quinta-feira, 31 de março de 2022

No 31. Theresa Breslin. Prisioneira da Inquisição. «Ei! Ratinho!, gritou para mim. Dê um gole para cada homem ao subir e descer. Nada mais do que isso, ou eu o esfolarei vivo! Os remadores começaram a reclamar».

Cortesia de wikipedia e jdact

A Chegada da Inquisição (maldita) 1490-1491

«(…) Panipat levantou-se, assomando acima de mim. Deu um aterrorizante sorriso que expôs dentes quebrados e a falta destes. Deixa eu dar uma olhada em você, Ratinho. Firmou as mãos em volta do meu pescoço, sacudindo-me no ar, deixando meu rosto a poucos centímetros do seu. Vai obedecer a todas as minhas ordens! Cuspiu na minha cara. Imediatamente e sem questionar. E, se me causar qualquer problema, esfolarei cada centímetro de pele do seu corpo. Entendeu? O sangue latejava no meu cérebro. Não conseguia sequer murmurar uma resposta. Responda! Ele me sacudiu com tanta força que pensei que meus ouvidos iriam explodir, e os olhos, saltar da cabeça. O capitão bateu no seu ombro com a bengala. O rapaz não consegue responder-lhe pois você está com as mãos em volta da sua traqueia. Panipat me soltou, e desabei no convés a seus pés, onde grasnei, tentando recuperar o fôlego. O capitão baixou o olhar para mim. Creio que o Ratinho entendeu muito bem, observou, com alguma compaixão na voz. Panipat explicou o que queria que eu fizesse.

Em cada extremidade da passarela havia um barril de água fresca. Eu teria de reabastecê-los, todas as noites, de um enorme tonel mantido em baixo da passarela, que era onde a nossa carga ficava estivada também. Recebi uma funda concha de madeira com um cabo comprido. Durante o dia, tinha de encher essa concha e subir e descer a passarela dando água aos remadores que a pedissem; na subida, para um lado, na descida, para o outro. A maioria dos homens livres trazia suas próprias garrafas de água, as quais eu também mantinha reabastecidas. Por minha vez, podia tomar um gole a cada vez que completava a volta na popa, na extremidade do barco. De manhã bem cedo zarpamos. O vento estava fresco, e, por isso, mais ou menos durante a primeira hora fomos conduzidos principalmente pela vela e eu simplesmente percorri a passarela de cima a baixo, fazendo o que me fora instruído. Os homens soltavam comentários indecentes e esticavam os cotovelos para que eu tropeçasse, mas eu estava acostumado a ser insultado e tinha os pés ágeis, portanto isso não me incomodou muito. Então o sol ficou mais alto, o vento diminuiu e ficamos em águas paradas sem qualquer abrigo à vista. Na plataforma elevada da popa, o capitão Cosimo estava sentado debaixo de um toldo estudando seus mapas e traçando o curso. Os homens livres e até mesmo alguns dos escravos haviam almofadado seus bancos com trouxas de aniagem e usavam tiras desse pano para proteger os ombros e a cabeça dos raios do sol do meio-dia, já que a faixa de toldo acima não era larga o bastante para cobri-los adequadamente. Percebi que precisava me movimentar com mais rapidez para atender suas exigências por água. Em pouco tempo estavam berrando insultos contra mim por eu ser lento demais. Enquanto isso, Panipat estava montado num banquinho na popa, logo abaixo da plataforma de comando, gritando orientações enquanto o capitão, que também agia como piloto, dava instruções sobre a direcção que devíamos tomar. Então o mestre dos remadores se levantou.

Ei! Ratinho!, gritou para mim. Dê um gole para cada homem ao subir e descer. Nada mais do que isso, ou eu o esfolarei vivo! Os remadores começaram a reclamar. Panipat então colocou-os numa braçada forte e constante, e suor escorreu das suas testas e antebraços. Os escravos e os criminosos sem qualquer cobertura nas suas costas sofreram mais, e, a cada volta que eu dava, um homem mais velho continuava implorando por mais água. Eu sacudia a cabeça, mas, afinal, em desespero, ele cravou os dentes na borda da concha de madeira e tentou engolir tudo, derramando água pelo seu rosto e torso. Panipat deu um salto, foi batendo o pé pela passarela e o atingiu no rosto com a ponta do cabo do seu chicote. Cão, bradou ele. Ninguém neste barco desobedece às minhas ordens! Atingiu o homem novamente com a mão aberta, então se virou e começou a caminhar de volta para seu lugar. Rapidamente, aproveitando que Panipat estava de costas para mim, ergui a concha até minha boca e tomei um gole extra de água. Panipat girou num instante.

Não vi a correia, apenas senti a ferroada nos meus dedos quando ela se enrolou em minha mão e arrancou a concha à força. Olhei, aturdido, a concha rodar no convés, e então vi, tarde demais, Panipat erguer novamente o braço. Um estalido, e ah!, a terrível mordida quando a ponta metálica da correia talhou meu peito, rasgando o fino tecido de minha camisa. Isso foi apenas um aviso, Ratinho, rosnou Panipat. Eu poderia ter partido sua carne até ao osso se quisesse». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Galera Record, 2014-2015, ISBN 978-850-110-256-0.

Cortesia de GRecord/JDACT

JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Espanha,

domingo, 27 de março de 2022

A Bibliotecária de Auschwitz. António G. Iturbe. «A espichada sra. Gottlieb, que tanto esticava o pescoço para se fazer de importante, Dita chamava de sra. Girafa. E o tapeceiro cristão da loja de baixo, completamente calvo e magricela…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Na escola, haviam-lhes contado que o grande relógio era um inofensivo artefacto mecânico idealizado pelo mestre Hanus mais de cinco séculos antes. Mas a lenda contada pelas avós a angustiava: o rei teria mandado Hanus construir o relógio astronómico e suas estátuas, que desfilavam a cada hora em ponto; depois, teria dado ordens para que seus xerifes o cegassem, de modo que ele nunca pudesse reproduzir uma maravilha igual para outro monarca. Para vingar-se, o relojoeiro teria enfiado a mão dentro do mecanismo e o inutilizado. Quando as engrenagens a seccionaram, as peças emperraram, e anos se passaram sem que fosse possível repará-las. À noite, às vezes sonhava com essa mão amputada serpenteando por entre as rodas dentadas do mecanismo, para cima e para baixo. O esqueleto fez soar uma sineta, e teve início o festival mecânico: um desfile de autómatos que se destravava para recordar os cidadãos de que os minutos se empurram nervosos uns aos outros, e que as horas se vão uma após a outra, tal como aquelas estátuas, que havia séculos entravam e saíam apressadamente daquela descomunal caixa de música. Todavia, agora se dá conta, atormentada pela angústia, de que aos nove anos uma menina ainda não tem consciência disso, enxergando o tempo como uma cola espessa, num mar imóvel e pegajoso por onde não se avança. Por isso, nessa idade os relógios só apavoram mesmo se tiverem esqueletos próximos ao mostrador. Dita, agarrada a esses livros velhos que podem levá-la à câmara de gás, vê com nostalgia a menina feliz que foi. Quando acompanhava a mãe nas compras no centro, adorava parar diante do relógio astronómico da praça da Cidade Velha, mas não para ver o espetáculo mecânico, porque na verdade aquele esqueleto a inquietava mais do que ela gostaria de admitir, e sim para se divertir espiando os transeuntes absortos, muitos deles estrangeiros de passagem pela capital, que observavam muito concentrados a aparição dos autómatos. Continha com pouca dissimulação a vontade de rir que sentia ao ver as caras de assombro e o sorriso abobado dos presentes. Em seguida inventava apelidos para eles. Recorda com uma pontinha de melancolia que uma de suas diversões preferidas era pôr apelidos em todos, principalmente nos vizinhos e conhecidos de seus pais. A espichada sra. Gottlieb, que tanto esticava o pescoço para se fazer de importante, Dita chamava de sra. Girafa. E o tapeceiro cristão da loja de baixo, completamente calvo e magricela, ela chamava em segredo de sr. Cabeça de Bola. Lembra-se de perseguir por alguns metros o bonde, que tocava sua campainha ao fazer a curva da praça Staromĕstské e se perdia serpenteando pelo bairro de Josefov, e logo se punha a correr em direcção à loja de Ornest, onde sua mãe comprava tecido para fazer seus casacos e saias de Inverno. Não esqueceu o quanto gostava daquela loja, cuja porta exibia um letreiro luminoso com uns carretéis coloridos, que iam acendendo um depois do outro até chegarem ao topo e recomeçarem. Se não tivesse sido uma garotinha que corria com essa felicidade isolante das crianças, talvez, ao passar perto da banca de jornais, teria notado que havia uma longa fila de compradores e que, na pilha de exemplares do Lidové Noviny, a manchete, com quatro linhas e um tamanho de fonte descomunal, não só informava como também gritava na primeira página: O governo consente a entrada do exército alemão em Praga. Dita abre os olhos por um momento e vê os SS fuçando nos fundos do barracão. Até levantam os desenhos pendurados na parede com pregos feitos de pontas de arame para ver se debaixo se esconde algo. Ninguém fala, e o barulho dos guardas revirando tudo é ouvido com nitidez nesse barracão que cheira a humidade e mofo. A medo também. É o cheiro da guerra. Do pouco que recorda de quando era criança, sempre lhe vem à mente que a paz cheirava à densa sopa de galinha que cozinhavam nas noites de sexta-feira. Como não se lembrar do sabor do cordeiro bem-tostado e da pasta de ovo com nozes? Longos dias de escola e tardes brincando de amarelinha e de pique com Margit e outras colegas de classe que se esfumam na sua memória... Até que tudo entrou em decadência». In António G. Iturbe, A Bibliotecária de Auschwitz, 2012, Dita Dorachova, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-657-432-1.

