terça-feira, 8 de março de 2022

Explicação dos Pássaros. António Lobo Antunes. «Já a comeste, velho? O quê?, pergunta o pai. Nada, estava a dizer que sigo agora mesmo para Tomar. Um congresso sobre o século XIX, sabe como é»

jdact

«(…) Sentado nos teus ombros quase tocava os ramos dos castanheiros com a cabeça, aureolado de luz à maneira dos santos dos milagres, enquanto uma eternidade de fotografia me imobilizava o sorriso que encontro, tantos anos depois, no espelho do quarto, a troçar-me numa careta azeda: como eu cresci, caraças, como o cabelo, por meu turno, me começa a faltar também: tento calcular de memória a idade do pai nessa época (serias mais novo do que eu hoje?) e a voz baralha-lhe as contas através dos furinhos de baquelite do telefone: Ouvi dizer que ias sair uns dias. Percebia-se o ruído das máquinas de escrever do escritório, gente debruçada para as mesas, o desodorizante da secretária transformando o espaço livre, salas, paredes, corredores, num enorme sovaco depilado e morno: Já a comeste, velho? O quê?, pergunta o pai. Nada, estava a dizer que sigo agora mesmo para Tomar. Um congresso sobre o século XIX, sabe como é. A minha irmã contou-me que tinhas outra casa com outros filhos, outro televisor, outros óleos, outra mesa de gamão, outro pote de Fixador Azevichex O Produto Favorito Do Homem De Sucesso, outro jornal. Escrever é uma coisa idiota, entendes, quando não se ganha o Nobel: tira o cursozinho. Houve uma pausa e a voz do senhor careca respondeu a hesitar: Realmente nestes telefones não se percebe nada. Não tem importância, sigo agora mesmo para Tomar. Hum, rosnou o pai, desconfiado. E ele adivinhava-lhe os olhos escuros, atrás dos óculos, a calcularem sem acreditar: Tinha de mentir-te, tinha sempre de mentir-te, não suportavas que eu fosse diferente de ti, que arranhasse versos, que preferisse ser professor num péssimo liceu dos subúrbios, a uma miséria por mês, a trabalhar na companhia, composto, de gravata, como os outros da tribo. Às vezes consolava-me pensar que o homem novo e alegre, que passeava comigo na quinta, me teria entendido: íamos os dois até ao muro coberto de cacos de garrafa, e permanecíamos fascinados a olhar o saguim do vizinho, preso à casota por uma corrente de cão, a figueira suspensa sobre o poço, a tranquilidade lilás dos fins de tarde, muito para lá das estátuas de loiça do jardim e das cadeiras de lona desbotadas da família, ao acaso na relva. Os pavões da mata gritavam angustiadamente ao longe:

Têm medo da noite, explicava o pai, têm medo de poder sonhar. Pensa O tipo que me levava às cavalitas pode bem acontecer que percebesse, percebia com certeza: quem conhece os pavões compreende um mau poeta à légua. Pensa Chiça, o que eu gostava de dizer e não consigo. Pensa A ausência de coragem é uma grande por… Quando é que voltas?, questiona o pai como se remexesse um pauzinho cruel numa ferida infectada. No domingo, acho eu, declara ele. E emenda, irritado consigo mesmo (Como vês tenho medo de ti, não sirvo para dirigir nenhuma empresa), numa afirmação categórica: No domingo sem falta. Domingo era a chatice da desocupação, o quarto dos brinquedos revolvido, o corpo a arrastar-se, maçado, pelos cantos. A mãe jogava as cartas com as amigas, na sala, numa cintilação de pulseiras e de brincos, as bocas pintadas conversavam, como periquitos, de filhos, de criadas, dos empregos dos maridos. Mãe. E agora estava ali a morrer no Outono de Campolide, num quarto de clínica, diante do tabuleiro de espinhas do almoço, que a prima colocou ao pé da jarra das flores antes de se afundar de novo, distraída, no tricot.

Pelo sim pelo não deixa o número de telefone aí, ordena o pai. Já sabes como estas coisas são: pode ser que de um momento para o outro haja necessidade de falar contigo». In António Lobo Antunes, Explicação dos Pássaros, 1981, Publicações Dom Quixote, 1983, ISBN 978-972-205-020-3.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT

JDACT, António Lobo Antunes, Literatura, A Arte,