segunda-feira, 31 de maio de 2021

No 31, a Arte de Maria Teresa Horta. As Luzes de Leonor. «Escutam-me estas penhas animadas, que as expressões do brando sentimento, como sonhos de enferma reputadas, insultam, por dobrar o meu tormento»

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1754-1758

«(…) Peço-te calma, meu amor! Peço-te calma!, ouvi-o gritar, afastado de mim à força. E dobrada sobre o corrimão fiquei a vê-lo descer a escada até sair a porta lá em baixo, voltando-se antes a despedir-se, com um demorado olhar triste mas infinitamente frio, onde se recolhia o brilho acerado do gume de uma ardente faca. Enquanto isto, escondida atrás de mim, Leonor observava o Pai a ser levado aos empurrões cobardes; foi ela que me impediu de cair, arrastando-me primeiro para a casa de fora e em seguida amparando-me até ao quarto onde me deitou na cama gelada. Só bastante mais tarde me dei conta de ela ter agido não como uma menina de oito anos, mas como uma mulher. Lembro-me do seu semblante extremamente pálido e de como tremia ao afastar-me os cabelos da testa encharcada pelo suor frio, ao secar-me na face as lágrimas constantes, ao compor-me no peito o decote esgarçado da camisa rasgada.

Na verdade, pouco guardo dos dias e dos meses que se seguiram, estendida na minha cama gelada de mulher solitária a quem abruptamente lhe fora arrancado sem qualquer motivo o homem amado. De seguida, como se não chegasse, num rasto de negrume vieram todas as outras terríveis desgraças a que julguei esquivar-me pelo lado do meu nada, embora continuando viva. E ao despertar das minhas perdições e torpores, estava a cumprir num convento não sei que pena, dentro de uma clausura que não era minha; num tempo do qual pretendi a todo o custo anular os sinais, os anseios, as pegadas, as vertigens.

Escutam-me estas penhas (de Epístola a Tirce)

Escutam-me estas penhas animadas,

Que as expressões do brando sentimento,

Como sonhos de enferma reputadas,

Insultam, por dobrar o meu tormento.


Aqui a seva mão do Fanatismo

Serve as leis execrandas do meu fado;

Aqui geme o legítimo heroísmo,

De uma falsa razão atormentado.

Raízes

Desembarcados que são da armada da Índia no porto de Lisboa, beijada a família, afagados os netos que ainda não conheciam e cumprimentados os fidalgos que os esperam, distrai-se Leonor Távora, demorando o passo, a olhar o céu de Portugal, azul-cobalto naquela manhã de estio, antes de aceitar a mão desenluvada de Francisco Assis para subir os dois degraus da carruagem enviada pela Coroa a fim de os levar ao Paço. Haviam partido a caminho da Índia com as despedidas solenes e a confiança de el-rei dom João V, entretanto morto, e no regresso deparam-se com a ausência da Corte, sinal da hostilidade gélida de dom José I entretanto coroado Rei de Portugal, que encontram na companhia do seu secretário de Estado Sebastião José Carvalho Melo. Homem baixo, ainda novo, lábios de lâmina afiada, olhos pequenos, argutos e escuros que neles se fixam, como se pretendessem ler-lhes a alma; particularmente atento à marquesa de Távora, que estremece ao sentir a sua atenção fascinada, arrepio a subir-lhe no corpo delgado vestido de seda natural cor de amora selvagem, plumas tom da aura dos anjos a temperarem-lhe o toucado com langores imprudentes». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

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domingo, 30 de maio de 2021

As Luzes de Leonor. Maria Teresa Horta. «… para onde vão levar o senhor marquês de Alorna, meu marido? Ao que o desembargador respondeu com uma mentira e de olhos no chão: para o Pátio dos Bichos na Quinta do Meio…»

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1754-1758

«(…) Pavores que pressinto na correnteza de terrores sentidos tão continuamente que me parece delírio, chegando a levantar-me vezes sem conta da cadeira em que estou assentada, na minha casa, para ir ao oratório dar este recado ao Senhor Crucificado, que nele se encontra: Senhor! Salvação do conde de Atouguia, seja como for! E isto me acontece vendo este tão moço e com boa saúde; ao menos não tendo nele cousa em que temesse perigo. A tentar não me lembrar continuamente dos profetas da desgraça que neste ano de 1758 pululam em Lisboa, escanzelados, esfarrapados, sujos, olhar iluminado pela alucinação e o desvario, impelidos pelo gosto da crueldade em falas de perdição e loucura.

Na sua sombra escondem-se as serpentes e agem as nigromantes, as benzedeiras e as bruxas, arrastando estas as bainhas desfeitas das saias pela imundície das ruas. Nos sacos e nos alforges carregam as pedras medradas no veneno, escondem as cartas de adivinhação, as bolas de cristal polidas pelo afago dos dedos no adestrar de espelho e na abordagem dos mundos exauridos do além, no contacto lívido com os espíritos. De onde partem, diz-se, os mais desalmados vaticínios, que logo circulam por ruas e becos e colinas, até mesmo por entre as ruínas deixadas pelo terramoto, onde prosperam o negrume brilhante da beladona e os agrestes frios do Inverno, ventos de gume em riste entristecendo e assustando a cidade atascada de lama e mau olhado, inundada por medos e pavores desde o tremor de terra. Superstições colhidas na ignorância, comenta com austeridade minha mãe dona Leonor Távora, quando lhe relato com pinceladas de obscuridade as imagens cruéis, violentas e desgraçadas. De igual modo se referiu ontem a elas a condessa de Óbidos, gracejando acerca da última predicção escutada, fingindo eu esquivar-me de levar a sério a sua narração, mas a perder-me já na cerração que logo me obscureceu a alma.

Vaticínios anunciados por esquálidos profetas da desgraça, de cima de improvisados púlpitos, pedregulhos mais altos encontrados nos monturos que juncam as ruas cruzadas em torno do pouco que agora resta do Terreiro do Paço: sangue de mártires, de fidalgos e senhoras vão correr em breve para os lados de Belém, num Janeiro de eclipse, de ventanias e tempestades, a encharcarem as madeiras verdes do cadafalso e as terras, as areias junto do rio, mais tarde manchadas pelas lágrimas e o vermelho dos sangues.

Vi sair meu marido escoltado pela tropa quando o vieram buscar ao fim da madrugada, estávamos ainda recolhidos. Eu às voltas na cama sem descansar, peito oprimido por uma aflição para a qual não encontrava motivo, cuidando em não incomodar João que a meu lado dormia mergulhado no sono pesado do sossego, embalado pela tranquilidade que até àquele momento fazia todo o sentido. Mas o grande ruído vindo do pátio, junto ao portão da entrada e debaixo da nossa janela, acordou-o, sobressaltado, e sem nada entendermos tomados por pressentimentos sombrios. E logo ele me empurrou com brusquidão dos seus braços, ordenando num tom de voz ríspido, que até àquele instante não lhe conhecia: vai ver das crianças e não as largues.

Assustada, passei à casa de fora, para de seguida ir correndo a tropeçar na camisa comprida, touca com entremeios de renda e folho estreito a escorregar ao longo dos meus cabelos, que já tombavam soltos e desordenados pelas costas. Afastando-me apesar de preferir ficar, temendo sem saber porquê que viessem buscar João, e à conta desse temor lhe obedeci, enquanto escutava o tropel das botas dos soldados subindo a escadaria de mármore à sua procura, sala após sala, até o acharem a vestir-se, a fim de poder enfrentar de modo decente o que pudesse vir a acontecer-nos.

