quinta-feira, 3 de março de 2022

José Saramago. Claraboia. «Mas o jornal traz um anúncio... Um anúncio? Deixe ver, se faz favor. A voz tremia-lhe de irritação mal reprimida. Respirou fundo para acalmar-se. A mulher indicou-lhe o anúncio com um dedo espetado que tinha uma cicatriz de panarício»

 

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«(…) Na cozinha, marido e mulher começaram o diálogo-monólogo de quem está casado há mais de vinte anos. Banalidades, palavras ditas só por dizer, um simples prelúdio ao sono tranquilo da idade madura. Pouco a pouco, os ruídos foram diminuindo, até que ficou aquele silêncio de expectativa que antecede a chegada do sono. Depois o silêncio tornou-se mais denso. Apenas Maria Cláudia continuava acordada. Tinha sempre dificuldade em adormecer. Gostara da fita. No cinema, um rapaz olhara-a muito, durante os intervalos. À saída viera mesmo junto dela, a tal ponto que lhe sentira o hálito no pescoço. Só não percebia porque o rapaz não a seguira. Mais valia não ter olhado tanto para ela. Esqueceu-se do cinema para se lembrar da visita que fizera a casa de Lídia. Que bonita era a Lídia! Muito mais bonita que eu... Teve pena de não ser como a Lídia. Subitamente, lembrou-se de que vira o automóvel à porta. Ficou sobre brasas, já incapaz de adormecer. Ignorava que horas eram, mas calculou que não devia estar muito longe das duas. Sabia, como toda a gente no prédio, que o visitante nocturno de Lídia saía por volta das duas da madrugada. Por efeito da fita, do rapaz ou da visita matinal, sentia-se cheia de curiosidade, embora achasse nessa curiosidade algo de censurável e impróprio. Esperou. Minutos depois, ouviu no andar de baixo o ruído de uma lingueta que corre e duma porta que se abre. Um som indistinto de vozes e uns passos descendo a escada. Com cuidado, para não acordar os pais, a rapariga deixou-se escorregar da cama. Caminhando na ponta dos pés, chegou à janela e entreabriu a cortina. O automóvel ficava sempre encostado ao passeio fronteiro. Viu o vulto pesado do homem atravessar a rua e entrar no automóvel. O carro começou a rolar e, rapidamente, desapareceu do campo de visão de Maria Cláudia.

