segunda-feira, 7 de março de 2022

Donna Woolfolk Cross. A Papisa Joana. «Talvez não gostasses daquilo que podias aprender ali. Há um ditado do nosso povo que diz: O coração de um homem sábio raramente é feliz. Joana abanou a cabeça, apesar de não compreender muito bem»

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«(…) Joana não percebeu o que tinha feito de mal, mas apercebeu-se de uma dureza estranha na voz da mãe. Sentiu que ela a mandaria regressar à sua cama se não procurasse reparar o dano. Disse, rapidamente: Falai-me outra vez dos Antepassados. Não posso. O teu pai não acha bem que eu te conte essas histórias. Estas palavras eram um misto de afirmação e interrogação. Joana sabia o que fazer. Colocando ambas as mãos sobre o coração, recitou o juramento exactamente como a sua mãe lho tinha ensinado, prometendo segredo eterno, em nome de Thor, o deus do Trovão. Gudrun riu-se e voltou a abraçar Joana. Muito bem, passarinho. Vou contar-te a história, uma vez que tens tanto jeito para a pedir. A voz dela voltou a ser carinhosa, sussurrante e melodiosa quando começou a falar de Woden, Thor e Freya e de todos os outros deuses que tinham povoado a sua infância saxónica, antes de os exércitos de Carlos Magno terem trazido a Palavra de Cristo com um banho de sangue e de fogo. Falou cadenciadamente sobre Asgard, o reino radioso dos deuses, um país com palácios em ouro e prata, que só podiam ser alcançados atravessando Bifrost, a misteriosa ponte sobre o arco-íris. A guardar a ponte estava Heimdall, o Guardião, que nunca dormia e cujo ouvido era tão apurado que ouvia a erva a crescer. Em Valhalla, o palácio mais belo de todos, vivia Woden, o pai dos deuses, sobre cujos ombros poisavam dois corvos: Hugin, o Pensamento, e Munin, a Memória. Sentado no seu trono, enquanto os outros deuses festejavam, Woden meditava sobre as verdades que o Pensamento e a Memória lhe segredavam ao ouvido.

Joana acenava com a cabeça, contente. Esta era a parte da história que ela mais gostava. Falai-me do Poço da Sabedoria, pediu ela. Apesar de já ser muito sábio, explicou a mãe, Woden buscava sempre alcançar mais sabedoria. Um dia, foi ao Poço da Sabedoria, guardado por Mimir, o Sábio, e pediu-lhe autorização para beber dele. Que preço estás disposto a pagar?, perguntou Mimir. Woden respondeu que Mimir podia pedir o que quisesse. A sabedoria só se adquire com dor, respondeu Mimir. Se queres beber desta água, tens de sacrificar um dos teus olhos. Com os olhos a brilhar de excitação, Joana exclamou: E Woden pagou, mamã, não pagou? Pagou! A mãe acenou com a cabeça. Apesar de ter sido uma escolha difícil, Woden consentiu em perder um olho. Bebeu a água. Depois, transmitiu à humanidade a sabedoria que tinha adquirido. Joana levantou os olhos para a mãe, com um ar grave. Teríeis feito isso, mamã, para ser sábia, para saber tudo? Só os deuses é que fazem estas coisas, respondeu ela. Depois, vendo que a filha continuava a olhar para ela insistentemente, Gudrun confessou: Não. Teria tido demasiado medo. Eu também, disse Joana, pensativa. Mas, teria querido ser capaz de o fazer. Teria querido saber tudo quanto o poço pudesse dizer-me. Gudrun sorriu para o rostinho decidido.

Talvez não gostasses daquilo que podias aprender ali. Há um ditado do nosso povo que diz: O coração de um homem sábio raramente é feliz. Joana abanou a cabeça, apesar de não compreender muito bem. Agora, falai-me da Árvore, disse ela, aconchegando-se mais à mãe. Gudrun começou a descrever Irminsul, a maravilhosa árvore do universo. Encontrava-se no bosque saxónico mais sagrado, na nascente do rio Lippe. O seu povo tinha-a adorado até ela ter sido abatida pelos exércitos de Carlos Magno. Era muito bela, disse a mãe. E tão alta que não se conseguia ver o cimo. Era... Interrompeu-se. Tendo-se apercebido subitamente de outra presença, Joana levantou os olhos. O seu pai estava parado à entrada. A mãe sentou-se na cama. Marido, disse ela. Não esperava o vosso regresso senão amanhã. O cónego não respondeu. Pegou numa vela de cera que se encontrava na mesa junto à porta e aproximou-se da lareira para a acender.

Gudrun disse, nervosa: A criança estava com medo da trovoada. Pensei que podia confortá-la contando-lhe uma história inocente. Inocente! A voz do cónego tremia com o esforço para controlar a ira. Chamas a uma blasfémia dessas uma história inocente? Percorreu a distância que o separava da cama em duas passadas, pousou a vela e puxou o cobertor, destapando-as. Joana estava deitada abraçada à mãe, meio escondida sob uma cortina de cabelo dourado. Por momentos, o cónego ficou parado, estupefacto, olhando para o cabelo solto de Gudrun. Depois, a fúria apoderou-se dele. Como te atreveste! Quando eu o proibi expressamente! Agarrando Gudrun, começou a arrastá-la para fora da cama. Bruxa pagã! Joana agarrou-se à mãe. O rosto do cónego ensombrou-se. Desaparece, filha!, bramiu ele. Joana hesitou, dividida entre o temor e o desejo de proteger a sua mãe, de algum modo. Gudrun empurrou-a suavemente. Sim, larga-me. Vai depressa». In Donna Woolfolk Cross, A Papisa Joana, 2000, Editorial Presença, 2010, ISBN 978-972-232-641-4.

Cortesia de EPresença/JDACT

Donna Woolfolk Cross, JDACT, Literatura, Vaticano,