quarta-feira, 23 de março de 2022

A Conquistadora. Teresa Medeiros. «Para que fez aquilo?, perguntou Conn enquanto se sentava no trono. Não gosto de O’Caflin. O olhar dele não me inspira confiança. Já que é tão bom para avaliar pessoas, diga-me, qual é a sua opinião sobre mandarmos Kevin lutar?»

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«(…) Um soldado bem-apanhado de olhos castanhos juntou a sua voz ao coro: Somos ou não o povo que empurrou Eoghan Mogh, o inimigo de Erin, para sul, para uma terra tão negra e árida como a sua alma? Os malabaristas começaram a atirar as suas maçãs douradas ao ar, uma a uma. E os romanos estão ou não receosos de pôr os pés nas nossas praias, com medo que os enviemos de volta, em lágrimas, às suas deusas da guerra?, gritou uma camponesa esquelética. Dois dos poetas começaram a contar em uníssono a história de Macha Mong Ruad, a amazona de cabelos cor de fogo, filha de Red Hugh. A sala alterou-se, os olhos brilharam de esperança. Por todo o salão ergueram-se taças em brindes às proezas de Kevin, à generosidade de Conn e aos sonhos de uma nova nação baseada na honra e no cavalheirismo. Conn esperou que o trapézio parasse de balançar, arrancou dele o pequeno homem e com cuidado colocou-o de pé no chão. Caminharam juntos até ao trono, mas Nimbus parou uma vez para puxar o cabelo de um soldado louro mal-encarado que o seguia com olhos semicerrados enquanto esfregava a cabeça dolorida.

Para que fez aquilo?, perguntou Conn enquanto se sentava no trono. Não gosto de O’Caflin. O olhar dele não me inspira confiança. Já que é tão bom para avaliar pessoas, diga-me, qual é a sua opinião sobre mandarmos Kevin lutar?, perguntou Conn, afagando a barba. Nimbus encarrapitou-se no braço do trono e afagou o queixo numa imitação perfeita do rei. Desviando-se da mão distraída de Conn, respondeu: A criatura é apenas um homem e não um monstro ou um gigante. Um homem capaz de matar sozinho, quatro membros do Fianna? Não me faça rir, Nimbus. Além disso, continuou Nimbus como se ninguém o tivesse interrompido, creio que o homem é aliado de Eoghan Mogh, enviado para antagonizá-lo e nos distrair a todos. Mer-Nod, que tinha ouvido tudo quando avançou para se encostar à parede, disse: Eoghan Mogh fugiu para o Sul como uma criança, para junto dos que o criaram. Não vai dar-nos trabalho durante algum tempo. Conn soltou uma gargalhada de desprezo. Há quem diga que ele construiu um reino no Sul e planea atacar Tara. No estado em que o deixei, não deve conseguir arranjar ouro nem para erguer uma tenda. Nimbus deslizou do trono e, com um ar travesso, começou a arrancar penas do manto de Mer-Nod. Conn fechou os olhos e recostou-se no trono.

Conta-me uma história, Mer-Nod. Estou cansado e preciso ouvir falar em coisas gloriosas. Quando abriu a boca para responder, Mer-Nod sentiu alguém puxar repetidamente pela parte posterior da sua túnica. Virou-se e lançou a Nimbus um olhar furioso quando o viu reaparecer com uma mão-cheia de penas vermelhas e douradas. Que os deuses o amaldiçoem, raquítico. Larga a minha capa! Conn sorriu e Mer-Nod, que se orgulhava da sua aparência digna, começou a correr em volta do trono, atrás de Nimbus que ria à gargalhada. Uma corneta tocou no exterior do baluarte, interrompendo o ímpeto assassino de Mer-Nod, bem como qualquer outra actividade no salão. As mãos de Conn fecharam-se, implacáveis. Nimbus deu meia volta, retomou a sua posição contra a parede e, com esforço, deu ao seu rosto uma expressão indiferente. Várias maçãs douradas caíram ao chão quando um malabarista se virou para a porta. Os poetas calaram-se no meio dos seus versos, com as suas histórias abortadas no meio da batalha. As crianças que por ali corriam foram imobilizadas pelas mãos das suas mães. Conn levantou-se enquanto as duas partes da porta maciça se abriam de rompante. Um véu protector baixou para lhe esconder os olhos. Como um prado soalheiro escurecido por uma grande nuvem de trovoada, o rosto dele fechou-se numa máscara ilegível. À porta estavam um homem e uma mulher cobertos de suor e imundície. Eram corredores, atletas lendários capazes de dar a volta à ilha de Erin num só dia. A mulher saiu e quando reapareceu, após vários minutos depois, a causa da sua demora tornou-se dolorosamente evidente. Voltou conduzindo um cavalo para o meio da sala. No seu dorso malhado, Kevin O’Artagain fizera a sua derradeira cavalgada. Um soluço abafado irrompeu da multidão e uma jovem caiu ao chão num desmaio fatal. O corpo de Kevin jazia perpendicular ao dorso do cavalo com uma espessa camada de sangue colada ao seu cabelo ruivo. As manchas cor de ferrugem contrastavam vivamente com a palidez da morte. A cabeça retorcia-se para um lado; os olhos fitavam o vazio enquanto o cavalo avançava para o centro do salão. Os que estavam mais próximos estremeceram e recuaram um passo, imaginando o que teriam, aqueles olhos aterrorizados, visto pela última vez. A borda esfarrapada de uma ferida abria-lhe as costas no ponto em que a espada tinha deixado o seu coração. Vários membros do Fianna pensaram ter ouvido o eco do riso de Kevin nos corredores das suas memórias. Com as mãos trémulas, um soldado que observava o sinistro desfile esvaziou a sua cerveja de uma só vez». In Teresa Medeiros, A Conquistadora, 1998, Planeta Manuscrito, Grupo Planeta, 2010, 2014, ISBN 978-989-657-517-5.

Cortesia de PManuscrito/Gplaneta/JDACT

JDACT, Teresa Medeiros, Literatura, Irlanda,