Sem saber o que fazer, tirava Pedro da pequena cama, bracejando ensonado, quando senti Leonor a puxar-me pela manga convocando-me para a sua lividez de cal, os olhos azulados cheios de perguntas, enquanto Maria, descalça e tremendo de medo, se agarrava à minha cintura. Entreguei Pedro à ama assim como as meninas, e estava de volta ao corredor com intenção de regressar ao quarto de onde nunca devia ter saído quando o desembargador Eusébio Tavares, que nesse dia 13 de Setembro de 1758 iria deter igualmente meus irmãos e o marquês de Atouguia meu cunhado, aparecendo ao meu lado a embargar-me o passo, sem palavras mostrou-me a ordem real que o autorizava a prender meu marido, assinada pela rainha dona Mariana Vitória, que governava enquanto el-rei José I se curava das feridas resultantes do atentado até à data mantido secreto e cometido na noite de três de Setembro contra a sua pessoa. Segundo o desembargador, a rainha ordenava-me, tal como aconteceria com a condessa de Atouguia, minha irmã Mariana Bernarda, a ficar detida na própria casa.

Não tendo coragem na altura para objectar fosse o que fosse, limitei-me a indagar num fio de voz: para onde vão levar o senhor marquês de Alorna, meu marido? Ao que o desembargador respondeu com uma mentira e de olhos no chão: para o Pátio dos Bichos na Quinta do Meio, senhora marquesa, onde já se encontram outros membros da vossa família.

Recuei assustada, mas ao ver João rodeado e manietado pela guarda armada lancei-me num soluço ferido, e afastando os surpreendidos soldados agarrei-me a ele, anelando-me no ninho do seu peito, braços em laço apertado em redor do seu pescoço, sem nenhuma noção do pudor que me devia, outra coisa não sentindo senão aquele desespero inteiro que aos borbotões me transbordava do rasgão aberto no cerne da vida». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.

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quinta-feira, 27 de maio de 2021

As Luzes de Leonor. Maria Teresa Horta. «Travo que guardo na boca desde o terramoto, numa premonição de desgraça vil que de mim não se afasta em momento algum, a tornar pesados e sem remédio os lentos dias arrastados das matinas às completas…»

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1754-1758

«(…) Quando se aproxima devagar do fim do álbum, dá-se conta de que a madrugada fizera esmorecer a luz cada vez mais fraca da vela, não sabendo há quanto tempo a distracção a impede de ouvir os ruídos da casa que desperta: os sons abafados vindos do sótão onde fica a ala dos criados, a água que corre do jarro para uma bacia de louça, um objecto caindo no desamparo do chão, o chiar áspero de gonzos a amordaçar o cochicho das vozes à mistura com os frouxos de riso mal contidos pela palma das mãos gretadas, logo seguido de um demorado arrastar de pés descalços, pesados de sono. Escuta depois o estalar dos degraus que levam à cozinha, de onde não tardará a subir o cheiro acre do café amargo, do leite fervido e das natas, das papas de aveia e da aletria, do pão escuro aquecido em cima das brasas tiradas do borralho das cinzas. Apercebendo-se de como começa a ficar tarde, Leonor fecha a contragosto A Revolução Dos Orbes Celestes de Nicolau Copérnico, escorrega da cadeira, agarra o xaile e embrulha-se nele. Apaga em seguida o que resta do coto da vela, agarra no castiçal com a mão miúda e, silenciosa, corre de volta ao quarto onde Maria ainda dorme, enrolada nas mantas, cabeça debaixo da almofada de penas.

Desde sempre as mulheres da família dos Távora foram dadas a pressentimentos, a anjos e a cintilações, a negrumes e visões, a premonições, a adivinhamentos e sonhos; dom maligno que, ao longo dos anos tendo trato com as profecias, vêem sem rebuço entretecer a realidade em que vivem com o lado sombrio do seu mundo interior: o quotidiano que habitam, o futuro que intuem, adivinham, antecipando caladas mais as desgraças e os desgostos do que os aprazimentos e as alegrias. A verdade, aceite por quem as rodeia e de certo modo as teme, é terem conhecimento das raízes de tudo o que nasce e brota das tempestades a montante do nada, daquilo que acontece antes de ter acontecido, evitando todavia passar essa premonição aos outros, neles não desejando acrescentar o receio e a angústia que eternamente cai sobre quem prevê a queda, a morte, a vertigem. Franja de espuma nocturna, obstinada na tentativa de invadir a mente e o coração dos que pressagiam os estigmas da alma, os espinhos do cardo, as silvas da torpeza, o ocaso que a febre levanta nos abismos do peito, as garras do mal gerado por Satanás na sua ronda em torno das mortes e dos partos, no uso de manhas e artes, feitiços e artifícios; insidiosa tentativa de nos convocar, de nos rodear, de nos fascinar, até nos afastar por completo da brancura e da maior pureza, dos caminhos do bem. Eu, Mariana Bernarda Lorena, condessa de Atouguia e filha dos marqueses de Távora, jamais soube separar a visitação dos arcanjos da aparição dos negrumes, nem destrinçar a plenitude onde reside o adormentado gosto do mel, do êxtase onde explode o acre sabor a fel e a salitre, salobre e amaro. Travo que guardo na boca desde o terramoto, numa premonição de desgraça vil que de mim não se afasta em momento algum, a tornar pesados e sem remédio os lentos dias arrastados das matinas às completas, de sol a sol rastejando a demorar-se pelos hortos, pelos vinhedos, pelos cemitérios, de rojo pelas sombrias matas onde vigiam as víboras. Pressentimentos de enredos maléficos que ultimamente não cessam um único segundo, apesar de eu tentar com empenhamento aliviar-me com missas e orações, rezas e terços, leitura de livros místicos, cabeceando de sono madrugada adentro, na vã tentativa de defender os meus e a mim própria naquilo que posso, e nesse sentido usando promessas e velas acesas às santas mais poderosas, exercícios de S. Ignácio, mandrágoras e incenso, água benta e Rosa Divina, esmolas e castigos do corpo, cilícios atados nas carnes macias da cintura. Pobre tentativa de silenciar as vozes que de noite me falam baixo ao ouvido. Mariana Bernarda!, chamam-me. E eu sobressalto-me, enquanto elas continuam: aproximam-se tempos sem misericórdia, desprovidos de compaixão e temperança: patíbulo e morte, grilhões de degredo, ferros de tortura e prisões fétidas, passarão por ti e encontram-se contidos nos destinos dos teus mais chegados! Sem forças vou cosendo o choro escondido de quem me rodeia, e diante da senhora minha mãe não consigo deixar de mil vezes indagar agoniada: encontra-se Vossa Excelência de boa saúde? E ela, desconfiando da mesma interrogação repetida infinito, olha-me no precipício dos olhos e, dando conta da minha aflição, contrapõe a sua igual resposta em forma de pergunta: qual é o desgosto oculto ou o segredo recolhido que a minha filha tanto guarda? E eu tento rir, a contragosto, evitando a resposta sustentada pela mais deslavada mentira, e para não a atormentar, em disfarce de invenção medíocre, digo-lhe, sonsa: ora, Vossa Excelência tem coisas…, apressando-me a discorrer de seguida sobre mesquinharias da Corte ou da justa apreensão dos jesuítas pelo manifesto ódio do ministro de Estado de El-Rei pela Companhia de Jesus, à conta do qual Sebastião José afastou o padre Malagrida, confessor da minha família. Agravando em muito o desassossego da alma, coração apertado pelos malfadados prenúncios que me assediam, ligando a um sonho de há semanas atrás onde vi o trágico fim dos dias de meu marido, pais e irmãos». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.

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Meninas. Maria Teresa Horta. «E ao vê-la finalmente dar por falta de mim, aflita, a boca entreaberta num grito mudo mas descontrolado, corria arrependida, esgueirando-me de onde estava…»

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Efémera

«(…) Na verdade, viria mais tarde a preferir imaginá-la enfrentando o todo-poderoso ministro de dom José I do que a escrever poemas; embora conseguisse melhor idealizá-la a usar a pena criativa do que a espada de lâmina crua de gume afiado. E volvia-me de novo para o Tejo, como se por um passe de mágica fosse encontrar nas suas águas turvas os bergantins reais, as naus, as corvetas, as galeotas, que na época dela aportavam ao Cais das Colunas. Essa nossa avó dos poemas também vinha aqui só para tentar alcançar o horizonte, tornava minha mãe divagando, os olhos azul-pavão repletos da incandescência da tarde irisada pelo sol a espelhar-se nas vidraças das janelas, nas fachadas do largo com os seus passeios perdidos por dentro da obscuridade das arcadas, espécie de corredores largos onde se anteviam vultos de mulheres a caminharem numa pressa recolhida, de quem se sente ameaçado, assustado.