Cortesia de PManuscrito/JDACT

António Iturbe, JDACT, Auschwitz, II Guerra Mundial, Literatura,

sábado, 26 de março de 2022

Teresa Medeiros. A Conquistadora. «Quando o Sol nasceu na manhã seguinte, Conn e Silent Thunder seguiam já rumo ao norte. O dia amanhecera com uma brisa quente do sul a afagar-lhe as feições, como se quisesse apagar as rugas de preocupação gravadas na sua testa»

 

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«(…) A chuva caía e a Lua começava a sua lenta descida quando chegou a uma clareira e desmontou. A maçã que trazia na mochila foi parar à boca do cavalo e Conn sorriu pela primeira vez desde que deixou a fortaleza. Silent Thunder atravessara o oceano no porão de um navio de carga para se tornar o seu cavalo de batalha. Passou as mãos pelo negro acetinado da garupa do animal. Nem uma mancha a estragar a solidez da sua beleza. Enrolou as rédeas num arbusto e deixou-o pastar. Sacudindo a chuva do cabelo, vagueou pela floresta recolhendo ramos e folhagem suficientes para proteger a sua pessoa e a fogueira da água que caía obstinada. Estendeu as mãos para as chamas, a fim de aquecê-las, e pensou que seria bom ter ali Nimbus para quebrar o silêncio. Memórias de outras florestas acumularam-se em seu redor; o calor de outras fogueiras aqueceu as suas mãos. Os espíritos dos cinco mortos rodearam-no, rindo e tagarelando, planeando batalhas futuras. Durante uma fracção de segundo, o seu nariz detectou o aroma de carne de veado assado ao ar livre. Pôs-se de pé, amaldiçoando as suas fantasias. Pareceu-lhe que a floresta se agitava à sua volta e voltou a sentar-se perguntando a si mesmo se dormir ia ser difícil ou impossível. Com os dedos tensos esfregou um bocado de queijo num naco de pão. O fogo da sua ira ardia demasiado fundo para dar espaço ao medo. Desmascararia o assassino encapuzado, dar-lhe-ei uma morte impiedosa. Embrulhou-se na capa e preparou-se para dormir. No dia seguinte àquela hora alcançaria a gruta. Tinha de estar em forma. Mergulhou no abismo de um sono felizmente desprovido de sonhos.

Quando o Sol nasceu na manhã seguinte, Conn e Silent Thunder seguiam já rumo ao norte. O dia amanhecera com uma brisa quente do sul a afagar-lhe as feições, como se quisesse apagar as rugas de preocupação gravadas na sua testa. Cotovias e andorinhas cantavam num céu da cor do azul delicado de um ovo de tordo. De vez em quando uma nuvem, branca e felpuda como o ventre de um cordeiro após o nascimento, atravessava devagar a sua tela serena. À medida que avançava para norte, o terreno tornava-se mais montanhoso, e sob os cascos do cavalo o tapete verde-esmeralda dava lugar a pedras e arbustos raquíticos.

O Sol surgiu com a forma de uma gloriosa bola laranja por detrás do horizonte ocidental, tão diferente da despedida mal-humorada da tarde anterior. Tinham chegado às colinas. Os contrafortes eram íngremes, mas seguiam até aos montes e planícies que rodeavam a enevoada montanha de Tara. A escuridão envolveu a paisagem. Conn acendeu uma tocha para iluminar o caminho. Pedras traiçoeiras espalhavam-se pelo chão, dispostas a fazer qualquer cavalo tombar. Os olhos de Conn mal discerniam as reentrâncias obscurecidas nos rochedos onde ele sabia que se escondiam pequenas grutas. Pelos seus cálculos, a gruta maior que procurava devia ficar a menos de uma légua de distância. Um fio de suor escorreu-lhe pela nuca. Parou Silent Thunder, fechou os olhos e entregou-se aos seus pensamentos. Um jovem desesperado por se juntar ao Fianna fizera aquele mesmo percurso para conquistar a criatura que já tinha dado a três membros do grupo mortes sangrentas. Foi o único a voltar. A sua descrição histérica de um gigante envolto numa capa que retirou no último minuto a ponta da espada da sua garganta apavorada e a libertá-lo não tardou a chegar aos ouvidos de Conn. Justamente o que a fera pretendia, pensou com amargura. Ainda de olhos fechados, tentou imaginar o rosto de cada um dos homens que morreu naquela gruta. Cinco valorosos guerreiros desaparecidos, deixando em suas mãos a tarefa de vingar o seu sangue». In Teresa Medeiros, A Conquistadora, 1998, Planeta Manuscrito, Grupo Planeta, 2010, 2014, ISBN 978-989-657-517-5.

Cortesia de PManuscrito/Gplaneta/JDACT

JDACT, Teresa Medeiros, Literatura, Irlanda,

quinta-feira, 24 de março de 2022

Grande Sertão. Veredas. João Guimarães Rosa. «Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal na minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro! Um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser, se viu; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão!, determinaram, era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas... Olhe! Quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente, depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja! Que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucúia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O urucúia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá, fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda a parte.

Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em falso receio, desfalam no nome dele, dizem só: o Que-Diga. Vote! Não... Quem muito se evita, se convive. Sentença num Aristides, o que existe no buritizal primeiro desta minha mão direita, chamado a Vereda-da-Vaca-Mansa-de-Santa-Rita, todo o mundo crê: ele não pode passar em três lugares, designados: porque então a gente escuta um chorinho, atrás, e uma vozinha que avisando: Eu já vou! Eu já vou!..., que é o capiroto, o que-diga... E um Jisé Simpilício, quem qualquer daqui jura ele tem um capeta em casa, miúdo satanazim, preso obrigado a ajudar em toda ganância que executa; razão que o Simpilício se empresa em vias de completar de rico. Apre, por isso dizem também que a besta p’ra ele rupeia, nega de banda, não deixando, quando ele quer amontar... Superstição. Jisé Simpilício e Aristides, mesmo estão se engordando, de assim não-ouvir ou ouvir. Ainda o senhor estude: agora mesmo, nestes dias de época, tem gente porfalando que o Diabo próprio parou, de passagem, no Andrequicé. Um Moço de fora, teria aparecido, e lá se louvou que, para aqui vir, normal, a cavalo, dum dia-e-meio, ele era capaz que só com uns vinte minutos bastava..., porque costeava o Rio do Chico pelas cabeceiras! Ou, também, quem sabe, sem ofensas, não terá sido, por um exemplo, até mesmo o senhor quem se anunciou assim, quando passou por lá, por prazido divertimento engraçado? Há-de, não me dê crime, sei que não foi. E mal eu não quis. Só que uma pergunta, em hora, às vezes, clareia razão de paz. Mas, o senhor entenda! O tal moço, se há, quis mangar. Pois, hem, que, despontar o Rio pelas nascentes, será a mesma coisa que um se redobrar nos internos deste nosso Estado nosso, custante viagem de uns três meses... Então? Que-Diga? Doideira. A fantasiarão. E, o respeito de dar a ele assim esses nomes de rebuço, é que é mesmo um querer invocar que ele forme forma, com as presenças!

Não seja. Eu, pessoalmente, quase que já perdi nele a crença, mercês a Deus; é o que ao senhor lhe digo, à puridade. Sei que é bem estabelecido, que grassa nos Santos-Evangelhos. Em ocasião, conversei com um rapaz seminarista, muito condizente, conferindo no livro de rezas e revestido de paramenta, com uma vara de maria-preta na mão, proseou que ia adjutorar o padre, para extraírem o Cujo, do corpo vivo de uma velha, na Cachoeira-dos-Bois, ele ia com o vigário do Campo-Redondo... Me concebo. O senhor não é como eu? Não acreditei patavim. Compadre meu Quelemém descreve que o que revela efeito são os baixos espíritos descarnados, de terceira, flutuando nas piores trevas e com ânsias de se travarem com os viventes, dão encosto. Compadre meu Quelemém é quem muito me consola, Quelemém de Góis». In João Guimarães Rosa, Grande Sertão, Veredas, 1956, Livraria José Olympio Editora, Editora Nova Fronteira, 2001, ISBN 978-852-091-209-6.

