domingo, 27 de março de 2022

A Bibliotecária de Auschwitz. António G. Iturbe. «A espichada sra. Gottlieb, que tanto esticava o pescoço para se fazer de importante, Dita chamava de sra. Girafa. E o tapeceiro cristão da loja de baixo, completamente calvo e magricela…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Na escola, haviam-lhes contado que o grande relógio era um inofensivo artefacto mecânico idealizado pelo mestre Hanus mais de cinco séculos antes. Mas a lenda contada pelas avós a angustiava: o rei teria mandado Hanus construir o relógio astronómico e suas estátuas, que desfilavam a cada hora em ponto; depois, teria dado ordens para que seus xerifes o cegassem, de modo que ele nunca pudesse reproduzir uma maravilha igual para outro monarca. Para vingar-se, o relojoeiro teria enfiado a mão dentro do mecanismo e o inutilizado. Quando as engrenagens a seccionaram, as peças emperraram, e anos se passaram sem que fosse possível repará-las. À noite, às vezes sonhava com essa mão amputada serpenteando por entre as rodas dentadas do mecanismo, para cima e para baixo. O esqueleto fez soar uma sineta, e teve início o festival mecânico: um desfile de autómatos que se destravava para recordar os cidadãos de que os minutos se empurram nervosos uns aos outros, e que as horas se vão uma após a outra, tal como aquelas estátuas, que havia séculos entravam e saíam apressadamente daquela descomunal caixa de música. Todavia, agora se dá conta, atormentada pela angústia, de que aos nove anos uma menina ainda não tem consciência disso, enxergando o tempo como uma cola espessa, num mar imóvel e pegajoso por onde não se avança. Por isso, nessa idade os relógios só apavoram mesmo se tiverem esqueletos próximos ao mostrador. Dita, agarrada a esses livros velhos que podem levá-la à câmara de gás, vê com nostalgia a menina feliz que foi. Quando acompanhava a mãe nas compras no centro, adorava parar diante do relógio astronómico da praça da Cidade Velha, mas não para ver o espetáculo mecânico, porque na verdade aquele esqueleto a inquietava mais do que ela gostaria de admitir, e sim para se divertir espiando os transeuntes absortos, muitos deles estrangeiros de passagem pela capital, que observavam muito concentrados a aparição dos autómatos. Continha com pouca dissimulação a vontade de rir que sentia ao ver as caras de assombro e o sorriso abobado dos presentes. Em seguida inventava apelidos para eles. Recorda com uma pontinha de melancolia que uma de suas diversões preferidas era pôr apelidos em todos, principalmente nos vizinhos e conhecidos de seus pais. A espichada sra. Gottlieb, que tanto esticava o pescoço para se fazer de importante, Dita chamava de sra. Girafa. E o tapeceiro cristão da loja de baixo, completamente calvo e magricela, ela chamava em segredo de sr. Cabeça de Bola. Lembra-se de perseguir por alguns metros o bonde, que tocava sua campainha ao fazer a curva da praça Staromĕstské e se perdia serpenteando pelo bairro de Josefov, e logo se punha a correr em direcção à loja de Ornest, onde sua mãe comprava tecido para fazer seus casacos e saias de Inverno. Não esqueceu o quanto gostava daquela loja, cuja porta exibia um letreiro luminoso com uns carretéis coloridos, que iam acendendo um depois do outro até chegarem ao topo e recomeçarem. Se não tivesse sido uma garotinha que corria com essa felicidade isolante das crianças, talvez, ao passar perto da banca de jornais, teria notado que havia uma longa fila de compradores e que, na pilha de exemplares do Lidové Noviny, a manchete, com quatro linhas e um tamanho de fonte descomunal, não só informava como também gritava na primeira página: O governo consente a entrada do exército alemão em Praga. Dita abre os olhos por um momento e vê os SS fuçando nos fundos do barracão. Até levantam os desenhos pendurados na parede com pregos feitos de pontas de arame para ver se debaixo se esconde algo. Ninguém fala, e o barulho dos guardas revirando tudo é ouvido com nitidez nesse barracão que cheira a humidade e mofo. A medo também. É o cheiro da guerra. Do pouco que recorda de quando era criança, sempre lhe vem à mente que a paz cheirava à densa sopa de galinha que cozinhavam nas noites de sexta-feira. Como não se lembrar do sabor do cordeiro bem-tostado e da pasta de ovo com nozes? Longos dias de escola e tardes brincando de amarelinha e de pique com Margit e outras colegas de classe que se esfumam na sua memória... Até que tudo entrou em decadência». In António G. Iturbe, A Bibliotecária de Auschwitz, 2012, Dita Dorachova, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-657-432-1.

Cortesia de PManuscrito/JDACT

António Iturbe, JDACT, Auschwitz, II Guerra Mundial, Literatura,