Inseguras.

Imprudente, debruçava-me mais, na esperança de ver despontar ao longe as flâmulas das fragatas, as corvetas, as barcaças na sua madeira batida, trabalhada e gasta pela ondulação e pelo sal do mar, que perto da Torre de Belém se vem misturar com a doce água fluvial, mas apenas encontrando, desconsolada, o rasto dos cacilheiros na sua travessia laboriosa e lenta. Imitações pobres daqueles outros barcos, que me entretinha a recriar enquanto não adormecia, tal como a praça fervilhante de comércio, atravessada pelos cães vadios, as anões e os mendigos, as carruagens e as cadeirinhas de cortinas em veludo misteriosamente corridas, a ocultarem fidalgas e padres, quem sabe se em incursões clandestinas. Terreiro do Paço onde embarcavam e desembarcavam as damas da Corte e as fadas, com o pesado cabelo entrançado de pérolas descaindo sobre a nuca humedecida por um suor febril e inquieto.

E desse modo, julgava terem sido a rainha dona Maria e a sua nora, a infanta espanhola Carlota Joaquina, que à socapa da Corte ia à praia de Belém molhar os pés de rapariguinha agreste e desavinda com o destino que a tirara de Espanha, a contragosto chegada a Portugal que até ao fim dos seus dias iria odiar.

Hostil.

Acocorada no banco de pedra escorregadia, esquecia-me das horas, ao contrário da minha mãe, que com frequência subia a manga do vestido leve, a ver o relógio que lhe deslizava no pulso magro. E se eu a agarrava pretendendo retê-la, demorá-la, sacudia-me nervosa, a boca crispada de sede e de calor.

De impaciência.

Anda!, dizia, a puxar-me. E eu acabava por pular para o chão que ali era de terra batida, a segui-la tentando acertar o meu passo miúdo pelo passo alado dela, espaço oscilante delineado pelas suas esguias pernas bronzeadas, longas e nuas.

Vulnerável e débil.

Vem!,  quase gritava, numa súbita urgência, a exigir que a seguisse mesmo se a contragosto, consciente de quanto me custava partir daquele vão de sonho, para mim tão mágico, trespassado pelo grito das gaivotas, povoado pelo equívoco odor ácido a águas escusas, musgo e limo, salpicados de cheiros salgados, amarescentes, numa mistura de verdete e zinco, que eu tentava aflorar com a ponta da língua, arrastando o andar. Até que ela se zangava, enfastiada da minha companhia relutante, a atrasá-la para onde, numa repentina ansiedade, se dirigia praticamente correndo.

Anda!,  tornava a minha mãe em tom cortante e breve, mas já parando diante de cada montra nas quais nos reflectíamos, e eu me perdia na sua imagem alvacenta de loura. E deste modo avançávamos, demorando a nossa chegada ao Rossio, que eu detestava, tentando iludir o choro mal contido, obstinada, a sentir já a falta dos minutos de intimidade passados uma com a outra diante do rio. Lugar a ser substituído pelo parco fascínio iridescente dos repuxos das fontes das mulheres, como então lhes chamava, despidas sob a água que lhes corria pelo corpo e pelas faces de bronze.

Gotas, como se fossem lágrimas.

Mesmo assim eu persistia na demora, teimando em atrasar os pés calçados com as sandálias novas de tiras cruzadas; soltando os dedos do entrançamento dos dela, como se quisesse perder-me lá atrás, por entre as pessoas que iam e vinham apressadas, e ela não dando pela minha ausência seguia, enquanto eu me ocultava por trás fosse do que fosse, a espiá-la, coração aos saltos no peito liso, amarfanhado pelo pavor de que me tivesse esquecido para sempre.

Em desordem.

E ao vê-la finalmente dar por falta de mim, aflita, a boca entreaberta num grito mudo mas descontrolado, corria arrependida, esgueirando-me de onde estava, voando até aos seus braços que encontrava fechados ao meu alvoroço. E se contrita me agarrava ao seu corpo tépido, de imediato me empurrava, áspera e desprendida, como se sufocasse: deixa-me, deixa-me!

Então eu afastava-me ainda arrebatada e, com o intuito de castigá-la, arreliava-a rogando, sonsa, na lamúria de fala: podemos tornar ao rio, podemos, podemos? Mas em silêncio ela empurrava-me à sua frente, a contornarmos por fim os cestos de verga cheios de rosas das floristas, onde os odores, os perfumes das flores se enleavam em treliças de cores e tons, pouco antes de chegarmos à Pastelaria Suíça onde, sem me dirigir a palavra, se sentava na esplanada comigo ao lado a fazer sentir-me invisível, e encomendava ao criado um refresco de chá, que vinha com gelo e hortelã num copo esguio e alto, enquanto, distraída com a sua beleza, eu deixava derreter o sorvete de chocolate e baunilha na pequena taça de metal redonda e embaciada pelo frio. O que estás a fazer? Pareces parva!,  ralhava desatenta, sem se aperceber das figas que eu fazia por baixo da mesa, repetindo para mim mesma: não vem! Ele não vem hoje, não vem!, dando-me conta ao mesmo tempo da estranha expressão ansiosa da minha mãe, que sem cessar buscava em torno, primeiro ensimesmada, mas logo sobressaltada e obsessiva». In Maria Teresa Horta, Meninas, Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

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quarta-feira, 26 de maio de 2021

Meninas. Maria Teresa Horta. «A nossa avó, que viveu há séculos e escrevia poemas, vinha até aqui onde estamos assistir ao embarque e ao desembarque dos reis, contava minha mãe…»

 

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Efémera

«(…) Encostava a minha cara ao cetim da saia lisa do seu vestido fúchsia, e de mãos dadas olhávamos em silêncio o rio de um verde espesso manchado de azul-cobalto, serenamente a bordejar os primeiros degraus do cais, esverdeados de limos; degraus de pedra grossa desgastados pelos séculos, por onde as águas subiam nas marés altas e se estendiam devagar, envolventes, de manso rodeando, contornando as duas colunas que pareciam fitar o outro lado do Tejo. O sol de Agosto cegava-nos com a sua incandescente luz branca, fazendo brilhar o cabelo louro que ela usava em ondas a tocar os ombros frágeis, haste de tão delgada e dúctil a fazer lembrar as actrizes de cinema; com uma perversa languidez fatal de madressilva em flor ou de pedra preciosa rubra. Sempre que ali demorávamos mais tempo, expectantes mas amodorradas embora atentas, soltava a minha mão da sua, trepava para um dos bancos incrustados na amurada a separar-nos do rio e debruçava-me, a fim de sentir a vertigem, a tontura a tomar-me, sensação que pensava vir do fundo do espelho obscuro e frio daquelas águas, num chamamento impossível. E se ela estendia os dedos macios até ao meu braço que a manga de balão deixava a descoberto, a querer segurar-me, logo se distraía de novo; e eu mal sentia a frouxidão dos seus dedos, voltava-me a tentar fitar-lhe os olhos de anil, repletos de cintilação da tarde por onde, geniosa, a minha mãe escapava com a astúcia de mulher rebelde e deleitosa.

Efémera.

Por trás dela havia a largueza quase quadrada do Terreiro do Paço, com as suas arcadas abertas cor de mostarda clara e as ruínas do terramoto ao fundo, assim como o Arco da Rua Augusta encimado pela escultura de uma mulher de manto que eu sabia chamar-se Glória, a coroar o Génio e o Valor, tinham-me ensinado. No centro empedrado de pedra miúda, ficava o pedestal de mármore com a estátua do rei dom José I a cavalo, e isso já pertencia à História, embora na altura não o soubesse. Parecia-me por vezes escutar o barulho abafado de passos ágeis vindos de um outro tempo, o som de botinas e de sapatos frágeis, assim como um roçagar de saias de seda e saias de sombra, dos saiotes deslizando uns nos outros. Mais impreciso ainda era o sussurro das rendas e dos cetins, saias enfunadas em ternas transparências…, shantungs e musselinas e tafetás, mas sobretudo de sedas matizadas e de coletes bordados a ponto de crivo, abainhados de prata.