Cortesia de NFronteira/JDACT

JDACT, João Guimarães Rosa, Brasil, Literatura, 

A Conquistadora. Teresa Medeiros. «O silêncio do salão transformou-se em tumulto. Protestos em voz alta misturaram-se aos gritos de encorajamento, numa algazarra ensurdecedora»

 

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«(…) Apenas o som do choro acompanhou Conn, que desceu do estrado pasmo com o que via à sua frente. Os seus olhos eram farrapos de gelo azul. Quando se aproximou do cavalo, estendeu as mãos e embalou a cabeça do seu querido amigo. Inclinando-se como para sussurrar qualquer coisa, Conn emitiu um ruído que começou como um urro na sua garganta. Os cabelos da nuca de Nimbus eriçaram-se com o grito de batalha que exteriorizou o desgosto de Conn. O salão espocou numa actividade febril. Dos lábios cerrados dos homens do Fianna que rodearam Conn saltaram pragas negras e sangrentas. Conn virou-se para o soldado mais próximo e murmurou qualquer coisa que tirou toda a cor do rosto do homem. O homem correu e Nimbus seguiu-o de imediato. De braços erguidos, Conn silenciou o salão: Eu próprio vou matar o miserável. Os seus lábios retorceram-se numa careta. Sean O’Finn, foi preparar a minha montaria. Mer-Nod será o regente até ao meu regresso.

O silêncio do salão transformou-se em tumulto. Protestos em voz alta misturaram-se aos gritos de encorajamento, numa algazarra ensurdecedora. Mer-Nod saiu do seu lugar junto à parede e dirigiu-se a Conn, tentando fazer-se ouvir por cima da cacofonia de vozes. Conn, está louco! Não podemos dar-nos ao luxo de te perder! Com os olhos brilhando, Conn replicou: Não me vão perder. Quando regressar a Tara, trarei comigo a cabeça do monstro que assassinou Kevin. Homem ou fera morrerá às minhas mãos. Sean O’Finn regressou. Desviando o olhar, disse a Conn: A sua montaria está pronta. Há mantimentos para cinco dias. Nimbus também reapareceu, arrastando com dificuldade uma espada maior do que o seu corpo. Conn pegou na espada e ergueu-a no ar. A sua voz trovejou pelo salão: Por Kevin, por Fianna, por Erin, a criatura tem de morrer! Embainhando a espada, correu porta fora e saltou para o dorso do enorme garanhão que o aguardava. Incitou o cavalo a galopar e atravessou intempestivo o portão do baluarte.

Nimbus permaneceu no meio da multidão, onde quase não se dava por ele. Uma mão pequena e encardida subiu para abrandar o latejar das suas têmporas. O céu desolado começou a render-se a uma escuridão ainda mais desoladora enquanto Conn se afastava a galope da fortaleza. Farrapos de nuvens deslocavam-se no horizonte, empurradas por impulsos nervosos do vento frio. Sem o calor do Sol, a unidade do dia acentuou-se à medida que a luz foi desaparecendo ao oriente. Nas árvores, as folhas estremeceram anunciando a noite que se avizinhava. O clarão roxo do crepúsculo permeou a paisagem, transformando os campos verdes num veludo escuro. Os únicos sons que cortavam o anoitecer cada vez mais profundo eram as pancadas cadenciadas dos cascos do cavalo de Conn e o grito solitário e distante de uma andorinha-do-mar. Quando Conn saiu da estrada e se meteu por um terreno encharcado, começou a cair um chuvisco. A última claridade do dia desapareceu enquanto ele punha o cavalo em trote e adentrava no arvoredo mais espesso pelo emaranhado de trepadeiras e folhagens. Aconchegou a capa contra si enquanto o cavalo avançava com cuidado por entre a mata. A fúria corria em círculos dentro da sua cabeça. Reagia ao gelo do ar como se outra pessoa estivesse com frio e fosse seu dever agasalhar esse mortal. A imagem de Kevin sem vida parecia gravada no seu cérebro por um ferro em brasa. O Kevin outrora exuberante e irascível, imóvel e a escorrer sangue. O seu corpo teria que ser amortalhado, entregue ao seu clã pelo Fianna como uma triste recordação do juramento feito quando se juntou às suas fileiras: Juraram aceitar a morte ou a incapacitação de Kevin sem pedir satisfações e sem vingança, excepto a que os seus irmãos guerreiros quisessem levar a cabo. A escuridão da raiva borbulhou nas veias de Conn. Mal saiu da floresta e entrou num prado, mandou o cavalo galopar». In Teresa Medeiros, A Conquistadora, 1998, Planeta Manuscrito, Grupo Planeta, 2010, 2014, ISBN 978-989-657-517-5.

Cortesia de PManuscrito/Gplaneta/JDACT

JDACT, Teresa Medeiros, Literatura, Irlanda,

quarta-feira, 23 de março de 2022

A Conquistadora. Teresa Medeiros. «Para que fez aquilo?, perguntou Conn enquanto se sentava no trono. Não gosto de O’Caflin. O olhar dele não me inspira confiança. Já que é tão bom para avaliar pessoas, diga-me, qual é a sua opinião sobre mandarmos Kevin lutar?»

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«(…) Um soldado bem-apanhado de olhos castanhos juntou a sua voz ao coro: Somos ou não o povo que empurrou Eoghan Mogh, o inimigo de Erin, para sul, para uma terra tão negra e árida como a sua alma? Os malabaristas começaram a atirar as suas maçãs douradas ao ar, uma a uma. E os romanos estão ou não receosos de pôr os pés nas nossas praias, com medo que os enviemos de volta, em lágrimas, às suas deusas da guerra?, gritou uma camponesa esquelética. Dois dos poetas começaram a contar em uníssono a história de Macha Mong Ruad, a amazona de cabelos cor de fogo, filha de Red Hugh. A sala alterou-se, os olhos brilharam de esperança. Por todo o salão ergueram-se taças em brindes às proezas de Kevin, à generosidade de Conn e aos sonhos de uma nova nação baseada na honra e no cavalheirismo. Conn esperou que o trapézio parasse de balançar, arrancou dele o pequeno homem e com cuidado colocou-o de pé no chão. Caminharam juntos até ao trono, mas Nimbus parou uma vez para puxar o cabelo de um soldado louro mal-encarado que o seguia com olhos semicerrados enquanto esfregava a cabeça dolorida.

Para que fez aquilo?, perguntou Conn enquanto se sentava no trono. Não gosto de O’Caflin. O olhar dele não me inspira confiança. Já que é tão bom para avaliar pessoas, diga-me, qual é a sua opinião sobre mandarmos Kevin lutar?, perguntou Conn, afagando a barba. Nimbus encarrapitou-se no braço do trono e afagou o queixo numa imitação perfeita do rei. Desviando-se da mão distraída de Conn, respondeu: A criatura é apenas um homem e não um monstro ou um gigante. Um homem capaz de matar sozinho, quatro membros do Fianna? Não me faça rir, Nimbus. Além disso, continuou Nimbus como se ninguém o tivesse interrompido, creio que o homem é aliado de Eoghan Mogh, enviado para antagonizá-lo e nos distrair a todos. Mer-Nod, que tinha ouvido tudo quando avançou para se encostar à parede, disse: Eoghan Mogh fugiu para o Sul como uma criança, para junto dos que o criaram. Não vai dar-nos trabalho durante algum tempo. Conn soltou uma gargalhada de desprezo. Há quem diga que ele construiu um reino no Sul e planea atacar Tara. No estado em que o deixei, não deve conseguir arranjar ouro nem para erguer uma tenda. Nimbus deslizou do trono e, com um ar travesso, começou a arrancar penas do manto de Mer-Nod. Conn fechou os olhos e recostou-se no trono.

