domingo, 11 de junho de 2023

Assim Começa o Mal. Javier Marías. «Tinha um nariz bem recto, sem sombra de curvatura apesar de seu bom tamanho, e no cabelo denso, penteado com água e repartido, como certamente sua mãe o penteara…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Ou só os trazia a morte de um dos cônjuges, às vezes longamente ansiada em silêncio e menos vezes procurada ou induzida ou buscada, em geral ainda mais em silêncio, ou seria, melhor dizendo, em indizível segredo. Ou a morte dos dois, claro, e então já não havia mais nada, só os ignorantes filhos que tiveram, se havia e sobreviviam, e uma breve recordação. Ou talvez uma história, ocasionalmente. Uma história subtil e quase nunca contada, como não se costuma contar as histórias da vida íntima, tantas mães impávidas até o último alento, e também tantas não mães; ou talvez sim, mas em sussurros, para que não sejam por completo como se não tivessem sido, nem fiquem no mudo travesseiro no qual, em prantos, afundou o rosto, nem tão só à vista do sonolento olho entreaberto da lua sentinela e fria.

Eduardo Muriel tinha um bigode fino, como se o tivesse deixado crescer quando o actor Errol Flynn era uma referência e depois tivesse esquecido de mudá-lo ou espessá-lo, um desses homens de hábitos fixos no que diz respeito a seu aspecto, dos que não se dão conta de que o tempo passa e as modas mudam nem de que estão envelhecendo, é como se isso não lhes dissesse respeito e o descartassem, e se sentissem a salvo do transcurso, e até certo ponto têm razão de não se preocupar nem dar importância: por não condizer com a sua idade, a mantêm sob controle; não cedendo a ela no aspecto externo, acabam por não assumi-la, e assim os anos, temerosos, se avalentoam com quase todo mundo,, os rondam e rodeiam, mas não se atrevem a se apossar deles, não se assentam em seu espírito e tampouco invadem sua aparência, sobre a qual vão apenas lançando um lentíssimo granizo ou penumbra.

Era alto, bem mais que a média de seus companheiros de geração, a seguinte à de meu pai, se é que não a mesma, ainda. Era forte e estilizado por isso ao primeiro olhar, embora sua figura não fosse ortodoxamente viril: era um tanto estreito de ombros para a sua estatura, o que fazia parecer que o abdomem se alargava apesar de não ter nenhuma gordura nessa zona nem inconvenientes cadeiras protuberantes, e dali surgiam umas pernas compridas que ele não sabia onde colocar quando estava sentado: cruzava-as (e era o que preferia fazer com elas, entre tudo), o pé da que ficava em cima alcançava o chão naturalmente, o que algumas mulheres orgulhosas de suas pantufas, não desejam mostrar uma pendente, nem engrossada ou deformada pelo joelho que a sustenta, conseguem mediante artificialidade e escorço, e com ajuda de seus saltos altos. Por essa estreiteza dos ombros, Muriel costumava usar casaco com ombreiras bem disfarçadas, acho, ou então o alfaiate as confeccionava com ligeira forma de trapézio invertido (ainda nos anos 70 e 80 do século passado ia ao alfaiate ou o recebia em sua casa, quando isso já era incomum).

Tinha um nariz bem recto, sem sombra de curvatura apesar de seu bom tamanho, e no cabelo denso, penteado com água e repartido, como certamente sua mãe o penteara desde criança, e ele não via razão para infringir aquele antigo ditame, brilhavam alguns fios brancos dispersos pelo castanho escuro dominante. O bigode fino pouco atenuava o espontâneo e luminoso e juvenil do seu sorriso. Esforçava-se para refreá-lo ou guardá-lo, mas com frequência não conseguia. Havia um fundo de jovialidade em seu carácter, ou um passado que emergia sem que tivesse de lançar a sonda em grandes profundidades. Não obstante, também não o convocava em águas muito superficiais: nelas flutuava certa amargura imposta ou deliberada, da qual não devia se sentir causador, mas, no máximo, vítima». In Javier Marías, Assim Começa o Mal, 2015, Alfaguara, ISBN 978-989-665-008-7.

Cortesia de Alfaguara/JDACT

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