A nossa avó, que viveu há séculos e escrevia poemas, vinha até aqui onde estamos assistir ao embarque e ao desembarque dos reis, contava minha mãe como se inventasse. E eu quedava-me a imaginar essa avó descoberta a partir de uma gravura que encontrara num livro encadernado, há muito esquecido sobre a mesa baixa da nossa sala de estar. Olhar inteligente e arguto num rosto belo de traços delicados, os lábios de veludo toldados pelo ligeiríssimo sorriso. Era deste modo que a reprodução em papel brilhante nos mostrava Leonor de Almeida. Olhar determinado de luz, iludindo-se.

Chegava a sonhar com ela enquanto menina, antes de ter oito anos e entrar com a mãe e a irmã para o convento de São Félix, por ordem de Sebastião José de Carvalho Melo, e antes também de fazer poesia. Distinguia-a debruçada na amurada onde eu tantas vezes já estivera com o pensamento nela, desejando descortinar tudo o que dali ela abarcara a navegar no Tejo: as faluas, as gabarras de vela de dois mastros, as barcaças… A passarem ao largo, na sua mansa faina». In Maria Teresa Horta, Meninas, Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.

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segunda-feira, 24 de maio de 2021

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Virou as costas ao filho e, com um gesto pomposo, ofereceu o braço direito à rapariga, ordenando-lhe: acompanhai-me, bela Chamoa»

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1126

Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126

«(…) Uniam-se assim as duas regiões que o rio Minho separava e dona Teresa e o seu Trava tornavam-se ainda mais poderosos, e candidatos a preencherem o vazio criado pelo recente falecimento da rainha Urraca de Castela, Leão e Galiza, que entregara a alma ao criador no mês anterior. A infame rainha, meia-irmã de dona Teresa, deixara feridas espalhadas pelos reinos da Hispânia, daquelas difíceis de sarar. Embora o seu óbvio sucessor fosse o filho, Afonso Raimundes (que em breve seria coroado como Afonso VII), havia dúvidas quanto ao destino final da Galiza e do Condado Portucalense. Seria possível unirem-se, num novo reino, como os irmãos Moniz de Ribadouro juravam ser o sonho do falecido conde Henrique? Ou submeter-se-iam em separado ao novo rei? Fosse qual fosse o futuro, os casamentos arranjados por dona Teresa fariam parte dele. E, no meu caso, não me posso queixar disso, embora haja quem possa.

O pobre Ramiro estava paralisado de deslumbramento em frente à bela moça. Sem qualquer embaraço, Chamoa deu-lhe um meigo beijo na cara e exclamou: não nos víamos há meses, desde Ponte de Lima! A vila organizava a maior feira de Entre Douro e Minho, onde as gentes iam trocar tecidos e alimentos. Alguma permuta devia também ter acontecido por lá entre aqueles dois, pois mal ouviu o nome da povoação, Ramiro corou fortemente. Estais mais magro, meu amigo, apreciou Chamoa, observando-o, preocupada. Estais doente? Paio Soares mantinha-se silencioso e intrigado, olhando à vez para o seu bastardo e para a rapariga. Já Mem Rodrigues Tougues fingia sorrir, evitando revelar o seu óbvio incómodo. De súbito, Paio Soares perguntou ao filho: não me apresentais esta bela flor?

Chamoa corou, batendo as pestanas. Uma coisa eram elogios de primos ou de rapazolas bastardos, outra, uma lisonja daquelas, disparada por um dos nobres mais poderosos do Condado! A filha de Gomes Nunes Pombeiro e de Elvira Peres Trava fez o que mandavam as regras: dobrou o joelhinho e executou uma pequena vénia, agarrando a sua dalmática azul-clara com ambas as mãos. Paio Soares sorriu e apontou para as nuvens cinzentas que carregavam o horizonte. Não há sol no alto do céu, mas há aqui na terra! Vós sois deslumbrante, Chamoa Gomes, deixai-me contemplar-vos! Deu a sua mão direita à esquerda dela e obrigou-a a dar uma volta completa à sua frente, enquanto nos seus olhos se via agrado, ao examinar os peitos da moça e o seu colar. A visada corou de novo e Ramiro, agastado com o piropo paternal, falou finalmente. Conhecemo-nos em Ponte de Lima. O pai, desagradado, olhou-o como se mira um tonto. Julgais que sou surdo? A Chamoa acabou de o dizer!

Virou as costas ao filho e, com um gesto pomposo, ofereceu o braço direito à rapariga, ordenando-lhe: acompanhai-me, bela Chamoa. Ela pousou o seu braço no do nobre e, quatro passos adiante, olhou para trás rapidamente, rindo-se, divertida, para o seu primo, Mem Tougues, que ficara junto a Ramiro. Depois, voltou-se de novo para o distinto rico-homem e avisou-o: fiquei de esperar por meus pais à porta da igreja! Paio Soares acenou a cabeça e os dois pararam no sopé da escadaria do templo, a conversar, até aparecerem os familiares de Chamoa, que cumprimentaram o senhor da Maia, enquanto Mem Rodrigues Tougues se acercava deles». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,

Domingos Amaral. Por Amor a uma Mulher. «Chamoa..., murmurou Ramiro, visivelmente atrapalhado. Filho ilegítimo de Paio Soares, dizia-se que de uma soldadeira, apresentava um saiote coçado, calçava umas abarcas e usava umas longas e velhas meias»

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1126

Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126

«(…) Naturalmente, o seu profundo temor era que Afonso Henriques se apaixonasse por outra. Naquela época, quando a revimos, Chamoa Gomes já tinha dezasseis anos e a irmã Maria Gomes, a minha Maria, que, reconheço, não era tão deslumbrante, tinha dezassete. Na corte do Condado Portucalense, as sobrinhas do Trava eram muito pretendidas e havia até quem dissesse que uma delas poderia casar com Afonso Henriques, embora nós duvidássemos, pois o príncipe desprezava o amante da mãe e a sua poderosa família galega. À cautela, logo que as soubera em Viseu, a prima Raimunda decidira vigiar-lhes os passos. Porém, as manas Gomes haviam permanecido dentro de casa, e só naquele momento, em que via finalmente Chamoa, tão radiosa e sedutora, a prima Raimunda sofria.

A rapariga galega era uma poderosa rival, a maior até à data. A sua chegada representava um perigo fatal para aquele encantamento escondido e talvez impossível de Raimunda. Ela e todos nós sabíamos que o príncipe já dormira com soldadeiras, mas que não se afeiçoava a elas. Já uma galeguinha doce, risonha e sardenta como Chamoa entraria pelo coração do seu amado como faca quente em manteiga. Jumenta, pensava sempre a minha pobre prima. De repente, viu um rapaz jovial, um pouco mais velho do que Chamoa, apertado no seu balandrau demasiado justo, aparecer no pátio e dizer-lhe: Chamoa, tendes de vir comigo ao ribeiro da Loba, vamos a cavalo! A rapariga riu-se, aos pulinhos, mas recusou a sugestão: primo, hoje é Sexta-Feira Santa, é pecado pensar nisso!

A família de Toronho havia chegado a Viseu vinda da Galiza, numa pequena comitiva que à prima hora da manhã entrara pelas portas da cidade. Quanto ao seu companheiro de colóquio, era familiar dela pelo lado dos Trava, e não muito distante. Chamava-se Mem Rodrigues Tougues e, pela conversa insinuante, via-se que eram dados ao folguedo, coisa bem habitual entre primos. O duo avançou em direcção à escadaria da igreja, mas uns metros à frente surgiram Ramiro e o pai, que estacaram quando se cruzaram com Chamoa e seu primo.