Conta-me uma história, Mer-Nod. Estou cansado e preciso ouvir falar em coisas gloriosas. Quando abriu a boca para responder, Mer-Nod sentiu alguém puxar repetidamente pela parte posterior da sua túnica. Virou-se e lançou a Nimbus um olhar furioso quando o viu reaparecer com uma mão-cheia de penas vermelhas e douradas. Que os deuses o amaldiçoem, raquítico. Larga a minha capa! Conn sorriu e Mer-Nod, que se orgulhava da sua aparência digna, começou a correr em volta do trono, atrás de Nimbus que ria à gargalhada. Uma corneta tocou no exterior do baluarte, interrompendo o ímpeto assassino de Mer-Nod, bem como qualquer outra actividade no salão. As mãos de Conn fecharam-se, implacáveis. Nimbus deu meia volta, retomou a sua posição contra a parede e, com esforço, deu ao seu rosto uma expressão indiferente. Várias maçãs douradas caíram ao chão quando um malabarista se virou para a porta. Os poetas calaram-se no meio dos seus versos, com as suas histórias abortadas no meio da batalha. As crianças que por ali corriam foram imobilizadas pelas mãos das suas mães. Conn levantou-se enquanto as duas partes da porta maciça se abriam de rompante. Um véu protector baixou para lhe esconder os olhos. Como um prado soalheiro escurecido por uma grande nuvem de trovoada, o rosto dele fechou-se numa máscara ilegível. À porta estavam um homem e uma mulher cobertos de suor e imundície. Eram corredores, atletas lendários capazes de dar a volta à ilha de Erin num só dia. A mulher saiu e quando reapareceu, após vários minutos depois, a causa da sua demora tornou-se dolorosamente evidente. Voltou conduzindo um cavalo para o meio da sala. No seu dorso malhado, Kevin O’Artagain fizera a sua derradeira cavalgada. Um soluço abafado irrompeu da multidão e uma jovem caiu ao chão num desmaio fatal. O corpo de Kevin jazia perpendicular ao dorso do cavalo com uma espessa camada de sangue colada ao seu cabelo ruivo. As manchas cor de ferrugem contrastavam vivamente com a palidez da morte. A cabeça retorcia-se para um lado; os olhos fitavam o vazio enquanto o cavalo avançava para o centro do salão. Os que estavam mais próximos estremeceram e recuaram um passo, imaginando o que teriam, aqueles olhos aterrorizados, visto pela última vez. A borda esfarrapada de uma ferida abria-lhe as costas no ponto em que a espada tinha deixado o seu coração. Vários membros do Fianna pensaram ter ouvido o eco do riso de Kevin nos corredores das suas memórias. Com as mãos trémulas, um soldado que observava o sinistro desfile esvaziou a sua cerveja de uma só vez». In Teresa Medeiros, A Conquistadora, 1998, Planeta Manuscrito, Grupo Planeta, 2010, 2014, ISBN 978-989-657-517-5.

Cortesia de PManuscrito/Gplaneta/JDACT

JDACT, Teresa Medeiros, Literatura, Irlanda,

terça-feira, 22 de março de 2022

A Filha do Papa. Luís Miguel Rocha. «A família ainda não sabe. E temos esperança de conseguir resolver este assunto sem que chegue ao conhecimento deles, ouviu-se uma voz áspera dizer da porta»

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«(…) Algumas foram reclamadas mais tarde, outras não. De qualquer forma, a Igreja não devolveu as que acolheu durante mais tempo. Não? Porquê? Os mais novos foram entregues às famílias, obviamente os que permaneceram à guarda da Igreja durante muito tempo acabaram por ser educados na religião católica e não sabiam nada de Israel, nem hebreu, nem nada. Esses não foram devolvidos. Foi o caso dos irmãos Finaly? Mais ou menos. Verdade seja dita que Roma mandou devolvê-los aos familiares. E o que aconteceu? As crianças foram enviadas para um convento em Grenoble mas eram muito novas para lá permanecerem. Acabaram por ser entregues a uma creche. A tutora dos miúdos, de quem não me lembro do nome, se é que alguma vez o soube, afeiçoou-se a eles e antes de cumprir a ordem baptizou-os, em 1948. Giorgio escutava com muita atenção, completamente envolvido pelas palavras de Jacopo. Percebera o problema. Pela lei canónica, uma criança baptizada não podia ser entregue a tutores que professassem outra religião. Isto acabou por envolver as autoridades civis. O tribunal de Grenoble deu razão aos familiares, como era justo, e ordenou a entrega imediata aos familiares, depois de infindáveis recursos. Isto já em 1952. O núncio de Paris, na altura o monsenhor Roncalli…

O Bom Papa João, interrompeu Giorgio em jeito de correcção. Exactamente. Na altura não era Papa nem cardeal. O futuro João XXIII, enfatizou a contra gosto, ordenou a entrega dos dois irmãos mas alguém teve a infeliz ideia de os recambiar para Marselha e depois para o País Basco. Foi ainda mais difícil encontrá-los e devolvê-los à família, em Israel. Foi um escândalo internacional, apareceu em todos os jornais… Prenderam a madre superiora, as freiras, a tutora; foi um descalabro diplomático monumental. Em Julho de 1953, finalmente encontraram-nos e levaram-nos para Israel para sempre. Percebo. Obrigado por me elucidar um pouco mais sobre o venerável Pio XII.

Permaneceram em silêncio durante algum tempo. Jacopo estava à espera que ele o dispensasse para poder voltar a casa, tomar um banho e ir aturar os alunos na Sapienza. Giorgio levantou-se e contornou a secretária. Parou na frente de Jacopo, fitando-o de cima para baixo. Guillermo continuava na mesma posição, impávido e sereno. Já ouviu falar do padre Niklas? Jacopo fez de conta que não percebeu. Mais miúdos? Que raio de conversa é esta? Quem? Um jovem padre alemão, acrescentou Guillermo. Esse não é o…, não sabia como continuar. Não é o filho do… Exactamente, interrompeu Giorgio. É o filho do Embaixador da Alemanha em Itália. O Doutor Klaus Grübbe, afirmou Guillermo. Exacto, disse Jacopo, aliviado. É isso. Guillermo e o monsenhor entreolharam-se de modo suspeito. Alguém me vai dizer o que tem o rapaz?, perguntou Jacopo impaciente. Giorgio entregou-lhe um papel. Era um post-it azul.

O que é isto?, quis saber o historiador. Não estava a perceber o sentido da conversa. Um imprevisto. Um imprevisto? Que raio queria o prelado dizer com aquilo? É um assunto muito sensível que pede bastante discrição. Jacopo tentou devolver o bilhete a Giorgio. Pode ficar com ele. Não tenho intenção nenhuma de me meter em assuntos sensíveis e discrição não é qualidade que me tenha calhado. Giorgio não aceitou o pequeno papel. Pigarreou para aclarar a voz como se as palavras estivessem enferrujadas. É um pedido de resgate. O padre Niklas, filho do embaixador da Alemanha, foi raptado há algumas horas em Sant’Andrea. Jacopo engoliu em seco ao ler o bilhete. O que é que os irmãos Finaly…, não quis continuar. Já informaram a família? Giorgio fez um meneio negativo com a cabeça. Não. A família ainda não sabe. E temos esperança de conseguir resolver este assunto sem que chegue ao conhecimento deles, ouviu-se uma voz áspera dizer da porta. Jacopo desviou a cabeça nessa direcção e viu o intendente da Gendarmaria Vaticana, Girolamo Comte. Vestia um fato preto por baixo de um sobretudo cinzento-escuro. Entre, por favor, Comte, pediu o secretário. Estava mesmo a colocar o doutor ao corrente da situação. Os relatores já foram alertados?, quis saber o historiador. O intendente enviou um destacamento de segurança, respondeu Giorgio, acenando com a cabeça na direcção de Girolamo. Como correram as coisas com a Polizia di Stato?» In Luís Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.

Cortesia de PEditora/JDACT

JDACT, Luís Miguel Rocha, Religião, Literatura, Actualidade,

Deslumbrante. Madeline Hunter. «A chegada de Sebastian, portanto, não atraiu grande atenção. Desceu a rua principal, passando por lojas em edifícios velhos de tabique e casas de pedra alinhadas. Procurou uma taverna»

 

Cortesia de wikipedia e jdact

 «(…) Demais então. Avise a Fenwood para não recebê-la na próxima vez. Não permita que ela se assenhore do seu apartamento e entre nele a seu bel-prazer. Existira sempre o perigo de a mãe deles transformar Morgan numa criança assim que tivesse a oportunidade. Intrometia-se, o mimando e dominando, até ele perder o direito de ser um homem distinto. Esse havia sido o motivo de Sebastian se mudar para aquela casa quando o irmão voltou da guerra. Sua presença assegurava que a mãe não expandiria demais o seu domínio, especialmente no que dizia respeito ao filho mais velho. Sempre foi melhor em lidar com ela do que eu. Como em tantas outras coisas, declarou Morgan. Não havia nada que dizer adiante daquilo, por isso ambos voltaram-se aos jornais. Disse que esteve perto de Brighton, ontem? Ouviu alguma coisa acerca do espectáculo no Duas Espadas? Espectáculo? Morgan estreitou os olhos para ler as letras impressas. Deixou sair um sorriso. Um homem levou um tiro de uma amante. Aquilo é que deve ter sido um bom teatro. Ele não morreu, parece. Mesmo assim, não se deve ter falado de outra coisa lá em baixo. O que está lendo aí? Morgan corou. Um dos jornais cor-de-rosa da nossa mãe. De Brighton? Londres.

