terça-feira, 22 de março de 2022

A Filha do Papa. Luís Miguel Rocha. «A família ainda não sabe. E temos esperança de conseguir resolver este assunto sem que chegue ao conhecimento deles, ouviu-se uma voz áspera dizer da porta»

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«(…) Algumas foram reclamadas mais tarde, outras não. De qualquer forma, a Igreja não devolveu as que acolheu durante mais tempo. Não? Porquê? Os mais novos foram entregues às famílias, obviamente os que permaneceram à guarda da Igreja durante muito tempo acabaram por ser educados na religião católica e não sabiam nada de Israel, nem hebreu, nem nada. Esses não foram devolvidos. Foi o caso dos irmãos Finaly? Mais ou menos. Verdade seja dita que Roma mandou devolvê-los aos familiares. E o que aconteceu? As crianças foram enviadas para um convento em Grenoble mas eram muito novas para lá permanecerem. Acabaram por ser entregues a uma creche. A tutora dos miúdos, de quem não me lembro do nome, se é que alguma vez o soube, afeiçoou-se a eles e antes de cumprir a ordem baptizou-os, em 1948. Giorgio escutava com muita atenção, completamente envolvido pelas palavras de Jacopo. Percebera o problema. Pela lei canónica, uma criança baptizada não podia ser entregue a tutores que professassem outra religião. Isto acabou por envolver as autoridades civis. O tribunal de Grenoble deu razão aos familiares, como era justo, e ordenou a entrega imediata aos familiares, depois de infindáveis recursos. Isto já em 1952. O núncio de Paris, na altura o monsenhor Roncalli…

O Bom Papa João, interrompeu Giorgio em jeito de correcção. Exactamente. Na altura não era Papa nem cardeal. O futuro João XXIII, enfatizou a contra gosto, ordenou a entrega dos dois irmãos mas alguém teve a infeliz ideia de os recambiar para Marselha e depois para o País Basco. Foi ainda mais difícil encontrá-los e devolvê-los à família, em Israel. Foi um escândalo internacional, apareceu em todos os jornais… Prenderam a madre superiora, as freiras, a tutora; foi um descalabro diplomático monumental. Em Julho de 1953, finalmente encontraram-nos e levaram-nos para Israel para sempre. Percebo. Obrigado por me elucidar um pouco mais sobre o venerável Pio XII.

Permaneceram em silêncio durante algum tempo. Jacopo estava à espera que ele o dispensasse para poder voltar a casa, tomar um banho e ir aturar os alunos na Sapienza. Giorgio levantou-se e contornou a secretária. Parou na frente de Jacopo, fitando-o de cima para baixo. Guillermo continuava na mesma posição, impávido e sereno. Já ouviu falar do padre Niklas? Jacopo fez de conta que não percebeu. Mais miúdos? Que raio de conversa é esta? Quem? Um jovem padre alemão, acrescentou Guillermo. Esse não é o…, não sabia como continuar. Não é o filho do… Exactamente, interrompeu Giorgio. É o filho do Embaixador da Alemanha em Itália. O Doutor Klaus Grübbe, afirmou Guillermo. Exacto, disse Jacopo, aliviado. É isso. Guillermo e o monsenhor entreolharam-se de modo suspeito. Alguém me vai dizer o que tem o rapaz?, perguntou Jacopo impaciente. Giorgio entregou-lhe um papel. Era um post-it azul.

O que é isto?, quis saber o historiador. Não estava a perceber o sentido da conversa. Um imprevisto. Um imprevisto? Que raio queria o prelado dizer com aquilo? É um assunto muito sensível que pede bastante discrição. Jacopo tentou devolver o bilhete a Giorgio. Pode ficar com ele. Não tenho intenção nenhuma de me meter em assuntos sensíveis e discrição não é qualidade que me tenha calhado. Giorgio não aceitou o pequeno papel. Pigarreou para aclarar a voz como se as palavras estivessem enferrujadas. É um pedido de resgate. O padre Niklas, filho do embaixador da Alemanha, foi raptado há algumas horas em Sant’Andrea. Jacopo engoliu em seco ao ler o bilhete. O que é que os irmãos Finaly…, não quis continuar. Já informaram a família? Giorgio fez um meneio negativo com a cabeça. Não. A família ainda não sabe. E temos esperança de conseguir resolver este assunto sem que chegue ao conhecimento deles, ouviu-se uma voz áspera dizer da porta. Jacopo desviou a cabeça nessa direcção e viu o intendente da Gendarmaria Vaticana, Girolamo Comte. Vestia um fato preto por baixo de um sobretudo cinzento-escuro. Entre, por favor, Comte, pediu o secretário. Estava mesmo a colocar o doutor ao corrente da situação. Os relatores já foram alertados?, quis saber o historiador. O intendente enviou um destacamento de segurança, respondeu Giorgio, acenando com a cabeça na direcção de Girolamo. Como correram as coisas com a Polizia di Stato?» In Luís Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.

Cortesia de PEditora/JDACT

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