Chamoa..., murmurou Ramiro, visivelmente atrapalhado. Filho ilegítimo de Paio Soares, dizia-se que de uma soldadeira, apresentava um saiote coçado, calçava umas abarcas e usava umas longas e velhas meias. Sendo um infanção, que não herdaria terra ou castelo, Ramiro vestia-se como um servo pobre, e o contraste com o homem ao seu lado era drástico. Aperaltado numa luxuosa dalmática escarlate, com um belo punhal à ilharga, no topo de cujo cabo se destacava uma pérola, Paio Soares parecia não seu pai, mas seu amo e senhor. Rico-homem da Maia e antigo alferes do conde Henrique, Paio Soares afastara-se de dona Teresa há uns anos, receando as ameaças da rainha Urraca, mas agora que esta morrera havia quem dissesse que dona Teresa o tentava aliciar de novo e por isso o convidara para passar a Páscoa em Viseu.

Embora alguns ainda recordassem a recusa de ir a Lanhoso ajudar a mãe do príncipe, seis anos antes, não havia nenhuma humilhação irrazoável, nem ofensa pessoal entre ele e Fernão Peres. Todos estimavam aquele nobre portucalense, recordavam com respeito as suas façanhas de combatente contra os mouros, e sabiam também que dispunha dos maiores territórios do Condado. Além disso, estava viúvo, pois a esposa morrera-lhe há dois anos, e do seu casamento religioso apenas haviam nascido duas raparigas, ambas mortas em crianças. Aos quarenta anos, aquele era um homem poderoso mas solitário, e era esse vazio que dona Teresa visava preencher, procurando para ele uma esposa capaz de dar-lhe um varão legítimo. A nova política matrimonial de dona Teresa e do Trava era límpida e interesseira: casar os nobres do Sul da Galiza com as meninas nobres de Entre Douro e Minho, e os nobres de Entre Douro e Minho com as meninas nobres do Sul da Galiza». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura, 

domingo, 23 de maio de 2021

Domingos Amaral. Por Amor a uma Mulher. «… quem era o terceiro homem, o que era a relíquia e onde estava escondida. Deus deu à bruxa as chaves das Portas do Inferno, mas não o poder de as abrir»

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Rio Nabão, Março de 1120

«(…) Depois de habituar os olhos à escuridão, a mulher de negro viu no chão uma esteira de vime, em cima da qual se encontrava deitado um minúsculo e mirrado idoso, que morria devagarinho, emitindo os inconstantes queixumes que ela escutara. Decidiu esperar que ele soçobrasse, pois não seria correcto deixá-lo apodrecer no eremitério. Podia perfeitamente cavar uma pequena cova, enterra-lo e só depois prosseguir o seu caminho. Ainda à entrada, reparou que o homem parara de gemer. Com os olhos agora

muito abertos, parecia aterrado, não já com medo de morrer, mas com medo dela. Era natural, estava vestida de negro, se calhar o monge deduzira que ela era a Morte que o vinha buscar. Tentou tranquilizá-lo: não sou a vossa morte. O velho acalmou e ela decidiu entrar no eremitério. Explicou ao homem que não duraria mais do que umas horas, e que ela poderia enterrá-lo, para que o corpo não fosse comido pelos bichos. O monge deve ter gostado de o saber, pois fechou os olhos e fez um pequeno aceno de cabeça, agradecido. Então, ela sentou-se no canto da esteira e convenceu-se de que ele tinha decidido morrer, pois não o ouviu gemer durante algum tempo. Para retirar as suas dúvidas passou a mão sobre o nariz dele, para sentir a respiração, o que o levou a abrir os olhos. Ainda estais cá, murmurou ela.

Habituara-se a queimar cadáveres, mas não gostava de os enterrar, nunca sabia se estavam mesmo mortos. – Como posso ter a certeza da vossa morte? O monge não respondeu e então ela informou-o de que ia lá para fora abrir a cova, e perguntou-lhe se tinha alguns utensílios por perto, o que o levou a falar pela primeira vez, apontando para o canto da sala. Pedra... A mulher de negro viu no chão uma laje rectangular e comprida, ligeiramente levantada, que cobria um túmulo. É ali que quereis ficar?, perguntou. O eremita acenou com a cabeça e ela comentou: melhor para mim, não tenho de cavar a sepultura. O eremita ficou silencioso durante horas, enquanto ela se deitava a seu lado e dormitava. Já era de noite quando ele voltou a gemer. Devia estar com muitas dores e o seu fim estava a chegar, mas de súbito tocou na mulher, que se sentou e aproximou o ouvido da boca dele, para o tentar compreender. Jerusalém... Uma relíquia... Três homens...

A mulher de negro conseguiu compor uma curta narrativa. Três homens tinham escondido ali perto uma relíquia, trazida por um deles de Jerusalém. Este último já morrera, envenenado por uma rainha numa terra distante. Pai de um novo rei, balbuciou o monge. O moribundo acrescentou que o segundo homem seria morto por um filho, que cristãos de branco viriam procurar a relíquia e que o terceiro homem era o mais temível. De súbito, cada vez mais frágil, disse um nome em latim e apontou para o forno, onde crepitavam ainda umas brasas. O fogo que queima os corpos... A mulher de negro assustou-se. Lembrou-se do seu passado e temeu que aquele eremita fosse um vidente. O novo rei, dizei-lhe a verdade.

Após sussurrar estas últimas palavras, o monge faleceu e a mulher de negro colocou-o no túmulo depois de o sangrar com uma faca, para garantir que estava mesmo morto. De seguida, pôs a laje no lugar, regressou à esteira, deitou-se e adormeceu. Acordou umas horas depois, já com o dia a nascer, e abandonou o eremitério. Estava um dia de sol, e ela decidiu fazer o que nunca fazia, retirou o capuz para aquecer o rosto, e cerca de duas léguas à frente, na direcção de Coimbra, cruzou-se de repente com um cavaleiro, que lhe perguntou se sabia onde ficava um eremitério. Quando ele partiu, teve um súbito e estranho pressentimento e correu a esconder-se nuns penedos. Algum tempo mais tarde, o cavaleiro reapareceu à procura dela, a passo. Era evidente que fora ao eremitério, descobrira o monge morto e agora queria saber o que ele dissera à mulher.

Quando me descreveu estes eventos, Mem garantiu que a bruxa fora cautelosa e, por precaução, se mantivera invisível até o desconhecido partir. Várias horas depois ainda duvidava de si própria, relatou Mem. Qual o motivo daquele estranho susto que a levara a esconder-se? Porque lhe tremiam as mãos? Estaria outra vez louca? Eram perguntas para as quais só tivemos resposta muitos anos depois, quando tudo se tornou mais claro, quando descobrimos quem era o terceiro homem, o que era a relíquia e onde estava escondida. Deus deu à bruxa as chaves das Portas do Inferno, mas não o poder de as abrir.

1126

Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126

Jumenta, pensou a minha prima Raimunda quando viu aquela linda galega atravessar o pátio, em frente da igreja de Viseu. Aos dezassete anos, a minha prima continuava a mesma magricela de sempre, quase não se distinguindo de um rapazola. O meu tio Ermígio dizia-lhe para não se comparar, mas sempre que via uma rapariga bonita o mundo fugia debaixo dos pés da minha pobre prima». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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sábado, 22 de maio de 2021

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «A mulher de negro soubera, em Santarém, que Ali Yusuf andara pelo Leste da Península, acompanhado de Taxfin, e que depois regressara aos desertos africanos, para combater as tribos berberes revoltadas»

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Rio Nabão, Março de 1120

«(…) A mulher vestida de negro estava longe do local onde normalmente vivia escondida, em Soure. Daquela vez, descera até Santarém, pela estrada principal, e agora regressava por caminhos junto às margens do Nabão. Não tinha pressa e desejava apenas conhecer o território, um dia poderia precisar de se esconder ali. Há quatro anos que chegara a Coimbra, na peugada das tropas de Ali Yusuf, cumprindo o destino que impusera a si própria. Desde os tempos conturbados da serra Morena aprendera a viver na floresta, alimentando-se de vegetais e frutos, ou de animais que caçava com armadilhas, e sempre pensara que iria terminar os seus dias por lá. Mas um dia, Taxfin, governador de Córdova e grande guerreiro, decidira participar com o califa numa expedição ao Oeste, e levara a esposa, Zulmira, e as duas meninas, Fátima e Zaida. Naturalmente, a mulher de negro seguiu-as. O primeiro cerco a Coimbra durara pouco, mas a desgraça acontecera aquando do seu levantamento. As carroças onde viajavam as três mouras tinham sido apanhadas pelas tropas de dona Teresa. A mulher de negro tentara avisá-las, desesperada, mas não conseguira.