Maldição! Sir Edwin estava certo. A história provavelmente chegara à cidade antes de qualquer uma das suas vítimas. Evidentemente, não havia nomes no jornalzinho, porém. Ainda. O ritual terminou às onze horas. Sebastian se despediu e voltou ao próprio quarto. O criado pessoal o saudou com uma carta selada na mão. O endereço não estava correcto, meu senhor. Sebastian pegou a carta. Escrevera-a para miss Kelmsleigh e enviara-a por um mensageiro para a casa do pai. Não vivem mais lá? Mrs. Kelmsleigh sim, e miss Sarah Kelmsleigh. Audrianna Kelmsleigh, porém, não. O lacaio perguntou e lhe disseram que ela fora morar no Middlesex, perto da aldeia de Cumberworth. Sebastian levou a carta para o quarto. Abriu uma gaveta e olhou para a pistola que trouxera do Duas Espadas. Suas tentativas de devolvê-la de forma discreta não tinham dado certo. Podia mandar o despachante a Cumberworth. Se miss Kelmsley havia se mudado para o campo, bastariam algumas perguntas para localizá-la. Podia igualmente embrulhar a pistola e dá-la ao criado, e dar o assunto por encerrado. Viu a pistola numa mão suave, feminina. Viu olhos verdes de mulher cintilando de vida, depois acendendo de fascínio e paixão, e, por fim, esmaecendo de melancolia. Imaginou ela atravessando a hospedaria até à carruagem, fingindo não reparar que os outros clientes olhavam e sussurravam. Disse ao criado para mandar buscar o cavalo.

Cumberworth continuava uma aldeia rural, mas Londres se aproximava a cada ano que passava. Já fora absorvida pelos subúrbios da cidade, um dos muitos vilarejos do Middlesex que viam recém-chegados se misturar com velhos residentes e agentes imobiliários decompor quintas em pequenas propriedades para as famílias prósperas da sua vizinha maior. A chegada de Sebastian, portanto, não atraiu grande atenção. Desceu a rua principal, passando por lojas em edifícios velhos de tabique e casas de pedra alinhadas. Procurou uma taverna.

O Baron’s Board não estava muito cheio às duas da tarde e a cerveja de Sebastian chegou rápido. Bebeu em pé, submetendo-se à inspecção curiosa do proprietário. Também está assim húmido na cidade?, perguntou o homem, secando canecas de cerveja. Pior, respondeu Sebastian. Está a caminho de um lugar mais seco? Não, vim à procura de uma pessoa para tratar de negócios. Talvez a conheça. Miss Kelmsleigh. O proprietário estalou a língua… Eu conheço ela e as amigas. Todas as pessoas de Cumberworth conhecem as hóspedes de mrs. Jones. Ah, conhecem? Acho que miss Kelmsleigh é prima dela, não sua hóspede. É difícil saber do que chamar aquelas mulheres, não acha? O resto não são parentes, não me parece. Só um grupo de mulheres que vieram de visita e nunca mais foram embora. Mrs. Joyes vive na aldeia? Tem propriedade a pouca distância. Uma casa boa e um bom pedaço de terra. Cultiva flores numa estufa grande. Vende-as em Londres a floristas chiques. A casa dela fica um tanto afastada da rua, por isso há uma placa pintada no local onde é preciso virar. Flores Preciosas, é assim que o negócio dela se chama. Estalou novamente a língua. Até parecem boa gente. São reservadas. Não há razão para pensar que haja alguma coisa imprópria, mas as pessoas falam, não é mesmo? Sem dúvida. Sebastian acabou de beber a cerveja e pediu indicações para chegar ao letreiro do Flores Preciosas. Quinze minutos depois, seguia pelo caminho privado que conduzia à casa de mrs. Joyes». In Madeline Hunter, Deslumbrante, Edições ASA, 2013, ISBN 978-989-232-372-5.

Cortesia de EASA/JDACT

JDACT, Madeline Hunter, Escrita, Saber, 

segunda-feira, 21 de março de 2022

O Sangue dos Inocentes. Julia Navarro. «Coexistiam duas criações, a má e a boa, a terrena e a espiritual. Os perfeitos, acrescentou, ajudam-nos a encontrar o caminho para fugir da prisão e para que a nossa alma…»

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Languedoq meados do sécalo XIII

«(…) O cabreiro deteve-se junto de umas árvores que se encarrapitavam por um dos penhascos. Mal recuperara o fôlego quando se encontrou perante dona Maria. Julián, filho, quanto me alegra ver-te! Minha senhora... Vem, senta-te a meu lado, não temos muito tempo e temos de o aproveitar. Quero que me contes como estão as coisas ali em baixo. Os nossos espiões dizem que Hugues des Arcis conta com dez mil homens. Espero que o conde de Toulouse não se amedronte perante essa força e cumpra os seus compromissos para com esta terra. Não se trata apenas de fé, mas sim de poder. Que dizeis, senhora? Se Hugues des Arcis conquistar Montségur, acabou-se a liberdade na nossa terra. O rei quer estas terras porque, sem elas, o seu reino não vale nada. Pensas que lhe interessam os cátaros? Não, filho, não te iludas, aqui não se luta por Deus, mas sim pelo poder. Querem o nosso país para a Coroa. Mas o papa quer erradicar a heresia! O papa sim, mas ao rei de França tanto lhe faz.  Senhora, dizeis cada coisa...! Bem, não te cansarei com as minhas ideias, prefiro ouvir-te, ou melhor, que respondas às minhas perguntas. Durante uma hora, dona Maria interrogou Julián. Não houve pormenor acerca das forças de Hugues des Arcis sobre as quais não lhe colocasse perguntas. E tu, Julián? Continuas a ser um crente? Que sei eu! Estou confuso, senhora, já nem sei quem é Deus. Mas como é possível que digas isso? Enganei-me contigo? Sempre te considerei inteligente, por isso quis que estudasses e te tornasses dominicano... Contudo, a única coisa que quereis é que atraiçoe os meus irmãos! O que quero é que sirvas o Deus verdadeiro, e não o demónio que tens por Deus.

Julián persignou-se, espantado. Dona Maria atormentava-o com as suas ideias heréticas e fazia-o duvidar. Ainda recordava o dia em que o chamara para lhe dizer que encontrara o Deus verdadeiro, e que a partir desse momento ele também o deveria servir. Explicou-lhe que o mundo fora criado por uma divindade inferior, um demónio que encarcerara os verdadeiros anjos, e que estes anjos eram as almas humanas que apenas se libertariam com a morte. O corpo, disse-lhe, era uma prisão, o pior dos calabouços. Deus nada tinha a ver com a terra oblivionis. Era Ele o artífice do espírito, não da realidade material. Coexistiam duas criações, a má e a boa, a terrena e a espiritual. Os perfeitos, acrescentou, ajudam-nos a encontrar o caminho para fugir da prisão e para que a nossa alma se encontre no céu com essa parte do nosso espírito que voltará a tornar-nos inteiros. Vi dom Fernando. Meu filho? Vosso filho». In Julia Navarro, O Sangue dos Inocentes, 2007, Bertrand Editora, 2017, ISBN 978-972-253-182-5.

Cortesia de BertandE/JDACT

JDACT, Julia Navarro, Literatura, Cátaros,

domingo, 20 de março de 2022

Julia Navarro. O Sangue dos Inocentes. «De uma jovem bela e encantadora que não teve outra opção senão entregar-se ao seu senhor. Não fui eu que ditei as regras, nem estou de acordo com elas. Mas vós sabeis tão bem quanto eu que os senhores têm filhos fora do matrimónio»

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Languedoq meados do sécalo XIII

«(…) Se não vos incomoda, desejaria ficar na tenda, afirmou Julián. Sinto-me mal. Quem sabe o sono me sirva de ajuda. Direi ao médico que vos volte a examinar, disse frei. Não! Rogo-vos! Não suportaria outra sangria! Um pouco de sopa e um pedaço de pão para molhar no vinho serão os melhores dos remédios. Estou muito cansado, frei Pèire... Creio que tem razão, intercedeu Fernando. O melhor que podemos fazer pelo meu bom irmão é deixar que repouse. Não há nada melhor do que um bom sono reparador. Quanto a vós, dom Fernando, esperam-vos para partilhar o jantar com meu senhor Hugues des Arcis e o resto dos cavaleiros. Não me demorarei mais de um minuto, o tempo que tardareis em trazer o caldo e o vinho com pão ao bom Julián. Com passo diligente, frei Pèiré voltou a sair da tenda, preocupado pela palidez do irmão Julián. Que Deus o perdoasse, mas acreditava ter visto a morte reflectida no rosto dele. Sinto ter-vos causado pesar, disse Fernando, quando ficaram de novo sós. Não vos preocupeis. Sim, preocupo-me porque vos aprecio, e quer gosteis quer não, somos meios-irmãos. Isso não vos deveria afligir. Sois filho de um nobre senhor da vila de Aínsa. E de uma criada de vossa casa.

