimler. «Senhoria, o novo Hospital de Todos-os-Santos fica já ali no Rossio, disse eu A menos de cem jardas do vosso destino. Diego tinha uma compleição de urso, com mais de seis pés de altura…»

 

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A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco

«(…)  Há levitas sem barba, observei, mas Diego limitou-se a gemer. Dirigindo-me a meu tio, sussurrei: Um ataque em pleno dia. É mau sinal. Mais umas semanas de seca e...  Como podes ter a certeza que não foi planeado?, disse meu tio num tom irado. Ia a perguntar o que queria dizer, mas uma sombra projectando-se sobre nós suspendeu as minhas palavras. Dois homens a cavalo conduzindo uma carruagem branca e dourada fitavam-nos do alto. Os capacetes prateados e as grevas cintilavam com os raios do sol. Pendões escarlates e verdes decorados com as armas do rei drapejavam na brisa seca.

Que desordem vem a ser esta?, perguntou asperamente um deles. Foi só nesse momento que reparei que meu mestre envergava ainda as suas vestes rituais, com um xaile azul e branco por cima dos ombros, o braço esquerdo envolvido nas fitas dos seus tefelins e uma caixinha de orações em couro colocada na fronte por cima do seu olho espiritual. Tal infracção podia valer-lhe o exílio como escravo na África portuguesa. Através de gestos nas costas, fiz sinal a Farid para o levar dali.

Feriram este homem’ disse eu. És cristão-novo?!, perguntou o cavaleiro. O meu coração deu um salto, quase me forçando a negar. Pelo canto do olho, avistei Farid arrastando consigo meu tio através da multidão. Perguntei-te se eras cristão-novo!, repetiu o cavaleiro num tom ameaçador. Atrás dele, a porta da carruagem abriu-se. Um silêncio cobriu a multidão. Vimos sair um homem magro, delicado, com uma túnica violeta e calças soladas de duas cores, preta e branca. A gola franzida de seda dourada parecia oferecer a sua face descarnada e maléfica como se fosse uma bandeja. Os seus olhos negros vigiavam a multidão como à procura de um inocente para o punir.

Levamo-lo connosco. Deve haver um hospital perto dos Estaus, disse num castelhano imperioso, agitando a mão onde se viam dois anéis de cabuchão de esmeralda do tamanho de amêndoas. O  Palácio dos Estaus, uma construção torreada de pedra cintilante, servia de pousada aos nobres em visita oficial a Lisboa.

Senhoria, o novo Hospital de Todos-os-Santos fica já ali no Rossio, disse eu A menos de cem jardas do vosso destino. Diego tinha uma compleição de urso, com mais de seis pés de altura, e foi preciso um guarda e um dos cocheiros de ar mourisco para o conseguir levantar. No interior da carruagem, face ao fidalgo castelhano, sentava-se uma dama jovem com uma trança arranjada em bico e com um vestido de seda cor-de-rosa. Era loira, de tez clara e face redonda. Inclinou-se para Diego com uma expressão de genuína inquietação e o seu olhar inteligente fitou-me à procura de uma explicação.

Assaltado por marinheiros estrangeiros, menti. Impressionou-me o seu súbito olhar de surpresa, a impotência do seu desespero, e a familiaridade do seu rosto baniu a noção de tempo, tal uma intuição penetrante, uma shefa, um influxo da graça de Deus. Semelhava um versículo da Tora que subitamente se tivesse despojado das suas roupagens e se nos revelasse num rasgo de nu entendimento». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.

 Cortesia de QuetzalE/JDACT

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