As tropas de Ali Yusuf partiram e, durante um ano, ela permanecera nos arrabaldes da cidade cristã, sabendo que as mouras, embora prisioneiras, se encontravam bem. Durante esse Inverno, descobrira a povoação de Soure, que fora arrasada. O castelo estava abandonado, a torre tombada e, como ninguém lá vivia, escolheu aquela povoação desalmada para se instalar, no que foi imitada pelas feras. Ursos, lobos e cães bravios, todos lá iam farejar os despojos, e ela sentia-se bem no meio deles, e aprendeu a viver sem os temer ou provocar.

No Verão seguinte, para resgatar a sua família, Taxfin conseguira convencer o califa Ali Yusuf a voltar a Coimbra. A mulher de negro mantivera-se atenta e, durante vinte dias, espiara os movimentos das tropas, para ver se elas libertavam as três mouras. Porém, e inesperadamente, o califa mudou outra vez de ideias. Havia doentes entre as tropas, e Ali Yusuf não só levantou o cerco, como mandou matar os infectados, e a mulher de negro viu à distância um homem vestido de branco degolar mais de trinta inocentes, à beira do Mondego. Nessa tarde, depois de ajudar um rapazito, filho de um almocreve, cujo pai fora morto pelo carniceiro branco, regressara a Soure espantada, sem compreender as razões por que Ali Yusuf voltara a retirar, um ano depois, sem sequer atacar Coimbra. Mas, como as mouras não haviam sido libertadas, permaneceu por lá. Três anos haviam já passado e nenhuma expedição muçulmana voltara a fustigar o Mondego. A mulher de negro soubera, em Santarém, que Ali Yusuf andara pelo Leste da Península, acompanhado de Taxfin, e que depois regressara aos desertos africanos, para combater as tribos berberes revoltadas.

Não havia qualquer notícia de que estivesse a preparar uma invasão do Oeste e por isso sentia-se mais à vontade para se afastar de Coimbra. Porém, havia outros riscos nestas viagens. O seu aspecto devia meter medo, já por diversas vezes lhe tinham chamado bruxa e alguns lavradores haviam-na apedrejado. Apesar dos seus conhecimentos de magia e feitiçaria, ela não se considerava a si própria uma bruxa, apenas uma louca. As verdadeiras bruxas não eram loucas, mas ela limitava-se a ser uma doida com truques, que normalmente resultavam mal. Fosse como fosse, os outros temiam-na e foi por isso que inicialmente se afastou daquele eremitério.

Na margem do Nabão, perto das ruínas de uma abandonada povoação romana, dera com aquela pequena construção de granito, no meio da floresta. Em vez de caminhar na sua direcção, decidiu contorná-la à distância. Os eremitas cristãos que viviam abaixo do Mondego eram corajosos, mas também demasiado religiosos para aceitar uma bruxa vestida de negro. Acusá-la-iam de blasfémias e heresias, e rezariam ao seu Deus para que a levasse, por isso se afastou. De repente, ouviu um gemido e estacou. Voltou a observar o eremitério e o som repetiu-se. Alguém estava a morrer ali. Olhando à volta para ver se ninguém aparecia, aproximou-se. À entrada do edifício sem porta, espreitou lá para dentro. Limitava-se a uma sala fria e quase quadrada, com uma mesa de pedra no centro, um altar do seu lado direito e, num dos cantos, um pequeno forno, onde se viam umas brasas de carvão». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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sexta-feira, 21 de maio de 2021

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «O meu relato neste caso é, pois, impreciso. Mesmo assim, é importante contá-los aqui, pois revelaram-se fundamentais para o reino de Portugal nascer»

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Guimaraes, Março de 1120

«(…) Não vos disse já que ides para Lamego?, perguntou, entediada. Apontou com o dedo a porta e ordenou: esperai lá fora. Como o príncipe não se mexeu, todos ficámos na expectativa. Desejo ficar convosco em Guimarães, declarou Afonso Henriques. A rainha contraiu o rosto, irritada, como se o que ele tinha acabado de dizer fosse um disparate. Que dizeis? Sabeis bem que vos mandei ir com Egas e Ermígio! Aumentara o tom de voz, mas o filho não se impressionou. Já tenho quase onze anos, é tempo de me juntar à corte e de permanecer aqui, junto a vós. Enfurecida, a mãe gritou-lhe: não vou ficar em Guimarães! Vou para Viseu e depois para Coimbra! Ide lá para fora! Depois, incentivou Fernão Peres a prosseguir, mas Afonso Henriques deu um passo em frente. Estava agora apenas a três metros da mãe, e esta deitou-lhe um olhar furibundo, enquanto ele afirmava: então vou convosco para Viseu e para Coimbra.

Dona Teresa começou a arfar, tal era a ira que se apossara dela por o filho a desafiar em frente de terceiros. Egas e Ermígio revelaram-nos mais tarde que sentiram um contentamento secreto por assistir àquela exibição de firmeza do seu protegido, embora discordassem do pedido, pois não queriam ceder a sua posição privilegiada de guardiões do príncipe herdeiro do Condado Portucalense, a última influência que lhes restava. Talvez por ser o mais lúcido e perverso dos presentes, o Trava foi o primeiro a falar e, com a sua voz intensa e solene, declarou: em Coimbra há combates permanentes com os sarracenos, a vossa vida correria perigo. Sem sequer olhar para ele, Afonso Henriques ripostou: não mais do que a de minha mãe e bem menos do que a vossa, pois não tenho idade para lutar em batalhas.

Meu pai e meu tio sorriram, agradados com a acutilância daquela resposta, mas o sagaz Trava percebeu de imediato que o afrontamento não era a melhor via para lidar com aquele rapaz e apontou para nós, as crianças. Em Coimbra, não teríeis os vossos amigos, o Lourenço, o Afonso, o Soeiro, a Raimunda. Com quem ireis passar os dias, com o bispo da Sé?, ironizou. Pela primeira vez, Afonso Henriques pareceu duvidar dos seus desejos. O Trava, notando que aquela era a via certa, insistiu: além disso, o Ermígio e o Egas, agora que terão poucos afazeres, podem levar-vos a Tui. Caçar ursos... Já ao corrente dos desejos do príncipe, o Trava esperou a sua reacção, mas depois de um curto silêncio, aquele deu meia-volta e voltou a sair da sala, aceitando sem mais palavras as ordens da mãe. E nós, seus amigos, fomos atrás dele.

A minha prima Raimunda revelou-me que nessa noite, ainda em Guimarães, foi pela primeira vez ter à cama do príncipe. Afonso Henriques ficava num quarto sozinho, enquanto ela dormia connosco. Quando a ouviu entrar, ele franziu a testa, mas ela justificou-se: o Soeiro está constipado, ressona muito, não consigo adormecer. Era mentira, mas Afonso Henriques acreditou na minha prima, deixou-a subir para a cama e ficou ainda mais surpreendido quando ela o beijou na boca. Porque me haveis dado um beijo?, perguntou. A minha prima disse-lhe que queria ser amiga dele, em segredo, sem nós sabermos, e que podia dar-lhe beijos todas as noites. Não temos idade para essas coisas, disse o príncipe. A atrevida da minha prima logo lhe retorquiu: mas um dia vamos ter, e nesse dia ides gostar de me ter aqui... Convencido, Afonso Henriques permitiu que ela lhe desse mais um beijo e depois ficaram calados no escuro, até que ela perguntou: haveis achado a Chamoa bonita? Afonso Henriques fingiu que já estava a dormir e não respondeu, mas na verdade continuava acordado, e assim ficou mesmo depois de Raimunda adormecer. Naquela noite, o seu espírito divagava entre dois opostos. A preocupação, por concluir que o Trava, um espírito afiado, lhe era hostil; e a excitação, quando lhe vinham à lembrança aqueles cabelos cor de mel e aquele sorriso gracioso de menina. O meu melhor amigo não sabia resolver o dilema que o dividia, e tinha muita pena de que Chamoa fosse sobrinha do Trava. Sempre teve. Só que a pena é um sentimento bonito, mas nunca é muito forte.