De uma jovem bela e encantadora que não teve outra opção senão entregar-se ao seu senhor. Não fui eu que ditei as regras, nem estou de acordo com elas. Mas vós sabeis tão bem quanto eu que os senhores têm filhos fora do matrimónio. Tivestes sorte, porque minha mãe nunca abandonou os filhos bastardos, nem tão-pouco as suas mães. Procurou dar a todos uma posição e colocou um especial empenho no vosso caso. Fostes criado no nosso solar de família, aprendestes a montar a cavalo ao mesmo tempo que eu e fizeram-vos aprender a ler e a escrever, inclusive, minha mãe comprou-vos o vosso cargo eclesiástico... Mas sou um bastardo. Somos todos iguais perante os olhos de Deus. No dia do Juízo Final não vos perguntarão pelo momento nem pela circunstância do vosso nascimento, apenas por aquilo que fizestes nesta vida. Julián, aterrado, começou a tossir convulsivamente enquanto Fernando tentava em vão fazê-lo beber água. Acalmai-vos e bebei água! Mas, que vos está a acontecer? O juízo de Deus..., sei que irei para o inferno. O frade tremia e as lágrimas deslizavam-lhe pelas faces. A angústia e o medo converteram o escrivão da Inquisição (maldita) numa criança. Mas, Julián, qual a vossa culpa para que vos sintais assim? Vossa mãe, é ela a culpada do meu sofrimento! Calai-vos! Como vos atreveis a dizer tamanha barbaridade! As lágrimas inundaram o rosto do frade que, por entre fortes convulsões, caiu no austero catre onde dormia. Fernando não sabia que fazer. Sentia pena ao ver o estado de Julián, a quem sempre quisera e protegera, e que preferia ao resto dos seus irmãos.

É uma sorte que tenha vindo connosco o cavaleiro Armand. É um físico bom e no Oriente aumentou os seus conhecimentos. Pedir-lhe-ei que vos visite e vos dê um remédio para o mal que vos apoquenta. Agora tenho de ir. Amanhã, voltarei para vos ver. Fernando saiu da tenda, intrigado pelo sofrimento de Julián. Preocupava-o, mais que o padecimento físico do irmão, saber que tinha a alma apoquentada. Julián permaneceu um bom bocado encolhido no catre. Nem sequer se mexeu quando frei Pèire lhe levou a sopa, o pão e o vinho. Preferiu fingir que estava a dormir para não ter que se confrontar com outra conversa acerca do seu calamitoso estado de saúde. Quando deixou de ouvir os passos de frei Pèire, sentou-se para molhar o pedaço de pão no vinho de sabor áspero que algumas vezes lhe conseguia levantar o ânimo. Bebeu de uma só vez a sopa e voltou a estender-se, à espera que se desvanecessem os ruídos do acampamento para acudir ao pedido de dona Maria. O homem que lhe entregara a mensagem da senhora esperá-lo-ia no exterior do acampamento para o conduzir através dos penhascos até ao lugar onde se devia encontrar com ela.

Não soube quanto tempo passara quando ouviu um ruído perto da tenda. Sentou-se sobressaltado, consciente de que adormecera. Conseguiu levantar-se a muito custo e serviu-se de um copo de água, que bebeu com sofreguidão. De seguida, enxaguou o rosto, vestiu o hábito amarrotado, e saiu silenciosamente da tenda. Sentia que as pancadas do coração podiam despertar o acampamento que nesse momento estava tranquilo, iluminado pelas chamas das fogueiras que tentavam aliviar o frio intenso daquela noite de Inverno. Escapuliu-se do acampamento com passos rápidos e dirigiu-se ao bosque, certo que a qualquer momento apareceria o enviado de dona Maria.

Estais atrasado, recriminou-o o homem que saiu ao seu encontro como se se tratasse de um espectro. Era um cabreiro que conhecia bem os caminhos da montanha. Não pude vir antes. Ou adormecestes, replicou o homem, de mau humor. Não, não adormeci, só que não posso sair do acampamento quando me apetece. Pois outros o fazem. Isso é uma surpresa! Surpreende-vos que entre os soldados recrutados à força existam alguns que têm familiares ali em cima? Julián calou-se. De modo que Fernando tinha razão. Havia quem entrasse e saísse de Montségur como de sua própria casa. Onde é que a senhora me espera? Segui-me até ao lugar. Caminharam perto de uma hora entre penhascos formados por blocos calcários que terminavam na enorme rocha onde, desafiador ao olho humano, se encontrava o castelo de Montségur». In Julia Navarro, O Sangue dos Inocentes, 2007, Bertrand Editora, 2017, ISBN 978-972-253-182-5.

Cortesia de BertandE/JDACT

JDACT, Julia Navarro, Literatura, Cátaros,

sábado, 19 de março de 2022

As Três Sereias. Irving Wallace. «Mas porque motivo se sente nervosa? Hackfeld já concordou em conceder um subsídio. Sabe que Maud afirma que necessitamos de mais. Como pode Hackfeld insistir num grupo…»

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«(…) Depois de acabar de comer os ovos, Claire ergueu os olhos e fitou o marido, que continuava ocupado com a sua refeição. Não se devia nunca observar uma pessoa quando ela comia. Parece ridícula, distorcida, comodista. Claire separou Marc da comida. Ele dava sempre a impressão de ser mais baixo do que ela, disse de si para si. Tem um metro e oitenta e três de altura, mas existe nele um hormónio perverso que lhe reduz a altura. Contudo, considerava-o fisicamente atraente. As suas feições, as suas proporções, eram correctas, regulares, equilibradas. O corte do cabelo parecia um anacronismo num rosto tão rígido, tão grave, embora lhe ficasse bem quando ele sorria, gracejava, se encontrava contente ou esperançado. Os olhos, de um cinzento opaco, eram profundos, mas bem distanciados um do outro. O nariz era aquilino, os lábios finos. Todavia, no aspecto geral, era belo, irradiava sinceridade, por vezes simpatia, como um estudioso austero. Tinha o corpo compacto, demasiado musculoso, de um atleta de segundo plano. Usava ternos largos, mas elegantes, que lhe assentavam bem. Se o aspecto dissesse tudo, pensou Claire, Marc seria mais feliz e ela reflectiria a felicidade dele. Mas o seu interior, sabia Claire, vestia com frequência roupagens diferentes, e ressentia-se do seu acanhamento. Não quis suspirar alto, porém isto aconteceu. Marc ergueu os olhos, interrogativamente. Claire tinha de dizer qualquer coisa. E disse: Sinto-me um pouco nervosa quando penso no jantar especial desta noite, nos convidados...

Mas porque motivo se sente nervosa? Hackfeld já concordou em conceder um subsídio. Sabe que Maud afirma que necessitamos de mais. Como pode Hackfeld insistir num grupo tão grande se se mostra tão avaro em relação ao dinheiro? É por isso que ele é rico. Ademais, tem muitas outras coisas em que pensar. Pergunto-me como Maud resolverá o problema com ele, declarou Claire. Deixe isso com ela. É a sua especialidade. Os olhos de Claire seguiram Suzu até ao fogão. Suzu, que haverá para esta noite? Frango à Teriyaki. O caminho para a bolsa de um homem passa pelo seu estômago. Brilhante, Suzu. Isso é bem verdade, retorquiu ela, sorrindo. Que bolsa? Que estômago? Maud Hayden encontrava-se à porta da sala de jantar. Os cabelos grisalhos achavam-se indescritivelmente revoltos, talvez devido ao vento. O rosto largo e enrugado estava corado. O corpo forte, mas atarracado, parecia não ter formas no casaco com capuz cor-de-rosa e na saia de flanela azul-marinho, e nos sapatos largos, grosseiros. Ela agitou sua bengala, um produto do Equador e do país dos jívaros. Qual é o assunto da conversa?, perguntou. Cyrus Hackfeld, o depositário do nosso dinheiro, respondeu Claire. Tomou já o café? Sim, há já algumas horas, disse Maud, tirando o capuz. Brrr. Faz um frio dos diabos lá fora. Sol e palmeiras, e contudo quase que enregelamos. Que espera em Março?!, exclamou Marc. O tempo da Califórnia, meu filho. Sorriu para Claire. De uma maneira ou de outra, dentro de poucas semanas teremos todo o tempo tropical que conseguirmos suportar. Marc ergueu-se e estendeu a pasta à mãe. A última comunicação sobre as pesquisas acaba de chegar.

