sexta-feira, 4 de março de 2022

José Saramago. Claraboia. «Carmen foi à cozinha buscar o porta-moedas. Deu dinheiro ao filho e mandou-o à mercearia comprar rebuçados. Henriquinho quis resistir, mas o atractivo dos rebuçados foi mais forte…»

jdact

«(…) Carmen não respondeu. O seu incompleto conhecimento do português colocava-a sempre em inferioridade neste tiroteio de picuinhas. Preferiu esclarecer com uma voz mansa que ocultava uma intenção reservada: Era una mujer. Trazia o jornal e vinha lá o anúncio. Era para aqui, no había confusión. E, como era una mujer, pensei que tivesses posto o anúncio... Emílio Fonseca fechou a mala, de estalo. Apesar de a frase da mulher não ser bastante explícita, compreendeu-a. Levantou para ela os olhos claros e frios, e respondeu: Se fosse um homem teria de concluir que o anúncio tinha sido posto por ti? Carmen corou, ofendida: Malcriado! Henriquinho, que ouvia a conversa sem pestanejar, fitou o pai para ver como ele reagia. Mas Emílio encolheu lentamente os ombros e murmurou apenas: Tens razão. Desculpa. No quiero que me peças desculpa, redarguiu Carmen, já exaltada. Quando me pedes desculpa estás a fazer pouco de mí. Antes quero que me batas! Nunca te bati. E no te atrevas! Descansa. És mais alta e mais forte que eu. Deixa-me conservar a ilusão de que pertenço ao sexo forte. É a última ilusão que me resta. Acabemos com a discussão! Y si yo quisiera discutir? Fazes mal. Eu tenho sempre a última palavra. Ponho o chapéu na cabeça e saio. E só volto à noite. Ou nem volto mesmo... Carmen foi à cozinha buscar o porta-moedas. Deu dinheiro ao filho e mandou-o à mercearia comprar rebuçados. Henriquinho quis resistir, mas o atractivo dos rebuçados foi mais forte que a sua curiosidade e a sua coragem que lhe estava exigindo que tomasse o partido da mãe. Logo que a porta se fechou, Carmen voltou à casa de jantar. O marido sentara-se na ponta da mesa e acendia um cigarro. A mulher caiu a fundo na discussão: Não voltas, hem? Já cá sabia! Tens onde ficar, no? Já sabia, já desconfiava! O santinho de pau carunchoso, viram?... Y aquí estoy yo, la moira, la esclava, a trabajar todo el dia para quando sua excelência quisier vir a casa!... Emílio sorriu. A mulher ficou enfurecida: No te rias! Rio-me, pois claro que me rio. Porque não havia de rir? Tudo isso são pataratas. Há muitas pensões por essa cidade. Quem me impede de ficar numa delas? Yo! Tu? Ora, deixa-te de parvoíces! Tenho que fazer. Deixemo-nos de parvoíces. Emílio! Carmen barrava-lhe a passagem, vibrante. Um pouco mais alta que ele, a face esquadrada de queixo proeminente, duas rugas fundas das asas do nariz aos cantos da boca, havia ainda nela uns restos de beleza quase esmaecidos, uma recordação de tez luminosa e quente, de olhos de olhar líquido e aveludado, de mocidade. Por momentos, Emílio viu-a como ela fora oito anos atrás. Um lampejo, e a recordação apagou-se. Emílio! Tu enganas-me!... Tolice. Não te engano. Até posso jurar, se quiseres... Mas, se te enganasse, em que podia isso importar-te? Já é tarde para estas lamentações. Estamos casados há oito anos e, somados todos estes dias, que felicidade tivemos? A lua de mel, ou talvez nem isso! Enganámo-nos, Carmen. Brincámos com a vida e estamos a pagar a brincadeira. É mau brincar com a vida, não achas? Que dizes tu, Carmen? A mulher sentara-se, a chorar. Entre lágrimas, exclamou: Soy una disgraciada! Emílio pegou na mala. Com a mão livre afagou a cabeça da mulher com uma ternura esquecida, e murmurou: Somos dois desgraçados. Cada um a seu modo, mas acredita que somos os dois. E talvez seja eu o maior. Tu, ao menos, tens o Henrique... A voz afectuosa endureceu subitamente: Acabou-se. Talvez não venha almoçar, mas virei jantar, com certeza. Até logo. No corredor, voltou-se para trás, e acrescentou, com uma prega irónica na voz: E quanto a essa história do anúncio, deve ser engano. Talvez seja aqui do lado...

Abriu a porta e saiu, com a mala suspensa da mão direita, o ombro deste lado ligeiramente descaído por causa do peso. Num gesto inconsciente ajustou o chapéu, um chapéu cinzento, de aba larga, que lhe tornava mais pequena a face e o corpo e lhe lançava uma sombra sobre os olhos pálidos e distantes». In José Saramago, Claraboia, 1953, Editorial Caminho, 1991, 2011, ISBN 978-972-212-441-6.

Cortesia ECaminho/JDACT

JDACT, José Saramago, A Arte da Escrita, Literatura,