Rio Nabão, Março de 1120

Só muitos anos depois dos acontecimentos que se seguem é que vim a saber quem era a mulher de negro, ou a bruxa, como lhe chamavam os medrosos. Mem é que a conhecia, foi a ele que ela descreveu estes fragmentos de vida. O meu relato neste caso é, pois, impreciso. Mesmo assim, é importante contá-los aqui, pois revelaram-se fundamentais para o reino de Portugal nascer. A bruxa é que nos ligou a todos, como repetia sempre Zaida». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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quarta-feira, 19 de maio de 2021

Luis Zueco. O Castelo. «Larga vida al rey!, repitió el salón al completo, incluidos sus hermanastros. Ramiro regresó a su posición y bebió de su copa con un gesto firme y seguro»

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Pamplona. 22 de Novembro do ano de 1027

«(…) Está claro que no sois un hombre de fiestas. Todo lo contrario, me apasionan. La razón por la que se convocan es que en ellas siempre acontecen sucesos interesantes. Mi estimado Lope de Ferrech, si se celebra una fiesta en el reino de Pamplona, es para que ocurra algo. A veces se conoce de antemano, pero en otras ocasiones… Sabéis qué celebramos hoy? La festividad de Santa Cecilia. De verdad creéis eso?, preguntó, levantando ambas cejas. Es que acaso santa Cecilia ha hecho algo por nuestro reino? Yo…, creo que no. Lope se quedó dudando. Así que hoy sucederá algo… Antes de que terminara la frase unos tambores anunciaron la llegada del rey. Los presentes se cuadraron: castellanos, leoneses, pamploneses y también los ribagorzanos, aragoneses y sobrarbenses. Todos buscaron mostrar su cabeza lo más alto posible, cual gallo en un gallinero. No era para menos, el rey Sancho era el monarca más poderoso que habían conocido los reinos cristianos del sur de los Pirineos.

Mis vasallos, os agradezco vuestra presencia en Pamplona, dijo con una poderosa voz, ya cada vez soy más viejo y me quedan menos años que celebrar. Un murmullo recorrió la sala y las miradas de los presentes buscaron al heredero, su hijo García. También a su hermano Fernando y al pequeño Gonzalo que permanecía junto a su madre, la reina Munia. Tranquilos, todavía no me tenéis que enterrar, dijo, soltando una ruidosa carcajada, pero hacéis bien en fijar vuestros ojos en mis hijos, pues ellos guiarán el futuro de mis territorios y por ende, el vuestro. Habla en plural susurró Ramiro. Lope no entendió la trascendencia de aquel detalle y siguió escuchando al monarca. Estoy orgulloso de cada uno de ellos y estoy convencido de que, llegado el momento, me sucederán con honor y sabiduría. Y el rey alzó la copa. Brindemos por ellos! Todos los asistentes obedecieron con entusiasmo. Viva el rey! Ramiro dio un paso al frente con la copa en alto. Larga vida al rey!

Larga vida al rey!, repitió el salón al completo, incluidos sus hermanastros. Ramiro regresó a su posición y bebió de su copa con un gesto firme y seguro. Sin duda, su inesperada intervención había causado extrañeza. Qué pretende el hermanastro con estas palabras?, se preguntaría más de uno de los nobles. Lope, si quieres un consejo sincero, no pierdas el tiempo con aliados inciertos o débiles, advirtió el hijo del rey en un susurro mientras le miraba con sus pupilas oscuras. Debes estar seguro de a quién quieres tener a tu lado y a quién no, me comprendes? Sí, mi señor. Qué opináis de mis hermanastros? Seguro que gobernarán con sabiduría. Sandeces! Qué pensáis en verdad? Decídmelo! Es pronto para saber Lope suspiró, no le gustaban las encerronas, habrá que ver cómo reina el heredero… Cómo creéis que repartirá sus territorios mi querido padre? Eso nadie lo sabe. García será rey de Pamplona, sin duda. Pero qué pasará con el condado de Castilla? Con los señoríos de Álava o Cea? Con Aragón o la Ribagorza? No se lo habéis preguntado? Lope decidió tomar una posición más ofensiva. Es vuestro padre, quién mejor que vos para saberlo? Precisamente por eso, Lope. Esas enigmáticas palabras revolotearon a su alrededor como moscas pegajosas.

Lope de Ferrech se sintió en peligro, empezó a sentir un calor asfixiante. No estaba acostumbrado a aquellas recepciones ni a conversaciones tan cargadas de insinuaciones. Su padre no le había preparado para aquello, no había crecido en la corte. No era capaz de leer entre las frases puntiagudas del hijo del rey. Y, al mismo tiempo, creía que estaba ante una de esas oportunidades que no puedes dejar escapar en la vida. Yo podría ayudaros se atrevió a decir, necesitáis alguien de confianza, fiel y… No estamos en las montañas, Pamplona es más peligrosa que cualquier desfiladero o emboscada. Ramiro buscó una copa de vino para apaciguar su sed. No puedo fiarme de nadie en la corte, todos tienen deudas con todos, influencias, pactos continuos… Yo soy leal al rey». In Luis Zueco, El Castillo, 2015, Titivillus, In Luis Zueco, O Castelo, 2015, Alma dos Livros, 2020, ISBN 978-989-899-914-0.

Cortesia de AdosLivros/JDACT

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O Castelo. Luis Zueco. «Nunca había hablado con él, pero su padre se había encargado de mostrarle, en los pocos actos que habían coincidido con la familia real, quién era cada uno de los hijos de Sancho el Mayor»

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Pamplona. 22 de Novembro do ano de 1027

«(…) Aquella desgraciada muerte hizo olvidar a su padre sus planes para hacerle religioso y tan pronto como pudo le puso una espada entre las manos. Cuál fue su sorpresa, al comprobar que él ya sabía blandirla como un caballero. En el salón real, engalanado con todo lujo, buscó dónde sentarse entre aquel enjambre de conspiraciones veladas y tediosas conversaciones. No todos los presentes eran tan poco interesantes, pues también había damas de la más alta alcurnia. Lope de Ferrech puso atención en una joven que vestía con un brial entallado, con bordados florales y aberturas laterales encordadas. Ella le miró com disimulo y le regaló una discreta sonrisa. Por desgracia, se acercó un Caballero envuelto en una larga capa azulada y la cogió por el brazo. Así que dirigió su mirada hacia otra mujer. Esta portaba un brial de anchas mangas, con bordados geométricos en las bocamangas y un collarín con cenefas cerrando el cuello. A pesar de sus intentos por llamar su atención, ella no daba la impresión de mostrar el más mínimo interés.

Decidió no tentar a la suerte y alejarse de aquellos provocativos ojos, y se encauzó hacia el extremo menos concurrido. En él halló a una discreta corte que rodeaba a un fornido personaje, del cual no era capaz de divisar su rostro. Sus acompañantes le miraron con desconfianza, pero ya estaba cansado de deambular por aquel salón. Así que buscó una copa de vino y tomó posición a su lado, de manera que aquellas miradas resbalaron por su espalda. Mientras daba un sorbo a la bebida el grupo se desplazó hacia el centro de la sala. Pero no todos, uno se situó a su derecha y tomó otra copa. Al volverse para comprobar de quién se trataba, no pudo ocultar su sorpresa al ver a Ramiro, el hijo de mayor edad del rey, aunque no el heredero, ya que no había sido dado a luz dentro del matrimonio, sino que era fruto de un amorío del rey Sancho el Mayor antes de desposarse con la reina Munia, hija del conde de Castilla.

