sábado, 17 de junho de 2023

A Rosa dos Ventos. Gonzalo Torrente Ballester. «Quanto teria gostado de ver como me marcariam rendez-vous estes animaizinhos debaixo de alguma bétula milenária! Mas, quando o expediente burocrático se encontrava a meio dos seus trâmites…»

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«Há uma carta do meu primo Carlos Frederico Guilherme dirigida ao meu igualmente primo Guilherme Frederico Carlos, na qual, com bastante cautela, ainda que, também, com a rude franqueza dos soldados, se diz de mim que sou o mais tonto dos príncipes reinantes e, inclusive, daqueles que nunca reinaram ou dos que nunca reinarão por não terem onde cair mortos. O meu primo Carlos Frederico Guilherme sempre foi muito amável comigo e, quando me expulsou do exíguo trono que me restava, ainda que por transmissão directa e milenária (e não como ele, bastardo vergonhoso de um embaixador turco), fê-lo observando todos os requisitos legais e sem me humilhar mais do que o necessário: foi assim que não enviou, para invadir o meu território, mais de cem soldados, tendo em conta que o meu exército, desde a passagem memorável de Napoleão pelos meus estados (demasiado rápida, por sorte), nunca excedeu os quarenta e nove, sargentos e oficiais subalternos incluídos: não incluo no cômputo os oficiais superiores porque, no meu grão-ducado, era oficial toda a gente, apesar de ninguém aparecer no quartel, entre outras razões válidas, porque a sua condição honorária quase não lhes dava outro direito além do de usar uniformes espectaculares, que era o que mais lhes interessava: tanto assim que, quando o meu primo me substituiu, as suas primeiras medidas legais foram no sentido de manter o direito dos comerciantes e dos industriais, que o haviam favorecido, a levar pendurada no ombro uma jaqueta profusamente ornamentada e de cores vivas, nos desfiles a cavalo. Que divertida minúcia histórica seria a de observar quanto se fez na Europa e quanto aconteceu no mundo, só para as pessoas poderem andar de uniforme, sobretudo aquelas a quem falta um direito razoável e não meramente imaginário!

O comandante do meu exército não era desses: tinha estudado nas melhores escolas e, ainda que também não pusesse os pés no quartel, fazia-o pelas mesmas razões pelas quais eu também lá não ia, e que têm que ver com essa definição de tonto, tão amável e tão cómoda, que deu de mim meu primo; mas, como hei-de falar outras vezes desse comandante, limitar-me-ei agora a dizer que perfazia o número cinquenta do exército efectivo e, se se me considerar a mim, também, como militar, enquanto chefe supremo, tal como costumam intitular-se todos os chefes de Estado, o número excede a meia centena, graças a essa mínima, solitária, universal, unidade que era eu, um príncipe um pouco tonto. Aconteceu que também a Polícia Municipal enquanto força armada, considerou que seria vistoso ter-me como chefe superior e vistosamente decorativo e não ao burgomestre, que era então um tal Fritz, com quem se armou um escândalo de ressonância amplamente ultramarina: no meu país, rodeado de mar por quase todos os lados, por pouco que alguém grite, os seus gritos de protesto, de dor ou de espanto chegam às costas do outro lado, que ficam longe; pois um redactor principiante do The Times veio coscuvilhar o que se passava e contou-o em Londres com notória falta de medida no tratamento verbal (já se sabe que os Ingleses têm um sentido de humor muito peculiar, sobretudo quando se trata de países que carecem de marinha de guerra) e, nas chancelarias mais atentas, temeu-se uma contenda civil, ao ponto de o meu primo ter chegado a enviar investigadores secretos. Chegamos a acordo, o burgomestre e eu, que o meu nome deixaria de figurar em ambas as nóminas, a do Exército e a da Polícia, com o que ficou contente, eu tive uma festa a menos a que assistir e os efectivos do Exército recuperaram o número de sempre, essa meia centena que, além de redonda é muito bonita: a minha idade de agora, por exemplo, o que se pode chamar a verdadeira flor da vida quando se é um tonto destronado. Os guardas florestais estiveram quase a alterar esse statu quo tão trabalhosamente acordado, porque se lembraram de me proclamar guarda-mor das pradarias e dos bosques, com jurisdição real sobre ursos, veados e doninhas. Quanto teria gostado de ver como me marcariam rendez-vous estes animaizinhos debaixo de alguma bétula milenária! Mas, quando o expediente burocrático se encontrava a meio dos seus trâmites, Carlos Frederico Guilherme lembrou-se de me destronar e, se eu perdi a ocasião de senhorear uns quantos plantígrados inofensivos, os guardas florestais sentiram-se muito defraudados nos seus desejos de me ter como colega e de almoçar comigo, pelo menos uma vez por ano». In Gonzalo Torrente Ballester, A Rosa dos Ventos, 1995, Difel, ISBN 972-290-326-8.

 Cortesia de Difel/JDACT

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