Nem uma palavra sobre as Sereias. Um Daniel Wright viveu em Londres. E, até há muito pouco tempo, um Thomas Courtney exerceu a advocacia em Chicago. Maravilhoso!, exclamou Maud, despindo o casaco, com o auxílio de Marc. É do Courtney que eu dependo. Não calcula quanto vai-me auxiliar. Em seguida, dirigindo-se a Claire, acrescentou: Cada viagem de estudo decente demora de seis meses a um ano, e em certos casos mesmo dois anos. A mais curta em que tomei parte demorou apenas três meses. Mas aqui temos umas ridículas seis semanas. Por vezes, demoramos este tempo a localizar o nosso informante mais importante, uma pessoa na aldeia que seja relativamente digna de crédito, que conheça as lendas e a história, que não se importe de falar. Não é possível descobri-lo numa semana e estabelecer depois contacto com ele do dia para a noite. Tem de se esperar com paciência, aguardar que ele se habitue a nós, que aprenda a confiar em nós, e, por fim, que se dirija mesmo a nós. Se se descobre o homem de que se necessita, ele arranja as coisas de maneira a que não encontremos dificuldades na aldeia. Bem, no presente caso tivemos muita sorte. Courtney, se é o que Easterday diz dele, parece-me o perfeito intermediário. Ele tem o povo das Sereias preparado para nos dispensar um bom acolhimento. Compreende-nos e às nossas necessidades». In Irving Wallace, As Três Sereias, Livros do Brasil, Colecção Dois Mundos, 2000, ISBN 978-972-381-025-7.

Cortesia de LdoBrasil/DMundos/JDACT

JDACT, Irving Wallace, Literatura, A Arte, Polinésia, 

sexta-feira, 18 de março de 2022

As Três Sereias. Irving Wallace. «Mais alguma coisa acerca dele? Datas, em especial. Tem trinta e oito anos. Licenciou-se pelas Universidades Northwestern e de Chicago. Sócio de uma firma antiga. Foi aviador na Guerra da Coreia, em 1952»

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«(…) Suzu, sorridente, preparava-se para servir o café e Marc achava-se sentado à mesa da cozinha, inclinado sobre uma pasta aberta, quando Claire entrou. Esta deu o bom dia a Suzu e passou em seguida a mão pelo cabelo de Marc, cortado quase rente, ao mesmo tempo que lhe beijava uma das faces. Sentou-se, bebeu de um trago o suco de laranja e fez uma careta, pois esquecera-se de adoçá-lo. Depois, olhou para o outro lado da mesa. Maud ainda não chegou? Anda passeando por aí, retorquiu Marc, sem erguer os olhos. Claire mordeu o canto de uma torrada. Bem, disse, apontando para a pasta, a nossa Disneylândia polinésia existe realmente? Marc ergueu a cabeça e encolheu em seguida os ombros. Talvez sim, talvez não. Porém, gostaria de estar tão certo como a Matty. Deixou cair uma das mãos sobre os papéis que se encontravam diante de si. Os nossos estudantes parecem ter feito um belo trabalho, mesmo na Biblioteca do Congresso. Vasculharam toda a literatura sobre os Mares do Sul, a publicada e a não publicada. Nenhuma referência em parte alguma às Três Sereias. Nem uma palavra sequer...

Isto não deve surpreender. Easterday disse que era um grupo desconhecido. Sentir-me-ia mais tranquilo se houvesse alguma coisa publicada. Claro..., começou de novo a folhear as notas..., diversas outras fontes parecem apoiar um pouco as afirmações de Easterday. O quê, por exemplo? Existiu realmente um Daniel Wright, que viveu em Skinner Street, em Londres, antes de 1795. Em Chicago houve, também, um advogado chamado Thomas Courtney... Ah, sim?! Mais alguma coisa acerca dele? Datas, em especial. Tem trinta e oito anos. Licenciou-se pelas Universidades Northwestern e de Chicago. Sócio de uma firma antiga. Foi aviador na Guerra da Coreia, em 1952. Ao voltar, começou de novo a exercer a advocacia em Chicago. A partir de 1957 não se sabe mais nada. Foi nesse ano que partiu para os Mares do Sul, afirmou calmamente Claire. Talvez, volveu Marc. Sabê-lo-emos dentro de muito pouco tempo. Em seguida fechou a pasta e dedicou-se aos flocos de cereal e ao leite. Temos onze semanas para fazer compras de Natal, disse Claire. Não creio que se celebre o Natal nas Três Sereias, retorquiu Marc. Não é lugar para mulher..., entre aqueles primitivos. Se eu pudesse, deixaria você aqui, de boa vontade. Não ouse sequer tentá-lo!, exclamou Claire, com indignação. Além disso, não são inteiramente primitivos. Easterday afirmou que o filho do chefe falava um inglês perfeito. Muitos primitivos falam inglês, redarguiu Marc. Incluindo alguns dos nossos melhores amigos, acrescentou de súbito, sorrindo.

Não me agradaria também que você desperdiçasse muito tempo com eles. Encantada com esse interesse, que não era muito habitual no marido, Claire passou a mão sobre a dele. Esse interesse é mesmo verdadeiro?, perguntou. Dever masculino e instinto respondeu Marc. Proteger a nossa companheira... Mas, a sério, as viagens de estudo não são piqueniques. Já disse que detesto as que me vejo obrigado a fazer. Não são nunca tão idílicas na realidade como parecem quando as descrevem nos livros. Em geral descobrimos que não temos muito de comum com os nativos, além do nosso trabalho com eles. Tem-se saudade de todos os pequenos prazeres da vida. Inevitavelmente, adoece-se de disenteria, de malária, ou de qualquer outra maldita febre. Não me agrada expor uma mulher a todas essas situações difíceis, mesmo que se trate de um curto período. Claire apertou a mão do marido.

Você é um amor. Mas estou certa de que não será tão mau como supõe. Apesar de tudo, sempre terei a sua companhia e a de Maud. Poderemos estar muito ocupados. Farei o possível por me ocupar também com alguma coisa. Desejo participar de toda a experiência. Não diga depois que não a avisamos. Claire retirou a mão, pegou no garfo e enterrou-o, pensativa, nos ovos fritos. Conhecendo Marc como conhecia, perguntou-se se ele realmente estava tão interessado no seu bem-estar como queria fazer parecer, ou se projectava apenas seus próprios receios em relação a um facto novo e estranho. Era Marc, como tantos homens, constituído por dois indivíduos separados, constantemente em conflito, cada um deles decidido a obter uma paz separada? Irritá-lo-ia, intimamente, uma rotina monótona, e, ao mesmo tempo, encontraria segurança nela? Era tão firme, tão constante, nos seus movimentos diários como os ponteiros de um relógio que funciona como precisão? Todavia, poderia desejar fugir a esta existência, apesar da tranquilidade que ela proporcionava. Atrás deste ajustamento superficial talvez espreitasse um outro Marc, um Marc que partia para viagens de que ela jamais participaria, viagens a secretos Monte Cristo que temporariamente o libertavam das prisões do dinheiro e das celas do nada. Para ele, talvez as Três Sereias não oferecessem qualquer benefício pessoal, mas apenas o prosseguimento da rotina, mais penoso. Assim, transformaria a aversão que sentia pela sua própria destruição em desvelo e inquietação pela mulher». In Irving Wallace, As Três Sereias, Livros do Brasil, Colecção Dois Mundos, 2000, ISBN 978-972-381-025-7.

Cortesia de LdoBrasil/DMundos/JDACT

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O Último Papa. Luís Miguel Rocha. «Nesse caso, a mulher é personificada por um musical que está ávido por ver há algum tempo, embora, por razões pessoais, só hoje tal oportunidade se tenha apresentado. Não lhe passa pela cabeça que todos os seus movimentos estejam sendo monitorados, a pouca distância, por um homem de casaco que fala ao telefone»

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Conclave

26 de Agosto de 1978

«(…) Continuam o caminho para sul, pela Sétima Avenida, o homem de casaco sempre no rasto do outro, mais velho, a uma distância segura. Tem experiência no assunto, já que o movimento de trânsito e pessoas, ruídos e milhares de hipotéticos pontos de desconcentração não parecem afectar de forma alguma a perseguição. De qualquer maneira, nem precisa segui-lo, pois sabe perfeitamente qual o destino do idoso. Um toque de telemóvel, auxiliado pelo efeito vibratório, chama a atenção do homem. Alguém está ligando. Sim, atende com voz firme e decidida enquanto atravessa o cruzamento da Sétima Avenida com a 43. A magnitude dos arranha-céus não o impressiona de maneira nenhuma, o que demonstra que não é a primeira vez que visita a cidade. Correu tudo bem? Um esgar de impaciência. O quê? Limpem a porcaria que fizeram! Não deixem vestígios! Vira à direita na 42, visivelmente irritado. Se as coisas não correrem como planeado, nem vale a pena dizer o que lhes vai acontecer. Quero a mulher prestando contas a São Pedro ainda, hoje! Espero um telefonema de vocês com essa notícia. Assim que desliga abruptamente o telemóvel, marca outro número, controlando os passos do seu alvo. Apesar de idoso, na casa dos setenta, caminha vigorosamente, como um adolescente que vai a alguma festa onde sabe haver mulheres. Nesse caso, a mulher é personificada por um musical que está ávido por ver há algum tempo, embora, por razões pessoais, só hoje tal oportunidade se tenha apresentado. Não lhe passa pela cabeça que todos os seus movimentos estejam sendo monitorados, a pouca distância, por um homem de casaco que fala ao telefone.