Nunca había hablado con él, pero su padre se había encargado de mostrarle, en los pocos actos que habían coincidido con la familia real, quién era cada uno de los hijos de Sancho el Mayor. Ramiro era todo un caballero, corpulento, de buena talla, moreno y con unos ojos que rebosaban seguridad en sí mismo. Para Lope, ese era el mayor don que podía tener un hombre. Había cualidades importantes como la valentía, la destreza o hasta la inteligencia, pero ese brillo en los ojos era el más poderoso de todos los dones que Dios podía otorgar a cualquier hombre. Señor, soy Lope de Ferrech, dijo, tomando la iniciativa. Lo miró de arriba abajo antes de responder. Mejor para vos. Quería presentaros mis respetos. Por qué a mí? Mis hermanos son mucho más… Cómo diría? Provechosos para un don nadie como vos. Lope de Ferrech sintió ese pinchazo que se produce siempre cuando te humillan, que duele justo debajo del honor, entre las costillas, junto al lado del orgullo y la sed de venganza, y que la única manera de sanar es cruzando espadas. Sin embargo, ni el lugar ni el personaje eran propicios para ello. Mi señor, soy… Tranquilo, se quién sois. Tan sólo bromeaba. Me conocéis? Soy hijo del rey Sancho, conozco a todos los nobles del reino. Aquella respuesta sorprendió a Lope. Una vez hablé con vuestro padre, el día en que el rey le concedió las tierras que poseéis en Leyre. Un hombre valiente y leal, fue una lástima su muerte. Gracias, mi señor. Una fiesta aburrida, verdad? Casi tediosa, me atrevería a sugerir. Para seros sincero, no suelo acudir a muchas.

Qué suerte tenéis! Y el hijo del rey sonrió. Sabéis por qué las fiestas son importantes? Quizá porque hay buena comida. No en todas las ocasiones, creedme, respondió Ramiro con una amplia sonrisa. Por la compañía? Dios! Por supuesto que no, mirad a vuestro alrededor. Perderíais un instante de vuestra vida conversando con estos borregos?, afirmó para su sorpresa. Sí, no me miréis así, todos ellos tan sólo buscan complacer a mi padre, no les importa ni el reino, ni los musulmanes, ni Dios. Sólo ellos; su lealtad es menos fiable que su capacidad para no decir sandeces en cuanto abren su enorme bocaza». In Luis Zueco, El Castillo, 2015, Titivillus, In Luis Zueco, O Castelo, 2015, Alma dos Livros, 2020, ISBN 978-989-899-914-0.

Cortesia de AdosLivros/JDACT

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segunda-feira, 17 de maio de 2021

Laurence Gardner. A Linhagem do Santo Graal. «De modo geral, já se reconhece que os capítulos iniciais do Antigo Testamento não representam o começo da história do mundo, como parecem sugerir. Mais precisamente, eles contam a história de uma família…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Ídolos pagãos do cristianismo

«(…) A nova era da construção de impérios começava com uma luta indigna por domínio territorial. O Reich alemão foi fundado em 1871, com a amálgama de estados até então separados. Outros estados se juntaram para formar o Império Austro-Húngaro. O Império Russo expandiu-se consideravelmente e, na década de 1890, o Império Britânico já ocupava nada menos que um quinto de toda a massa territorial do globo. Aqueles eram os dias dos resolutos missionários cristãos, muitos dos quais enviados da Inglaterra da rainha Vitória. Com a estrutura religiosa gravemente ferida em casa, a Igreja procurava uma justificativa no exterior. Os missionários viviam particularmente ocupados na Índia e na África, onde as pessoas já tinham as próprias crenças e nunca tinham ouvido falar de Adão. Mais importante, porém: nunca tinham ouvido falar de Charles Darwin! Na Inglaterra, um novo estrato intermediário na sociedade emergira dos empregadores da Revolução Industrial. Essa próspera classe média deixou a verdadeira aristocracia e a classe governamental muito longe do alcance do povo, efectivamente criando uma estrutura de classes, um sistema de divisões no qual todos tinham seu lugar designado. Os chefes e comandantes se refestelavam em empreendimentos arcádicos, enquanto os mercadores oportunistas competiam por espaço em meio ao consumo exacerbado. Os homens da classe trabalhadora aceitavam seu estado servil, com hinos de aliança, um sonho de Esperança e Glória, e um retrato da sua sacerdotisa tribal, Britannia, acima da lareira. Os estudiosos da história sabiam que não tardaria até que os impérios começassem a mirar uns aos outros, e previam o dia em que os poderes concorrentes se digladiariam em feroz oposição. O conflito começou quando a França se empenhou em recuperar a Alsácia-Lorena da ocupação alemã, enquanto as duas guerreavam pelas reservas de ferro e carvão do território. A Rússia e o Império Austro-Húngaro se enfrentavam em luta pelo domínio das Bálcãs e havia disputas resultantes de ambições colonialistas na África e noutros lugares. O pavio foi aceso em Junho de 1914, quando um nacionalista sérvio assassinou o arquiduque Fernando, herdeiro do trono austríaco. Nesse ponto, a Europa explodiu numa grande guerra, fortemente instigada pela Alemanha. As hostilidades foram dirigidas contra a Sérvia, Rússia, França e Bélgica, e a contra[1]ofensiva era liderada pela Inglaterra. A luta durou mais de quatro anos, chegando ao fim com uma revolta na Alemanha, quando o imperador (Kaiser) Guilherme II fugiu do país.

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Na verdade, é imperativo conhecermos a origem histórica e o ambiente de Jesus para compreendermos os factos de seu casamento e sua paternidade. À medida que avançarmos, muitos leitores estarão pisando em solo totalmente novo, mas que já existia antes de ser acarpetado e escondido por aqueles cuja motivação era suprimir a verdade para reter o controle. Só quando removermos a carpete do disfarce estratégico, teremos sucesso na nossa busca pelo Santo Graal.

Linhagem dos Reis

De modo geral, já se reconhece que os capítulos iniciais do Antigo Testamento não representam o começo da história do mundo, como parecem sugerir. Mais precisamente, eles contam a história de uma família que se tornou uma raça compreendendo várias tribos, uma raça que se tornou à nação hebraica. Se Adão foi o primeiro de uma espécie, então ele deve ter sido o progenitor dos hebreus e das tribos de Israel. De facto, como descreve o livro, ele foi o primeiro de uma linhagem predestinada de governantes sacerdotais. Dois dos mais intrigantes personagens do Antigo Testamento são José e Moisés. Cada um teve um papel importante na formação da nação hebraica e ambos têm identidades históricas que podem ser examinadas independentemente da Bíblia. Em Génesis 41: lemos como José se tornou Governador do Egipto: disse o faraó a José: administrarás a minha casa, e à tua palavra obedecerá todo o meu povo; somente no trono eu serei maior que tu... Desse modo, fê-lo governar sobre toda a terra do Egipto. Referente a Moisés, em Êxodo 11:3, descobrimos também que: Moisés era muito famoso na terra do Egipto, aos olhos dos oficiais do faraó e aos olhos do povo. Entretanto, a despeito do status e de toda a proeminência, nem José nem Moisés aparecem em qualquer registo egípcio sob os seus nomes bíblicos. Os anais de Ramsés II (c.1304-1237 a.C.) especificam que o povo semita se assentou na terra de Gósen, explicando que também para lá se dirigiram os semitas vindo de Canaã, em busca de alimento. Mas porque os escrivães de Ramsés mencionariam esse povoado do delta do Nilo em Gósen? De acordo com a cronologia padrão da Bíblia, os hebreus foram para o Egipto uns três séculos antes da época de Ramsés e fizeram o seu êxodo por volta de 1491 a.C., muito antes que ele chegasse ao trono. Assim, diante desse registo em primeira mão, vemos que a cronologia padrão da Bíblia está incorrecta». In Laurence Gardner, A Linhagem do Santo Graal, 1996, 2001, Editor Madras, ISBN 978-857-374-882-6.

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