Dona Carmen tinha um modo muito seu de saborear as manhãs. Não era pessoa que se deixasse ficar na cama até à hora do almoço e nem isso lhe era possível porque tinha de tratar da refeição do marido e de arranjar o Henriquinho, mas não lhe falassem em lavar-se e pentear-se antes do meio-dia. Adorava andar pela casa fora, durante a manhã, por arranjar, os cabelos soltos, toda ela descuidada e preguiçosa. O marido detestava semelhantes hábitos, que implicavam com as suas normas de regularidade. Vezes sem conto tentara convencer a mulher a emendar-se, mas o tempo encarregara-se de fazer-lhe ver que era tempo perdido. Apesar de a sua profissão de caixeiro de praça não lhe impor um horário rígido, escapava-se de manhã cedo só para não ficar indisposto todo o dia. Carmen, por seu lado, desesperava-se quando o marido se demorava em casa depois do café. Não que se sentisse obrigada por tal a faltar aos seus queridos hábitos, mas a presença do marido diminuía-lhe o prazer da manhã. O resultado é que, para ambos, dia em que isso acontecesse era dia estragado. Nessa manhã, Emílio Fonseca, no preparar o mostruário para sair, verificou que alguém tinha baralhado preços e amostras. Os colares estavam fora dos lugares, misturados com as pulseiras e os alfinetes de peito, e tudo isto a trouxe-mouxe com os brincos e os óculos escuros. O responsável pelo desalinho só podia ser o filho. Ainda pensou em interrogá-lo, mas achou que não valia a pena. Se o filho negasse, desconfiaria de que estava mentindo, e isso era mau; se ele confessasse, teria de bater-lhe ou ralhar-lhe, o que seria pior. Sem contar que a mulher interviria logo, como uma fúria, e a cena acabaria em zaragata. Ora, farto de zaragatas estava ele. Colocou a mala sobre a mesa da casa de jantar e, sem uma palavra, procurou pôr ordem naquele desconcerto. Emílio Fonseca era um homem pequeno e seco. Não era magro: era seco. Pouco mais de trinta anos. Louro, de um louro pálido e distante, o cabelo ralo e a testa alta. Sempre se envaidecera da altura da sua testa. Agora que ela estava maior por causa da calvície incipiente, preferiria tê-la mais baixa. Aprendera, no entanto, a conformar-se com o inevitável, e o inevitável não era apenas a falta de cabelo mas também a necessidade de arrumar a mala. Aprendera a ficar tranquilo em oito anos de casamento falhado. A boca era firme, com uns vincos de amargura. Quando sorria entortava-a ligeiramente, o que lhe dava à fisionomia um ar sarcástico que as palavras não desmentiam. Henriquinho, com o ar embaraçado do criminoso que volta ao local do crime, veio mirar o que o pai fazia. Tinha uma cara de anjo, louro como o pai, mas de um louro mais quente. Emílio nem o olhou. Pai e filho não se amavam, nem pouco, nem muito: apenas se viam todos os dias. No corredor ouvia-se o chinelar de Carmen, um chinelar agressivo, mais eloquente que todos os discursos. A arrumação estava quase completa. Carmen espreitou à porta da casa de jantar para calcular o tempo que o marido demoraria ainda. Já lhe parecia demasiada a demora. Neste momento, a campainha retiniu. Carmen franziu o sobrecenho. Não esperava ninguém àquela hora. O padeiro e o leiteiro já tinham vindo, e para o carteiro ainda era cedo. A campainha tocou outra vez. Com um já lá vai! impaciente dirigiu-se para a porta, levando o filho nos calcanhares. Apareceu-lhe uma mulherzinha de xaile, com um jornal na mão. Mirou-a, desconfiada, e perguntou: Qué desea? (Tinha momentos em que ainda que a matassem não falaria português) A mulher sorriu com humildade: Bom dia, minha senhora. É aqui que está um quarto para alugar, não é? Podia vê-lo?... Carmen ficou assombrada: Quarto para alugar? No hay aquí quarto para alugar. Mas o jornal traz um anúncio... Um anúncio? Deixe ver, se faz favor. A voz tremia-lhe de irritação mal reprimida. Respirou fundo para acalmar-se. A mulher indicou-lhe o anúncio com um dedo espetado que tinha uma cicatriz de panarício. Lá estava, na coluna dos quartos para alugar. Não havia dúvida. Batia tudo certo: o nome da rua, o número do prédio e a indicação claríssima de rés-do-chão esquerdo. Devolveu o jornal e declarou secamente: Aqui não há quartos para alugar! Mas, o jornal... Já lhe disse. E, además, o anúncio é para caballero!... Há tanta falta de quartos, que eu... Com licença! Fechou a porta na cara da mulher e foi ter com o marido. Sem passar da porta, perguntou: Puseste alguno anúncio no jornal? Emílio Fonseca olhou para ela, com um colar de pedras coloridas em cada mão, e, erguendo uma sobrancelha, respondeu em tom calmo e irónico: Anúncio? Só se fosse para arranjar clientes... Anúncio de um quarto para alugar... De um quarto? Não, minha filha. Casei contigo em regime de comunhão de bens e autoridade, e não me atreveria a dispor de um quarto sem te consultar. No seas gracioso. Não estou a dizer graças. Quem se atreveria a ser engraçado contigo?» In José Saramago, Claraboia, 1953, Editorial Caminho, 1991, 2011, ISBN 978-972-212-441-6.

Cortesia ECaminho/JDACT

JDACT, José Saramago, A Arte da Escrita, Literatura,