Hello. Vamos ao teatro... Tudo calmo por enquanto... Ainda não deu nenhum passo em falso... Aguarda uns instantes, inspira fundo e fecha os olhos. Senhor, as coisas não estão correndo bem em Londres... O alvo escapou e tivemos uma baixa... Sim, eu sei, a baixa é o de menos... Já mandei limpar o local. Escuta atentamente as recomendações ordenadas pelo interlocutor. Não sei se eles vão conseguir dar conta do recado..., talvez  seja melhor o Mestre activar a Guarda... Pára no número 214, o Hilton Theatre, antes o Ford Center for the Performing Arts. O teatro é recente, remodelado em 1997, mas a fachada faz lembrar os teatros do final do século XIX, início do século XX. Talvez porque pertença mesmo a essa época. Na realidade, o Hilton Theatre, com entrada pela rua 43 e também pela 42, era dois teatros até 1997, o Lyric e o Apollo. A remodelação os juntou, transformando-o num dos maiores da Broadway. Contudo, quem estivesse à espera de um interior completamente adaptado aos tempos modernos sairia desiludido, pois o Hilton, apesar das exigências subtis de conforto com que foi beneficiado, mantém todo o peso da sua história de cem anos nas peças aproveitadas dos dois teatros. O homem, ainda com o telefone colado ao ouvido, entra no átrio e entrega o bilhete a um jovem, que o rasga. Procedimentos rotineiros, habituais em todos os teatros do mundo. O jovem indica-lhe seu lugar na plateia.

Se desejar, pode deixar o casaco na chapelaria, senhor. Muito obrigado. Pode dizer-me onde fica o banheiro? Claro. Primeira à esquerda, senhor. O homem prossegue o caminho em direcção ao banheiro, pelo menos até sair da vista do jovem rasga-bilhetes. Confirme-me assim que a Guarda neutralizar o alvo em Londres... Sei que posso considerá-lo neutralizado, mas... Okay, senhor... Quanto a este, mantenho as coisas como estão até que ele se revele. Muito bem. Adeus. Passa os banheiros e sobe pelas escadas até ao primeiro balcão. A sala está praticamente lotada, mas depois de uma observação atenta descobre um lugar vazio na fila da frente, do lado direito. Excelente lugar. Não que esteja interessado em assistir ao musical dirigido por Adrian Noble, baseado no livro do famigerado Ian Fleming, o sumo criador do célebre Bond, James Bond. Sorri só de pensar na ironia. Agentes secretos, actividades confidenciais como a dele, Ian Fleming, James Bond..., e Chitty Chitty Bang Bang, apesar do título sugestivo, nada tem de secreto ou confidencial. São duas horas e meia de puro entretenimento musical e humorístico; mas para esse homem, como para os actores da peça, é apenas um trabalho que se faz com satisfação. As luzes da sala diminuem de intensidade até que se apagam. O instrumental providenciado pela orquestra instalada no palco entra em cena, preparando o público para o que virá. O homem tira um pequeno binóculo do bolso para apreciar melhor o que se passa no palco e na plateia. Dois minutos bastam para que se fixe na pessoa que procura: o indivíduo com certa idade, sentado numa das cadeiras da ponta direita da ala central da sala. Um sorriso invade a boca do homem, que se recosta confortavelmente na cadeira do primeiro balcão. Aponta a mão como se fosse uma arma, indicador e polegar retesados, para o idoso lá em baixo. Bang. Bang». In Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-969-7.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT

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quinta-feira, 17 de março de 2022

O Último Papa. Luís Miguel Rocha. «A melhor palavra para caracterizar o que se passou nos últimos segundos com Sarah Monteiro é milagre. Não um daqueles reconhecidos pela Santa Madre Igreja, com todos os exames físicos, documentais, testemunhais e ficcionais…»

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Conclave

26 de Agosto de 1978

«(…) Contudo, o homem não ia lhe fazer as vontades. Muito pelo contrário. A ideia era acabar com todas. E tudo terminou muito rápido. Viu a arma, segura por um punho envolvido numa luva de couro, atravessar a névoa. Assim que divisou o restante do corpo, agarrou o extintor com toda a força e impulsionou-o contra a cabeça do homem. Este esquivou-se, aninhando-se e avançando adiante, meneando o corpo até acabar de frente para Sarah Monteiro, de arma apontada. Em nenhum momento perdeu o equilíbrio. Movimentos precisos de quem conta com o imponderável. Sua massa corporal tapa quase toda a luz exterior que entra pela janela e impede que Sarah consiga ver o seu rosto. Apenas uma silhueta grande que lhe aponta uma arma. Uma peça letal que lhe dará uma morte rápida. Dois disparos. Sarah dá um grito abafado e deixa-se cair ao longo da parede. É isso que se sente quando se leva dois tiros? Nada? Será que a morte foi tão rápida que passou instantaneamente para o lugar para onde se vai quando se morre? O estrondo do homem caindo pesadamente de barriga para baixo no soalho retira-a dos desvarios espirituais. A cabeça dele ficou em cima das suas pernas. Os olhos apáticos, vazios, esbugalhados na direcção dela, numa espécie de manifestação derradeira de incompreensão do que sucedera.

A melhor palavra para caracterizar o que se passou nos últimos segundos com Sarah Monteiro é milagre. Não um daqueles reconhecidos pela Santa Madre Igreja, com todos os exames físicos, documentais, testemunhais e ficcionais, mas um providencial, personificado na decisão engenhosa de Sarah, combinado com a sorte que o Além, lança sobre os humanos em certas ocasiões, e que pode ser aproveitada ou não. Nem Sarah compreendeu de imediato. Só instantes depois reparou em dois pequenos buracos no vidro da janela. Com medo, coloca um dedo nas costas do homem e sente a humidade do sobretudo. Sangue. Alguém desempenhara o papel de seu anjo da guarda. Mas quem? Senhor Raul, tem muito que me explicar. Agora é hora de fugir.

Times Square. Um dos centros do mundo civilizado, comparável a Trafalgar Square, Champs Élysées, Alexanderplatz, Praça de São Pedro e por aí afora. Na praça do tempo, onde o relógio digital marca as horas, os minutos e os segundos que faltam para o novo ano, o barulho nocturno é idêntico ao diurno. Nessa cidade de Nova York, e ainda mais nessa praça mítica do coração nova-iorquino, norte-americano e também de alguns europeus, a publicidade luminosa enche os olhos dos turistas, a luz ofuscante do apelo ao consumismo, estímulo primeiro do mundo capitalista. O volume de trânsito é igualmente digno de nota: transportes públicos, automóveis, táxis amarelos, caminhões de carga, tudo a convergir para a Broadway e para a Sétima Avenida, onde estas se cruzam e se afastam para outros destinos no imenso emaranhado de ruas e avenidas, túneis e pontes de Manhattan. Milhares de pessoas ocupam as ruas nessa parte da cidade. A que nos interessa: todo o quarteirão que circunda a Times Square até à Rua 42. Não que o lugar importe mais do que o homem que nele anda, com passos muito seguros e resolutos, o casaco aberto esvoaçando para trás como uma capa ao vento, tamanha a velocidade que imprime ao andar. De onde vem não é relevante informar, já que a lista é extensa -muitos lugares por esse mundo afora; tudo para que se cumpra o objectivo, o Grande Plano traçado por uma mente mais brilhante que a dele. Passa indiferente à indiferença dos milhares de transeuntes que com ele partilham o passeio largo. Na enorme bilheteira da TKTS incrustada na 47, mesmo entre a Broadway e a Sétima Avenida, o mais famoso cruzamento do mundo, coloca-se na fila e apura os ouvidos.

Um para o Chitty Chitty Bang Bang, por favor. Para a sessão das sete, pede o idoso que está sendo atendido, duas pessoas à sua frente. Chitty Chitty Bang Bang. Os lábios do homem do casaco abrem-se num sorriso. Bastante apropriado. Assim que chega a sua vez na fila, compra um bilhete para a mesma sessão da mesma peça, em cena no Hilton Theatre, na Rua 42. Perambula alguns minutos pelas lojas e toma um cappuccino no Charley Co's. Poderia pensar-se que está apenas gastando tempo até o início da peça, mas um olhar mais atento, algo impossível de pedir às pessoas que por ali andam, imersas na sua vida, revela que esse homem não anda ao sabor da sua vontade. Segue os devaneios de caminhante de um outro, o idoso que comprou, apenas há minutos, um bilhete no posto de venda da TKTS». In Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-969-7.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT

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